Bar dos Cravos, em São Paulo, revive a conversa entre amigos
Novo espaço tem com coquetéis criados pela bartender Stephanie Marinkovic e pratos pensados pelo chef Guto Cavanha
É na mesa do bar que muitas das grandes discussões acontecem. Foi nesse espaço, aliás, que se deu o início de um evento histórico em Portugal, em 25 de abril de 1974, e que abriu caminho à restauração da democracia no país.
Nesta data, Celeste Caeiro, funcionária de um bar no centro de Lisboa, chegou animada para trabalhar, porque era aniversário de um ano do estabelecimento. Em razão da celebração, carregava um buquê de cravos para presentear os clientes, mas deparou-se com as portas fechadas: a cidade estava tomada por militares.
Celeste dirigiu-se até onde os tanques aguardavam novas ordens do capitão Salgueiro Maia, levando consigo as flores. Ali, um soldado a abordou, pedindo fogo para acender seu cigarro. Como não tinha, pegou um cravo e lhe ofereceu, colocando-o dentro do fuzil. Foi assim que esse singelo ato tornou-se o símbolo da Revolução dos Cravos, movimento que derrubou a ditadura salazarista e restabeleceu as liberdades democráticas em Portugal.
Inspirados pelos movimentos libertários e pelas rodas de conversas nas mesas de botequins, cinco amigos se uniram para abrir as portas do Bar dos Cravos, em maio deste ano, no bairro do Paraíso, em São Paulo.
Arnaldo Altman, nome já conhecido da boemia paulistana, faz parte do grupo de sócios, que inclui ainda o designer André Altman, o advogado Iagui Bastos, o cineasta Paulo Colares e o administrador Bruno Oliveira.
“Todas as grandes revoluções culturais, políticas e sociais sempre tiveram, em algum momento, uma conversa de bar. Esse foi um dos conceitos que queríamos trazer de volta, já que a função foi se perdendo com o tempo”, reflete Arnaldo.
“Chegando aqui, você não vai encontrar música muito alta, queremos um ambiente que aproxime as pessoas, para que elas se sintam à vontade ao discutir cinema, música, arte ou o que for. Isso estava no nosso radar o tempo todo, um bar que pudesse promover esses encontros.”
O espaço físico se conecta com a linha do tempo desse movimento político e imprime a história nas paredes do salão. Criado pelo escritório Apiacás, o projeto traz figuras que remetem aos clássicos azulejos portugueses, mas com imagens marcantes de figuras da democracia não só de Portugal, mas também do Brasil.
INVENÇÕES COM PROPÓSITO
Se nas empreitadas anteriores de Arnaldo Altman o chope gelado era a estrela, aqui brilham os coquetéis, autorais e clássicos. Em apenas trinta minutos de conversa, os sócios do Bar dos Cravos já tinham a certeza de que Stephanie Marinkovic era o nome certo para assinar a carta de drinques e mentorear a equipe do bar.
“Eu não quero só misturar ingredientes, quero que as pessoas provem preparos que as façam relembrar de algo.”
Stephanie Marinkovic, mixologista do Bar dos Cravos
Vencedora dos campeonatos Patrón Perfectionists 2017 (onde concorreu contra 19 profissionais homens) e Jameson Bartenders’ Ball 2018 (sendo a primeira mulher a ganhar a competição), Stephanie nem sonhava em ser mixologista, muito menos uma das melhores do Brasil. O que sempre soube é que gostava de se expressar: seja por meio das tatuagens ou do corte de cabelo — e, agora, na coquetelaria.
“Fui cosmetóloga por anos, mas não queria mais a vida em salão. Então, uma amiga me chamou para trabalhar no Espaço 13 [misto de barbearia, estúdio de tatuagem e bar no Bixiga]. Na hora, perguntei: ‘você é louca?’”, relembra, com bom humor.
Ela, que já tinha experiência em bares, conta que aprendeu a fazer drinques enquanto “lavava chão”, mas nunca havia se aventurado nos coquetéis. “Essa amiga me disse que eu aprenderia. Comprei livros, estudei e comecei a misturar ingredientes. Tinha até um professor que me dizia para parar de inventar moda, mas sempre insisti”, conta a bartender. E foram essas “invencionices” que a levaram onde está hoje.
“Para criar coquetéis que façam sentido, é preciso ter uma base. Eu faço isso adicionando ingredientes que remetem a memórias pessoais. Acredito que o bar fala muito sobre um mixologista, assim como a comida fala sobre o chef. Eu não quero só misturar ingredientes, quero que as pessoas provem coquetéis que as façam lembrar de algo.”
Celeste, que faz uma clara homenagem à protagonista dessa história, é um dos drinques autorais que representam a elegância da carta pensada por Stephanie. Preparado com gim e jerez, ainda tem blend de jasmins e é guarnecido com azeitona.
Ele e todos os outros acompanham muito bem os pratos, que formam um menu enxuto e pensado para compartilhar. Caso da sardinha e sardela, e também da alheira, embutido defumado típico da culinária lusitana, servida com ovo frito e um aromático limão-cravo.
“O simples já é muito difícil de ser bem executado.”
Guto Cavanha, chef do Bar dos Cravos
As criações de Guto Cavanha apresentam um lado mais fresh da gastronomia portuguesa, inspirada pelo Mediterrâneo. Um prato pesado, como o clássico bacalhau à gomes de sá, por exemplo, dá lugar a criações como os camarões ao alho, servidos com azeite, pimenta, salsinha e limão.
O tradicional arroz de pato, por sua vez, é feito com lascas da carne e corações da ave, além da linguiça portuguesa, mas ganha leveza com a ervilha-torta. Na sobremesa, não poderia faltar o quindim, que é servido com um sorvete suave de nata e raspas de tangerina — peça o Espresso Martini para acompanhar.
De acordo com o chef-consultor, o cardápio vem do conceito de apresentar pratos simples e deixar a complexidade para o encontro dos ingredientes na boca, já que, segundo ele, “o simples já é muito difícil de ser bem executado”. Para discordar, só se estivermos ao redor da mesa do bar para argumentar, comer e beber.
Aprenda a fazer duas receitas do Bar dos Cravos:
Rabo de Galo
Famoso nos botecos paulistanos, e também na alta coquetelaria, o rabo de galo foi eleito um dos principais drinques clássicos do mundo pela Associação Internacional dos Bartenders (IBA), em junho deste ano. No Bar dos Cravos, ele ganha uma roupagem imersiva ao ser defumado em uma cúpula de vidro com canela
Ingredientes
• 40ml de cachaça
• 20ml de vermute tinto
• 20ml de cynar
Modo de preparo
Em um mixing glass, mexa tudo com muito gelo e sirva num copo baixo com uma pedra de gelo grande.
Arroz de pato
Ingredientes
• 2 unidades de coração de pato
• 30g de linguiça portuguesa
• 30g de sofrito (refogado de cebola, alho e ervas aromáticas)
• 120g de arroz bomba
• 180ml de caldo de pato
• 80g de carne de pato
• 2 unidades de ervilha torta
• 1/2 maço de cebolinha
Modo de preparo
Tempere o coração e toste-o em uma frigideira com um fio de azeite. Retire o coração, reserve, e, na mesma frigideira, acrescente a linguiça e depois o sofrito. Por fim, junte o arroz bomba. Acrescente o caldo de pato pouco a pouco, até que os grãos de arroz estejam cozidos. Para finalizar, coloque a carne de pato e a ervilha torta. Decore o prato com os corações e a cebolinha.