“Eu quero viver no meu estilo”. Foi a frase de José Humberto Pires de Campos Filho dita a um repórter da Globo. Esse rapaz de 22 anos, morador de Trindade (GO), não disse: “Eu quero morrer” ou “Vou me matar”. Ele deseja viver – e da sua maneira – os dias que lhe possam restar. Poucos ou longos dias de existência, quem sabe? Humberto parece lúcido na escolha de não acatar o que os médicos, a Justiça e a própria mãe pretendem para ele. Até aqui foram 19 meses convivendo com um diagnóstico complicado e um temido transplante renal no horizonte.
A doença já ganhou dele em muitos rounds. Roubou os esportes, a natação, os projetos de uma universidade nos Estados Unidos, e impôs sessões de hemodiálise – consideradas por Humberto dolorosas, cheias de efeitos colaterais incômodos e sem chances de sucesso.
Em abril do ano passado, publiquei em CLAUDIA uma reportagem sobre um tema difícil, que me aflige muito: o direito de morrer. No caso de Humberto, nem o direito de viver do seu modo tem sido possível. Sua história me levou de volta àquele trabalho: durante 25 dias percorri enfermarias conversando com pacientes terminais, alguns deles velhos, para quem se esperava o descanso. Encontrei também, dentro e fora do hospital, jovens sem possibilidades de cura, mas loucos por um milagre. E outros cansados da insistência da família e dos clínicos para que suportassem, como mártires, todas as tentativas terapêuticas que os faziam sofrer sem razão.
Dos especialistas que consultei, trago Roberto Dias, professor de direito constitucional da PUC-SP. Ele lembrou que a Constituição fala em direito de viver, mas não estabelece o de morrer. “Se existe o direito, há a possibilidade de renunciar a ele. Se não posso decidir como quero morrer, aquele direito vira uma obrigação.” Vida não pode ser uma imposição, um dever, um encargo, um ofício. Ela tem que ser um querer.
José Humberto só pretende levar os dias ao seu estilo. Concedeu a entrevista ao lado de uma guitarra. O que isso quer dizer? Também permitiu que o cinegrafista registrasse seu notebook no colo, conectando-o com o mundo. Na véspera, havia comido pizza e lasanha contrariando a dieta. O que isso significa? No mínimo, que ele não está deprimido, podendo viver o que lhe interessa sem ser reprimido. E que, com seu jeito bastante peculiar, está enfrentando a doença que tenta amarrá-lo à máquina de hemodiálise.
A vida não pertence ao Estado ou à religião
O paraense Kleber de Aquino, 25 anos, falou comigo algumas vezes ao telefone, para aquela reportagem de 2016. Esqueci de dizer, o título dela era: “Amar é deixar ir”. Ele se sentia refém da própria cama. Um acidente de moto o deixara tetraplégico três anos antes, agravando as crises respiratórias enfrentadas desde a infância. Kleber me explicou: “O sofrimento não carimba o passaporte para uma eternidade sem culpas. Nenhuma divindade deseja a aflição dos seus protegidos. Minha vida não deveria pertencer ao Estado nem à religião, que atrapalham a libertação de tudo isso”. O pai dele, João de Aquino, professor de matemática, me revelou que o filho estava farto de ouvir as pessoas pedirem a ele resignação. Kleber desejava morrer e não podia. A eutanásia (em grego, boa morte) é considerada homicídio no país, embora não seja citada no Código Penal.
Passei a defender o direito à morte responsável – quando decidimos não deixar que os filhos, os amores e os outros (como os médicos) decidam espichar o que já não é mais vida. Há um instrumento que torna isso possível: é preciso ir a um cartório e registrar um testamento vital – documento também conhecido como “diretrizes antecipadas de vontade”. Nele, posso determinar que não aceito ir para uma UTI, não quero ser, jamais, intubada. E se eu for acometida pelo mal – o Alzheimer – que começou a desfigurar meu pai quando ele estava no auge, aos 52 anos, prefiro abreviar o martírio.
O direito de escolher uma saída honrosa
Conheci um pianista e cantor lírico de 33 anos, do interior paulista. Ele se tratava no Hospital das Clínicas da USP, na capital, de dor crônica, causada por fibromialgia, neuropatia e radiculopatia. “Sinto meus nervos sendo esmagados, com dores terríveis nas costas, no corpo”, contou. “Elas me fazem urrar, perder o sono, a vontade de comer, de me mexer.” Não bastasse sofrer desde os 17, quando foi diagnosticado, ele ainda enfrentava discriminação. “Uma vez, pedi para ser tratado com uma bomba de infusão de morfina ou com canabidiol, e o meu médico me respondeu: “Não era você que ia se matar? “
O pianista estava inscrito na clínica Dignitas, na Suíça, uma organização humanitária de suicídio assistido, onde o paciente ingere uma dose letal preparada por uma enfermeira que o acompanha até o momento final. Ele só chega ali depois de empenhar algum tempo refletindo sobre sua decisão e de se despedir da família. Precisa ainda passar por rigorosa análise de laudos, que atestam morte previsível e casos incuráveis que levam a danos físicos e psíquicos insuportáveis. O pianista preenchia todos os requisitos, mas rechaçava o termo suicídio assistido. “É chocante para minha mãe”, justificou. “Vejo a prática como uma saída honrosa para quem não quer uma morte suja”, afirmou.
Durante anos, ele se preparou para o desfecho, mas não tinha dinheiro para viajar e ir morrer na Suíça. Era culto, trocávamos pelo Facebook muitas mensagens fechadas. Algumas eram ditadas ao computador porque, com os músculos crispados, ele se via impossibilitado de digitar. Sumia, mergulhado nas dores, e reaparecia para relatar coisas como esta: “Hoje ganhei uma passagem só de ida ao inferno. Tive cólicas, náuseas, cãibras. Faltou o opioide metadona.” O remédio que tira a dor nem sempre era encontrado por ele na rede pública. “Queria um tratamento que me desse qualidade de vida. Ele não existe, e eu me vejo em uma morte arrastada”, confidenciou.
Cinco meses depois de publicada a reportagem recebi a triste notícia. O pianista. Cansado de tudo, esperou a mãe dormir, saiu do seu quarto, foi à cozinha, bateu no liquidificador uma mistura de remédios. Ingeriu e na sequência se asfixiou. Não conseguiu a saída honrosa, a morte limpa que tanto perseguiu.
A Medicina tem que ajudar o homem a morrer
Nas vezes em que escrevi sobre a direito de escolher um fim digno procurei o padre Anísio Baldessin, que viu todas as faces da morte no Hospital das Clínicas de São Paulo, onde foi capelão por 23 anos. Ele é pró-reitor do Centro Universitário São Camilo, tem 55 anos, anda de moto, fala sem rodeios. Ao mesmo tempo, demonstra uma sensibilidade e delicadeza como poucas pessoas que entrevistei na minha carreira. Padre Anísio não é a favor da eutanásia. Defende os cuidados paliativos, que são condutas para tirar a dor do paciente de uma doença sem solução, amenizar os sintomas e permitir que ele morra com conforto, apaziguado e no meio da sua família.
Quando ouve relatos como o de José Humberto, de Trindade, o padre não dá conselhos triviais, como: “Tenha fé”; “Deus sabe o que faz”; “Ele dá só o que podemos suportar”. Pelo contrário, Anísio Baldessin admiti: “Eu me ponho no seu lugar. Também não queria sofrer horrores”. O padre condena a obstinação terapêutica que tenta “salvar” aquele que a morte já chamou para o fim. “A medicina, que ajuda o homem a nascer, tem obrigação de ajudá-lo a morrer”, afirma.
Em seu livro, Entre a Vida e a Morte, Medicina e Religião, o padre Anísio contou que as pessoas pediam rezas pelo milagre da cura impossível. Ele respondia: “Deus pode, mas não faz tudo”. Relatou no livro a angústia de Saulo, um garoto de 12 anos, em processo de metástase. Sua mãe e avó tentavam fazê-lo reagir. Num esforço enorme, o garoto comia e bebia para atender aos apelos delas e tinha surtos de vômito. “Apesar da gravidade, não conseguia morrer… Ou melhor, seus familiares pareciam não deixá-lo morrer”, escreveu. Ao vê-lo agonizando, Anísio orou, chamou a avó e a mãe e perguntou: “Vocês já pensado na possibilidade de deixar o Saulo morrer? Eu sugiro que, em vez de estimularem, dizendo que ele tem que ficar bom, vocês falem: ‘Saulo, você foi um guerreiro, lutou até onde suas forças permitiram. Se quiser descansar, entenderemos a decisão”. Naquela noite, o menino faleceu. Para o padre, a família ajuda o paciente a se curar. “Mas chega a hora em que precisa ter a maturidade de dar a ele o direito de ir embora.”
Mães são leoas. E também insanas
Pondo a culpa no amor, muitas vezes somos egoístas demais. Fico imaginando a confusão que se tornou a vida de José Humberto depois que seu drama foi revelado em público. E quão solitário deve estar se sentindo dentro de casa, tendo a única pessoa de amparo também como sua opositora. Um juiz concedeu à mãe de José Humberto uma liminar que o interdita de forma parcial e provisória e o obriga a frequentar sessões de hemodiálise. Ele podia estar curtindo a vida ao seu estilo, em vez de ir à Ordem dos Advogados do Brasil atrás de um profissional para defendê-lo. Nem precisaria ter passado pela junta médica do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, que atestou sua sanidade mental, sua total capacidade de entendimento, mas o considerou “imaturo afetiva e emocionalmente”. Freud descreveu que todos nascemos com a sensação de desamparo. E ela carregamos por todo o sempre. Razão pela qual nos sentimos, muitas vezes, imaturos e emocionalmente frágeis. Por que com José Humberto seria diferente aos 22 anos? Por que ele não pode se dar um tempo para elaborar a montanha que desabou sobre sua cabeça, seus rins?
Sei que mães são leoas. Eu sou. Quem põe um filho no mundo e ama é capaz de ir ao inferno buscar o milagre. Dá o próprio sangue, a alma, a saliva. Nesse entregar tudo, a leoa cobra uma contrapartida alta demais: que o filho a ame e corresponda às expectativas feitas para ele cumprir.
Neste momento, José Humberto deve estar precisando mais de delicadeza que de hemodiálise. Para ela terá todo empenho se um dia decidir, de fato, lutar. A decisão espontânea, sem pressão, empurra a montanha ladeira acima.