Quem conhece a simpática Luiza Freitas pela primeira vez, nem imagina a história surpreendente que essa mulher tem para contar. E, com certeza, não faz ideia do quanto ela já sofreu. Natural de Iúna, uma pequena cidade no interior do Espírito Santo, Luiza nasceu intersexual e teve a vida cruelmente marcada pelo preconceito.
Intersexuais – ou simplesmente intersex – são pessoas que nascem com características biológicas de ambos os gêneros – o que antigamente a gente chamava de hermafrodita. A ONU estima que 1,7% da população nasce intersexual, ou seja, 1 em cada 58 pessoas – e isso é muita gente!
Biologicamente falando, há pelo menos 30 categorias diferentes de seres humanos intersexuais. Em alguns casos, apenas a contagem de cromossomos indica a intersexualidade, noutras situações o indivíduo possui órgãos genitais de ambos os sexos, por exemplo.
Luiza nasceu com pênis, vagina, testículos e útero e ovários. “Graças a Deus eu não sofri nenhum tipo de mutilação genital, porque nasci numa cidade muito pequena e lá nem tinha esse tipo de cirurgia. Mas fui registrada e criada como menino. Meus pais encaravam minha condição como deficiência”.
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Criada como menino, mesmo após a primeira menstruação
Aos 12 anos, Luiza começou a desenvolver trejeitos femininos e era xingada de “viadinho” pelos colegas. “Eu já me via como uma menina, queria passar batom e usar vestidos”, relembra.
A essa altura ela já havia menstruado pela primeira vez e, conversando com colegas, descobriu que não era um garoto como os outros. Mesmo assim, seus pais não admitiam que fosse uma mulher. “Fugi de casa com 13 anos, porque meu pai tentou me matar. Na delegacia ninguém me ajudou e lá também fui chamada de viado”.
Foi na igreja que ela conseguiu auxílio e, aconselhada por um padre, foi morar em uma comunidade católica em Santa Catarina. “Mas aos 14 anos tive que fugir de lá também, pois não era aceita como menina”. Dessa vez foi parar em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, e lá conseguiu enfim iniciar a transição para ter um corpo feminino. “Passei a morar com uma travesti que me ajudou no processo”, conta.
Abandono, silicone industrial e prostituição na adolescência
Luiza finalmente encontrou um ambiente onde era aceita como mulher, mas passaria a viver um novo pesadelo. “Além dos hormônios, fiz a besteira de colocar silicone industrial. Foi horrível e podia ter me custado a vida. Já fiz várias drenagens [para retirar o silicone], mas ainda tenho muitas dores”. Sem ter conhecimento sobre a gravidade do que estava fazendo, ela injetou o silicone em várias partes do corpo, inclusive no rosto.
Como se não bastasse, Luiza não tinha condições de pagar pela transição e precisou se prostituir, ainda na adolescência. “Eu não gostava [de me prostituir], mas com 17 anos, tive a sorte de fazer uns contatos para trabalhar com eventos”. E o que começou por acaso acabou virando sua profissão. Hoje, Luiza trabalha como produtora executiva de eventos.
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Só passou a ser aceita pela família depois de engravidar
Depois de uma infância muito confusa e uma adolescência marcada pelo sofrimento, Luiza estava finalmente vivendo uma boa fase. Ser mulher era uma enorme conquista para ela e na profissão as coisas também já estavam dando certo. Foi quando resolveu tentar fazer as pazes com o passado, em uma viagem à cidade natal.
“Meus pais continuaram não me aceitando, me chamaram de traveco e tudo quanto é coisa”, relata. Somente depois de dar à luz sua filha é que Luiza conseguiu ser aceita como mulher pela mãe – o pai já havia falecido na época.
Foi aos 32 anos que ela decidiu que queria ser mãe de produção independente. Na época Luiza ainda não havia feito a cirurgia para remoção do pênis, mas seu sistema reprodutor feminino funciona perfeitamente. A gravidez também fez com que ela conseguisse acelerar o processo judicial para ser oficialmente reconhecida como mulher.
“Precisei ter uma filha para provar para a justiça, para a minha mãe e para a igreja que eu sou uma mulher”. Hoje sua pequena Rihana tem 5 anos de idade.
Luiza também conta que, apesar da discriminação, nunca deixou de ser católica. “Antes de retificar meu nome, a igreja não me aceitava como missionária, pois na certidão eu ainda estava como homem”, relembra. Atualmente, ela trabalha como produtora de um padre e sua filha é cantora mirim na igreja.
Apesar de tudo, Luiza se considera uma pessoa de sorte
A história dessa mulher daria um livro e, aos 38 anos, ela já passou por muito sofrimento na vida. Apesar disso, acredita ser uma mulher de sorte. “Depois de 30 anos, passei a ser aceita pela sociedade e pela minha minha mãe. Mas e aquelas intersex e transexuais que não podem engravidar? Ou os intersex que são mutilados na infância? Isso tudo é muito triste”.
Ela cita o caso de um amigo que hoje sofre as consequências da mutilação. “O Daniel teve o órgão sexual cortado, porque a família quis criá-lo como menina. Mas ele acabou se descobrindo como homem e hoje sofre muito”.
Assim como a modelo belga Hanne Gaby Odiele, que revelou ser intersexual em 2017, Luiza defende que esse tipo de operação é inaceitável. Definir cirurgicamente o gênero de uma criança intersexual pode trazer muita dor e sofrimento, pois esses procedimentos são irreversíveis.
De uma vez por todas, precisamos deixar o preconceito de lado
É muito assustador perceber que pouquíssimo se fala sobre intersexualidade, por mais que essas pessoas representem quase 2% da população mundial. Aí não é de se admirar que os pais não estejam preparados para lidar com a chegada de um filho intersex.
Para Luiza o ideal seria poder registrar essas crianças como intersexuais, ao invés de obrigar a família a escolher um gênero para ser colocado na certidão de nascimento. Infelizmente isso ainda é muito difícil, apesar de não ser impossível. Mesmo assim, os pais têm a opção de tentar tratar isso com naturalidade dentro de casa, prestando atenção ao comportamento da criança.
“Deixe a criança seguir o curso dela, para ver como ela se sente. Mesmo que, por exemplo, ela tenha nascido com pênis, mas seja intersex a partir dos hormônios. Porque os hormônios vão mexer com o psicológico e é ela que precisa dizer qual é o seu gênero, não os pais e nem os médicos”. Luiza também acredita que os pais não devem ter medo de explicar à criança que ela nasceu diferente das outras.
E é justamente para tentar fazer com que esse assunto deixe de ser tabu que Luiza resolveu abrir sua história. Não dá mais para varrer o assunto para baixo do tapete, enquanto milhares de pessoas estão sofrendo por conta do preconceito e da mutilação genital. “Só comecei a falar sobre isso abertamente há cerca de um ano. Resolvi fazer isso, pois acho que assim conseguirei ajudar outras pessoas na mesma situação. Todo mundo tem o direito de ser feliz e ninguém merece passar pelo que eu passei”.