Juliana Vicente: “É momento da gente vocalizar nossa própria história”
Diretora, roteirista e fundadora da Preta Portê Filmes, Juliana Vicente lança mais um trabalho e confirma sua delicadeza única para contar histórias
Narrar a história de um ícone da televisão brasileira é uma tarefa desafiadora. Juliana Vicente, entretanto, cumpre essa missão com uma delicadeza admirável. Diretora, roteirista e fundadora da Preta Portê Filmes, ela acaba de provar mais uma vez que é dona de um olhar sensível, perfeito para transformar narrativas grandiosas em cinema — desta vez, com a produção Diálogos com Ruth de Souza.
O documentário, lançado em maio deste ano — mês em que Ruth de Souza completaria 103 anos — apresenta conversas gravadas e materiais de arquivos adquiridos a partir de uma profunda pesquisa feita desde 2009.
Além de um mergulho na história do cinema nacional e na vida da atriz, o projeto surpreende por ter sido captado ao longo dos últimos dez anos de sua vida: tempo mais do que suficiente para registrar a conexão entre as duas artistas, Ruth e Juliana.
Assim como o nome já revela, a produção traz conversas íntimas da diretora e roteirista com Ruth. Ali, nós, espectadores, nos sentimos dentro do universo das duas, como se também participássemos de seus diálogos e pensamentos.
“Eu vi mais a imagem de Ruth de Souza do que a da minha própria avó”, diz Juliana, mencionando uma frase sua dita na abertura do documentário. “Sabia quem ela era fisicamente, mas nada sobre sua história. Isso, de cara, já me intrigou”, relembra.
Quando teve seu primeiro encontro com Ruth, Juliana conta que criou no seu imaginário a figura de uma celebridade global, imponente. “Quando cheguei lá, encontrei uma senhora muito interessante, vaidosa, mas que estava chateada pelas limitações físicas que começavam a chegar. E que, sobretudo, tinha muita clareza de que as pessoas não a estavam valorizando. E aquilo me pegou, fui atravessada emocionalmente de muitas maneiras.”
Considerada uma das grandes damas da dramaturgia nacional e a primeira grande referência para artistas negros na televisão, Ruth de Souza se destacou por ser a primeira artista brasileira indicada ao prêmio de melhor atriz em um festival internacional de cinema: com Sinhá Moça (1954), no Festival de Veneza.
Em um dos trechos do documentário, a atriz relembra ter sido questionada sobre querer seguir a carreira na dramaturgia: “Você quer ser artista? Mas não tem artista preto”, lembra ela de ter ouvido. Ao que responde: “Ué, vai ter”.
O sentimento relatado é velho conhecido de Juliana. “Quando trabalhei em grandes produtoras, percebi rapidamente que não tinha o shape para ser diretora ou até assistente. Eram pessoas padrões, ‘paquitas’ (risos)”, relata.
“Naquele momento, simplesmente não existiam diretores pretos trabalhando em produtora. Assim, a Preta Portê virou uma necessidade”
Juliana Vicente, diretora, roteirista e fundadora da Preta Portê Filmes
“Não importava o quanto eu me dedicasse, existia um lugar estabelecido que eles queriam para mim. Naquele momento, simplesmente não existiam diretores pretos trabalhando em produtora. E assim, a Preta Portê virou uma necessidade”, conta sobre a fundação da sua produtora, em 2009.
Entre os muitos trabalhos do seu currículo, Juliana é o nome também por trás do premiado Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, que está disponível na Netflix desde 2022 e narra a origem e a ascensão do grupo paulistano de rap.
Além disso, foi responsável por realizar o clipe “Marighella”, ganhador do prêmio de melhor Clipe do Ano no VMB MTV (2012). Já com Diálogos com Ruth de Souza, ela conquistou o prêmio de Melhor Direção de Documentário no Festival do Rio 2022.
A partir da Preta Portê Filmes, Juliana visa impulsionar projetos com relevância social e artística, pensada para amplificar criações ligadas à temática preta, indígena e LGBTQIAP+.
Em entrevista à CLAUDIA, ela falou sobre sua trajetória de conexões com esses personagens, dos desafios de produzir documentários no Brasil, seus novos projetos em andamento e, mais recentemente, sobre sua transformação a partir da maternidade.
CLAUDIA: Como a Ruth de Souza surgiu na sua vida?
Juliana Vicente: Em 2008, filmei o Cores e Botas, meu primeiro curta, que conta a história de uma menininha negra que quer ser paquita. Ali, conheci a [atriz] Dani Ornellas no elenco. Ela me perguntou se eu conhecia a Ruth, e eu fiz o que muita gente faz, aquele: “hummm, esse nome…” Quando vi a imagem sabia quem era fisicamente, mas não sabia nada sobre a história daquela mulher.
Em 2009, fui conhecê-la na casa dela, que tinha uma coisa que me chamava muita atenção. A sala, como era no térreo, tinha uma janela que dava para um muro; a televisão estava sempre ligada e havia uma estante com muitas informações de cinema. Tinha uma coisa espacial ali, que me dava uma certa angústia de horizonte. Parecia que aquele mundo todo tinha a ver com os trabalhos que ela fez; que ela efetivamente tinha conhecido o mundo através do cinema.
Quais foram os maiores desafios do projeto?
Num primeiro momento, eu filmava sem grana e não sabia quanto tempo a gente tinha. Não sabia se teríamos o tempo necessário para esperar o financiamento dos filmes no Brasil. Fiquei seis anos filmando sem nenhum tipo de financiamento, o primeiro chegou em 2015, no momento que as questões raciais começaram a emergir no Brasil de uma forma mais aguda.
Como era sua relação com Ruth?
A Dani [Ornellas], que inclusive foi coprodutora do filme, era muito amiga da Ruth. Então sempre tive muito claro que meu espaço não tinha que ser esse. Assim eu poderia fazer provocações menos emocionais com ela, no sentido de não ficar com medo de perguntar sobre amor, coisas que a gente já sabia que eram difíceis de ela falar.
Tentei ficar num papel de alguém que estava num diálogo com ela um pouco mais direto, claro que tinha afeto, mas sem tanta proteção, pra gente poder conseguir encontrar uma camada para além do que ela tinha predisposto a mostrar. Só o tempo a deixou mostrar sarcasmo para a câmera, um lado que foi importante ter visto. Ela tinha um lugar meio ‘miss’ inicialmente: “Ah, obrigada, Deus. Fiz uma carreira correta sem altos e baixos”. E você pensa: “Estou estudando a sua carreira, como assim sem altos e baixos?”. Ela chegou ao topo, indicada a tal e tal, de repente a Globo a tira da [novela] A Cabana do Pai Tomás. Então, foram muitos altos e baixos, e é importante falar disso.
“Escolhi me apoiar sobretudo no discurso da própria pessoa, por acreditar que é o momento da gente poder vocalizar nossa própria história”
Juliana Vicente, diretora, roteirista e fundadora da Preta Portê Filmes
Existiram desafios diferentes entre seu trabalho biografando os Racionais e a Ruth de Souza?
Para falar de Racionais eu mudo até o vocabulário, entendeu? (risos) É outra treta. Foram trabalhos feitos paralelamente. Estávamos falando de ícones pretos brasileiros com importâncias enormes nas suas respectivas áreas e uma contribuição mútua, talvez até sem nunca ter se conversado, para a cultura brasileira. São pessoas com suas complexidades e eu estava fazendo dois filmes de pessoas biografadas vivas. É um desafio enorme você contar uma história de uma pessoa que está ali, sem você fazer um filme do jeito que a pessoa quer que você faça.
E o que mais te encantou em ambos os trabalhos?
A maravilha de poder biografar e escutar as pessoas. Em ambos os filmes, escolhi me apoiar sobretudo no discurso da própria pessoa, por uma crença de que é o momento da gente poder vocalizar nossa própria história, e não ter que se apoiar na opinião de fora. Então, essa é uma conexão que tem entre os dois filmes. E acho, como acho de Racionais, que a Ruth também é um filme que pode ser feito outras vezes, porque existem muitas histórias sobre ela na boca de outras pessoas, que podem ser também muito interessantes.
De que forma a maternidade te transformou?
A Amora está com dois anos e 8 meses. Eu engravidei no meio da filmagem do Racionais, tive pouquíssimo tempo de licença-maternidade. A primeira música que ela dançou foi Negro Drama (risos). Minha vida mudou totalmente, porque continuo sendo workaholic, mas agora tenho ela como minha prioridade na vida, sou mãe solo. Mas foi no momento correto, ela me equilibra e em muitos momentos diz: “Mamãe, chega de trabalhar, vem brincar!”, então ela me dá medidas. Ela é um axé puro!