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O que vimos nas reuniões de homens que agridem mulheres

O que pensa o homem que comete agressão? Qual a gênese da violência contra a mulher com quem divide o convívio? CLAUDIA foi ouvi-lo

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 25 nov 2016, 17h20 - Publicado em 25 nov 2016, 17h14
 (Astrid860/ThinkStock)
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“Queria mostrar boa aparência. Tirei a barba, cheguei com o rosto liso ao Fórum Criminal da Barra Funda (em São Paulo) para a primeira audiência com a juíza da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Vi um veículo grande de transporte de presos. Dele desceram homens igualmente barbeados. Um, escoltado e algemado, passou perto de mim. Pensei: ‘A Justiça pôs a mão em nós. Estamos na mesma condição – a de réu’. Tentei imaginar que barbaridade ele teria cometido – eu bati na minha mulher. Tive diarreia, me recompus com dificuldade e segui para a sala indicada na intimação. O ambiente é tenso. Eu repetia mentalmente: ‘A que ponto cheguei. A que nível desci’. Chamaram meu nome. Entrei e mirei a juíza atentamente. Se ela pudesse ler o meu olhar… Ele estava prometendo: ‘Nunca mais volto aqui’.” O depoimento é do arquiteto Júlio, 36 anos, que, como todos os personagens ouvidos ao longo de três semanas, tem seu nome trocado. Júlio cumpria uma medida protetiva, não chegava perto da ex fazia quatro meses e estava sem ver o filho, de 6 anos, que passou a rejeitá-lo. “Ela é bonita, paparicada pelas pessoas, consegue tudo que planeja e cresce na profissão. A gente se deu bem até 2014”, resume. O casamento emperrou; o arquiteto dava “ciscadas” fora de casa – “nada sério” – e a mulher resolveu se divertir também. Os golpes do marido quebraram-lhe duas costelas, deixaram o rosto dela roxo e o incisivo pela metade. A promessa, explicou, não era para a juíza, mas para ele mesmo. “Não quero mais repetir aquilo. Vi a merda que fiz.”

“Não são brutos e bêbados. Respondem a processos homens normais, com sentimentos bons e ruins”

João*, preso em flagrante ao dar um tapa na mulher

 

Júlio não sabe como poderia ter evitado a violência. Suspeita que a encrenca seja “fruto da disputa entre homem e mulher pela pole position, o lugar mais vantajoso na sociedade”. Em geral, o homem, tem pouco repertório para reagir à frustração, a algo que acaba, dá errado, significa rejeição ou afronta. A resposta varia de ataque verbal a físico. Ou ele procura a rota de fuga no álcool e nos riscos, como a velocidade. “O cara não aprende a desmontar a bomba prestes a explodir”, diz. E desconhece a legislação. As mulheres progrediram, os papéis sociais mudaram e, para balizar as relações de gênero, regras de direito foram criadas, como a Lei Maria da Penha, em vigor há 10 anos. Quase 100% dos nossos entrevistados a consideram uma lei feminista e parcial. “É um instrumento que protege as mulheres e f… os homens”, define João, 35 anos, programador de máquinas. Ele mesmo chamou a polícia e foi preso em flagrante depois de dar um tapa na esposa, que usava aparelho nos dentes e sangrou muito. “Fiquei apavorado, chorei.” Quatro viaturas pararam em sua porta. “O policial que me conduziu avisou: ‘Se você contar ao delegado que bateu, estará assinando sua sentença’.” Em oito anos de casados, viveram seis separações. A iniciativa era sempre dela, que saía de casa enquanto ele trabalhava. “Quando começava a namorar outra, minha ex pedia para reatar”, lembra. Em uma manhã, o programador de máquinas sugeriu: “Pegue um papel e escreva por que acha que devemos continuar casados. Você me xingou na frente dos meus amigos e já tinha dito a eles que só estava comigo por não ter para onde ir”. João esperava desculpas. Ela, porém, pôs as roupas na mala para deixá-lo pela sétima vez. “Revivi anos de humilhação, ciúme, raiva e reagi daquele jeito.” Na delegacia, seguiu chorando. “Estar ali e por agressão a alguém que amei, era o fim.” Foi solto sob fiança.

A conversa com ele ocorreu em uma quinta-feira, no Fórum do Butantã, em São Paulo, onde frequenta um grupo de reflexão para autores de violência doméstica. Com ele, estavam o gerente de vendas Heitor, 43 anos, que bateu em uma mulher de 25, filha de sua namorada, e o masseiro Antônio, 36, acusado de molestar a ex-mulher, o que ele nega. “Jamais levantei a mão contra alguém”, garante. “Separado, fui ao fórum tratar da pensão dos meus filhos. Ela imaginou que eu pediria a guarda das crianças e inventou a agressão em um boletim de ocorrência.” Para ele, a Justiça precisava investigar melhor o que as mulheres falam.

Revolta, vitimização, vingança

Os homens chegam aos grupos pondo a culpa na mulher. Acham que não aprenderão nada, só perderão tempo. “Os sentimentos variam de vergonha, vitimização, revolta, perplexidade a estranhamento”, enumera o psicólogo Tales Mistura, um dos orientadores do grupo do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, no bairro paulistano de Pinheiros. Eles não se negam a frequentar as sessões por dois motivos: alguns juízes obrigam; outros avisam que, indo aos grupos, terão a pena diminuída. Heitor é uma exceção; implorou para ser aceito. “Causei um problema. Perdi a mulher que amo e quero entender o que faz alguém contrariar suas convicções, sua educação e partir para a ignorância.” Filho de uma feminista e de um pai que defende a igualdade de gênero, raça e credo, ele ainda se vê surpreso com o ocorrido. Havia bebido muito e se desentendera com a filha da namorada quando os três saíam de um churrasco. “Não me lembro de nada. Mas foi horrível a minha atitude. E devo confessar: apanhei muito. Ela é lutadora de tae-kwon-do.” Antônio, nascido em Minas Gerais, em uma família pobre, rural, de dez irmãos obedientes ao pai, comenta: “Muito macho apanha e não faz nada. É um vexame, dos piores, queixar-se disso na polícia”. Ele crê: “A lei bagunçou tudo. As mulheres estão se achando”. Para reparar o que enfrenta, processará a ex. Heitor argumenta que a lei é necessária; o problema são seus operadores. Ao ler o depoimento que acabara de dar na delegacia, pediu para a escrivã tirar frases atribuídas a ele.

“A violência é fruto da disputa entre homem e mulher pela pole position na sociedade”

Júlio*, que quebrou uma costela e um dente da esposa
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“Estava errado e ela se negou a me atender; gritou comigo. O homem vive ali o revanchismo feminino acumulado há 300 anos”, afirma. Para o trio, as mulheres manejam o universo Maria da Penha: só existem juízas, promotoras, defensoras públicas. “O cara já entra condenado. Não espero outra coisa para mim”, lamenta João. Mas reconhece: passou a ser tolerante e deixou de julgar. “Imaginava ver no grupo só bêbado e bruto. Achava que homem que bate não presta. Não é verdade. Respondem a processos homens normais. Somos feitos de sentimentos, bons e ruins.” João repetiu três vezes sim às perguntas de CLAUDIA: O homem está pedindo socorro? Ele se vê mal assistido? Sente que não há espaço para rever a cultura patriarcal e não sabe como romper com ela? “A mulher é mais independente, tem mais atitude”, explica. “A mãe protege e mima o menino. Se ele não tiver uma boa bagagem, sofrerá consequências drásticas, porque não será paparicado pela esposa.” A juíza titular da Vara de Violência Doméstica da Barra Funda, Elaine Cristina Cavalcante, acrescenta: “Quase todo nexo vem da infância. No ideário da criança, a violência entra como forma de educar. A mãe ama e bate”. A promotora Erica Canuto, do Ministério Público potiguar, dá mais um peso à cultura. “Ouvi de homens que acusei justificativas assim: ‘Eu não dei nela. Dei no atrevimento dela’. Ou: ‘É errado bater em outra mulher. Na minha, eu posso. Estou ensinando a ser uma boa dona de casa’.”

Um golpe no machismo

No correr das sessões, os homens são instigados. No grupo mantido pela Prefeitura de Santo André (SP), João Batista de Souza, um dos facilitadores da dinâmica, confrontou um advogado condenado por violência que estava lá por ordem judicial: “Você tenta novamente achar brechas na lei para defender os próprios interesses. Para você, o homem é vítima, sempre perseguido psicologicamente; e a mulher sabe como fazer essa artimanha. Precisa rever seus conceitos”. O advogado havia dito: “A mulher tira o homem de casa facilmente. E, na esquina, ensina para a amiga como fazer igual”.

Um tipo atlético, de boné, acusou as mulheres: “Elas vão ao cartório, apontam qualquer um como pai de seu filho e saem com o nome dele na certidão”. Um senhor, aparentando 60 anos, contou que, no caso dele, não foi surra na esposa: “Repreendi minha filha”. Reginaldo Bombini, educador, respondeu: “Sua filha é mulher. Quando você estabelece um vínculo com ela à base de poder, está criando uma relação de violência”. As falas jorraram, havia também piadinhas e palavrões. Naquela quarta-feira, o mediador Paulo Cagliari, psicólogo, foi ouvido com atenção ao afirmar que era preciso reconhecer que as leis anteriores protegiam certo segmento da sociedade: os homens. A revolta era de se compreender: o macho estava sendo alijado da proteção com que sempre contou. “O homem fazia filho e sumia. Quando muito, mandava uma cesta básica”, lembrou Cagliari. “Agora tem de dar 30% do salário. É justo.” O tipo atlético acabou contando que pediu investigação de paternidade. Um colega comentou que, até sair a decisão, ele terá pago meses de pensão. “E ainda falam em direitos iguais”, retrucou alguém. Um certo sarcasmo partiu de um novato exaltado. O mediador interveio: “Estou preparado para suas ironias. Mas você não veio porque escolheu. E precisa entender que temos uma sociedade machista. Eu sou. Você é. A escola, a igreja e as instituições são. Um modelo de séculos que tentamos desconstruir”.

“Perdi a mulher que amo e quero entender o que faz alguém contrariar suas convições e partir para a ignorância”

Heitor*, que buscou um grupo após bater na filha da namorada
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A política surgiu na conversa. Santo André tem só duas vereadoras para 21 cadeiras. Um dos homens ia pesquisar e levar, na sessão seguinte, a resposta sobre existir ou não, no mundo, um parlamento com igualdade de representação, à base de 50% para cada gênero. Falou-se de cotas para mulheres; constatou-se que a força masculina nada significa, além de condição para carregar um pneu de caminhão. E apareceu um dado histórico: elas só descobriram o prazer sexual nos anos 1960. Um rapaz rechonchudo comentou: “É bom descobrir o prazer”. Entrou na sala um cidadão que já havia completado o curso. Um nordestino bem-humorado que sempre desarma os colegas o saudou: “Não vai dizer que bateu nela de novo!”. Um dos mais jovens completava o curso (20 sessões) e provocou emoção ao agradecer a acolhida. Confessou que o tempo passado ali fora muito bom para a mulher dele também. “Minha forma de pensar e de agir estava errada. Espero que muitos saiam daqui levando uma experiência de vida importante e sentindo o que sinto agora”, revelou.

Não há grupos para todos

A Lei Maria da Penha prevê, no artigo 35, que os governos banquem centros para educar e reabilitar agressores, mas é preciso procurar com lupa um serviço. Eles têm de 15 a 25 vagas e não recebem estupradores nem homicidas. Em outubro, São Paulo atendia 55 homens. Só à Vara da Barra Funda estão ligados 8,4 mil réus ou investigados. O grupo do Butantã, o mais novo, opera em caráter experimental e pode ser extinto se a prefeitura não arcar com as despesas. “Políticas públicas que promovam reflexões são urgentes”, defende Alexandre Shimura, psicólogo desse projeto. “A Justiça não garante que o punido deixe de cometer violência.” Há um curso na Polícia Civil e o da ONG feminista de Pinheiros, onde atuam Tales Mistura e outros três psicólogos – todos como militantes, sem receber salário. Eles atendem os encaminhados pela juíza Cavalcante. “Chamo 80 homens em uma audiência coletiva, falo sobre atitudes para a paz e proponho os grupos”, diz. “Antes, condenava um réu e não via resultados práticos. Preciso ajudar a mudar as suas mentalidades.” A ação dos grupos é positiva: a reincidência ali é, em média, de 11%. Em Taboão da Serra (SP), a promotora Maria Gabriela Manssur, coordenadora do Tempo de Despertar, acolhia 65% de reincidentes. Após o curso, 1% voltou à violência. Em 2015, uma lei municipal levou a prefeitura a assumir esse projeto e seus custos. Além da reflexão conduzida pelo filósofo Sérgio Barbosa, referência no tema há 20 anos, são oferecidas aulas de direitos humanos, empreendedorismo, saúde, masculinidade e sexualidade. Em Natal, o trabalho liderado por Erica Canuto ganhou, neste ano, o prêmio do Conselho Nacional do Ministério Público por reduzir a criminalidade, com zero de reincidência. A chave é mostrar que o homem não nasce violento. “Se ele acreditar que é algo da natureza masculina, imutável, não se livrará do problema. Mas mudará a atitude ao notar que foi autor de uma violência e pode se abrir para novas possibilidades”, afirma Canuto.

Leandro Feitosa, coordenador da ação no Coletivo Feminista, diz aos homens que o comportamento hostil não é doença, mas construção social, algo que se aprende olhando o pai, o avô, os tios: “Isso podemos transformar”. Seu colega Luiz Querido conta que levam às discussões jornais, filmes, temas da vida cotidiana. O pintor de paredes Pedro se beneficiou do mundo novo que se descortinou. Ele vive na periferia de Natal, onde só se ouvem tiros, xingamentos, brigas: “Num clima assim, um homem reproduz a violência em casa com a maior naturalidade”. Pedro descobriu no grupo do MP potiguar como funciona sua mulher: “Não podia imaginar que ela tem o direito de recusar sexo”. E viu que assumir tarefas domésticas e ensinar lição de casa aos filhos é gostoso. “Saí da escuridão e da malquerença.”

O homem está só

A pedido de CLAUDIA, um homem de 55 anos que não cometeu violência foi ao grupo do Coletivo Feminista, em Pinheiros. Ele conta suas impressões sobre a sessão:

“Sempre tive curiosidade sobre o comportamento humano. Leio revistas femininas para entender as mulheres e a mim também. No trabalho, no bar, na família não se fala dessas coisas. As mulheres se abrem com as amigas, a mãe. O homem não se revela a ninguém. Eu me solidarizei quando ali disseram que não sabiam que algumas coisas eram crime. A lei não é bem conhecida; muitos ignoram que gritar com a mulher virou crime. Fazer pressão psicológica também. Sempre foi errado, mas há um estranhamento em descobrir que agora dá punição. Nunca vi gente falar com tanta sinceridade: um homem comentou que tentou se matar; outro, que aprendeu em 16 dias na cadeia o que não havia entendido a vida toda. Achei ótima a maneira como todos tentaram desmobilizar um cara que, repetidas vezes, falava em matar a mulher. ‘Pensa nos seus filhos, pensa nos seus pais. Você vai acabar não só com ela mas com a própria vida’, argumentaram. Deram conselho a um rapaz: ‘Se ela quer transar com outro, sai fora. Não faça nada. Não vale a pena’. Os mais lúcidos viram espelho. Saí pensando que todo homem precisava passar por um grupo. Evitaria muita desgraça. E a vida seria melhor.”

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