A história de luta e força das mulheres do quilombo de Ivaporunduva
No quilombo de Ivaporunduva as mulheres têm o papel essencial de manter a cultura e as tradições vivas e de repassá-las às novas gerações
O dia de Jardelina Pedroso da Silva, 79 anos, começa cedo. Ao primeiro canto do galo, já é possível encontrá-la na cozinha se dedicando à produção de seu famoso cuscuz de arroz. A lavradora aposentada perdeu as contas de quantas vezes preparou o doce.
São tantas as ocasiões em que a sobremesa é requisitada: por turistas curiosos, para ser servido na festa junina ou apenas para alimentar os nove filhos no café da manhã. Reveza esses dias no fogão com o trabalho braçal na roça, que garante comida para sua casa, ou o delicado artesanato regional – rotina típica das mulheres que moram no quilombo rural de Ivaporunduva.
“Nasci, fui criada e, de certo, vou morrer aqui”, conta Jardelina com os olhos marejados. Localizada no Vale do Ribeira, a 55 quilômetros do município de Eldorado, em São Paulo, a comunidade é considerada a mais antiga da região. Lá vivem 110 famílias, cada uma com cerca de cinco ou seis membros, em uma área de 3 mil hectares.
Ivaporunduva obteve o domínio de seu território, concedido pela Fundação Palmares, nos anos 2000. Tornou-se a primeira comunidade quilombola do estado a conseguir a propriedade definitiva de suas terras, passando a ter direitos e amparos legais que preveem defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro e a obrigação do poder público em promovê-lo e protegê-lo.
Por definição, hoje, um quilombo é a área ocupada por comunidades remanescentes das antigas organizações de negros que se rebelaram contra o regime escravocrata. De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), estima-se que em todo o país existam mais de 3 mil comunidades quilombolas. Entretanto, pela dificuldade de acesso e mapeamento, os dados coletados não são exatos.
Os mesmos ofícios que Jardelina domina são ensinados a outras mulheres, ainda crianças. Elvira Pedroso da Silva, 46 anos, era bebê quando seus pais a levavam até as plantações. Ficava na rede vendo-os trabalhar. “A gente já vai aprendendo, está no sangue”, conta entre sorrisos, que deixam aparecer o aparelho nos dentes.
Elvira é divorciada e tem dois filhos. Seu espírito independente a fez trocar a comunidade por São Paulo em busca de trabalho remunerado durante a juventude. “Minha irmã me arrumou serviço como babá, mas chegando lá tinha que fazer de tudo: limpar, lavar, cozinhar. Pegavam meninas de sítio, achando que a gente era boba, para fazer de escravas. Não pagavam direito. Vim embora”, lembra.
Hoje, é um dos nomes à frente da produção e comercialização do artesanato com fibra de bananeira em Ivaporunduva. “Vendemos bastante para os visitantes”, diz, referindo-se aos alunos de escolas particulares de regiões como Morumbi e Alphaville, que fazem passeios constantes ao local. O cargo também a permitiu conquistar, em 2008, o diploma do ensino médio.
Para as mulheres da geração de Elvira, formação é raridade. Sirlei Furquim de França, 34 anos, comanda o balcão do bar do marido, Setembrino. Famoso entre os moradores do quilombo, fica perto da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, o mais antigo templo religioso do Alto Vale do Ribeira, onde os ancestrais dessa população resistiram à escravidão séculos antes.
A mão de ferro de Sirlei tornou o comércio um sucesso e é também usada para vigiar a dedicação dos dois filhos à escola. “Só cursei até metade do fundamental; o acesso era muito difícil no meu tempo. Quero garantir que eles tenham mais oportunidades”, conta.
Seu filho de 18 anos faz faculdade de engenharia de transporte e logística na Universidade Federal de Santa Catarina. O plano é voltar ao quilombo após o término dos estudos e usar o conhecimento para transformar a comunidade em que cresceu. A prática é comum entre os jovens. “É uma forma de retribuir nossa dedicação”, explica Sirlei.
Aos 30 anos, a estudante do curso técnico de enfermagem Mariane de Souza entende bem dessa relação. Vai até Registro, município próximo, para as aulas. Quer poder oferecer seus serviços aos moradores, inclusive ao filho, o pequeno Nicolas, 6 anos. Ela não nasceu ali, é de Itatiba, cidade bem distante.
Mariane se apaixonou pelo quilombola Leonardo quando os dois moravam em Santa Catarina. Quando ela tinha 19 anos, eles se casaram e se mudaram para Ivaporunduva. “Minha família demorou para aceitar. Não entendia o que era um quilombo. Mas para mim, tão jovem, era uma aventura.” Hoje, recebe visitas da família com frequência.
“Eles entenderam os benefícios, como a liberdade que meu filho tem. É muito mais fácil alguém da cidade vir morar aqui e se adaptar do que o contrário”, completa. Aluna dedicada, foi selecionada entre 16 candidatos dos quilombos da região para receber uma bolsa integral. Em sua sala, os 30 alunos são quilombolas.
Heloísa de França Dias, 28 anos, é do quilombo São Pedro, próximo de Ivaporunduva. Ela divide os estudos do primeiro ano de engenharia de produção à distância com o trabalho na roça e a criação dos dois filhos. Apesar de estar só começando o curso, já faz planos de ingressar em um mestrado em engenharia ambiental.
Sua luta é para que a importância da cultura e do trabalho nos quilombos seja reconhecida no Brasil, principalmente pelos alimentos que são produzidos ali. “A geração de fonte de renda das famílias é a agricultura. Fazemos como nossos antepassados nos ensinaram”, conta.
“As pessoas precisam saber de onde vem a comida que chega à mesa. Nossos pratos típicos vieram da senzala e permanecem sendo feitos sem químicos nem veneno.” Recebem o apoio do Instituto Brasil a Gosto, da chef Ana Luiza Trajano, que, por meio de experiências nas comunidades e eventos, trabalha para que a autêntica cozinha brasileira seja disseminada.
Na região do Vale do Ribeira, a principal fonte de renda vem da banana. Conseguiram com o Ministério do Meio Ambiente o selo de produtores orgânicos. O fruto é vendido para entidades públicas, que direcionam o alimento para a merenda escolar municipal e projetos sociais.
Em 2015, foram vendidas 36 toneladas da fruta, mas a quantidade vem caindo. Este ano, dada a falta de chamada pública, algumas entregas estão paralisadas. Ainda assim, saem da comunidade cerca de 600 caixas de banana toda semana.
Outra base dessa cozinha é a mandioca, que sustenta há anos a família de Nadir dos Santos, 53 anos. A farinha do tubérculo, quando torrada, vira uma farofa cuja receita é passada de uma geração para outra. “Faço isso desde que me conheço por gente, mas não sou muito de comer”, diz rindo.
Ela admite que, depois que teve os cinco filhos, não tem mais a mesma força para o árduo trabalho que a torra da mandioca exige. Mas mantém a alegria de amarrar os pacotes vendidos para os turistas.
Também não falta à mesa o feijão. Ele não é preparado da maneira apressada como costumamos fazer. Com calma e destreza, Marina Furquim, 56 anos, joga lenha no fogão de taipa, onde prepara ainda o arroz. Se do lado de fora a sensação é de calor de mais de 40 graus, ali dentro da cozinha parece o dobro. Marina é dona de um olhar que exala ternura.
Recebe com carinho quem a visita e, tímida, pede que não reparem na bagunça. Sempre tem por perto um pano de prato, que usa para espantar os mosquitos. A reforma em andamento não chegou à cozinha, que é uma construção à parte, de pau a pique.
“Quando tinha 11 anos, saí para trabalhar em casa de família. Aqui era difícil se manter, Nossa Senhora! Mas eu não gostava de ficar longe; fui para São Paulo, Eldorado, Santos. Nos dias de folga, retornava, e meu coração vinha à boca de felicidade. Até chorava”, relembra.
“Nessa época, conheci um rapaz. Moramos juntos, engravidei, mas não deu certo e me separei. Voltei para casa e disse que não ia mais querer saber de ninguém. Só que hoje meu filho tem 35 anos, e um homem de Sapatu, aqui perto, gosta muito de mim. É cada um para o seu lado, não vou morar com ele. Mas ficamos. Ele quer casar comigo; eu acho que está bom assim, sei lá”, conta Marina enquanto separa os feijões.
A rotina não a incomoda. É, mais do que uma lista de tarefas, uma forma de preservar a tradição das comunidades quilombolas e valorizar a rica cultura que mantém viva parte tão importante da história do nosso país.
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