Outro dia li em algum lugar algo assim: “O maior medo de um homem quando vai para a cadeia é ser estuprado. Imagine o que é ser mulher e conviver com esse medo todos os dias.” É bem razoável concluir, portanto, que a maioria dos homens desconheça esse temor, já que a maior parte das pessoas não vai para a cadeia em nenhum momento da vida.
Você provavelmente já evitou mil coisas para não se colocar em uma situação que pudesse deixá-la em risco de ser violentada. Lembro-me de ter uns 10 anos e temer muito ir sozinha até a padaria da rua, que não ficava a mais de 50 metros de distância, quando queria comprar Coca-Cola. Ficava imaginando um homem me atacando, mas como eu estaria com os vasilhames (sim, faz tempo) de refrigerante nas mãos, qualquer coisa era só quebrar as garrafas na cabeça dele! Era uma fantasia, nunca havia acontecido nada comigo – e nunca aconteceu. Mas era uma fantasia fundamentada: ter medo de ser molestada é algo que somos ensinadas desde pequenas, pois só assim nos protegeremos.
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Naquela época, na minha cabeça de menina, também havia outra fantasia: quanto mais o futuro chegasse, mais modernos seríamos. Simples como uma reta. Bem, chegamos ao Brasil de 2015 e as coisas não são bem assim. Enxergo milhares de avanços no país nas últimas duas décadas. Mas também retrocessos apavorantes. E um deles tem nome, sobrenome, conta na Suíça e não paramos de falar dele há semanas. E vamos continuar!
Jornais e blogs têm mostrado exaustivamente os descalabros do Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e não preciso usar esse espaço para reforçar o coro de que, ao que tudo indica, esse senhor usou de métodos bem pouco éticos para acumular seu patrimônio pessoal.
Mas, na semana passada, outro descalabro moral: Cunha conseguiu aprovar um projeto de lei (PL 5069) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) que, entre outras, complica e limita o atendimento às vítimas de violência sexual.
De acordo com essa lei, uma mulher que alega ter sido estuprada não pode abortar num hospital, sem antes fazer a denúncia e ter um boletim de ocorrência em mãos para entregar ao médico. Caso contrário, o profissional da saúde será considerado cúmplice de um crime – e pode ser condenado a até dois anos de prisão.
O problema, sabe-se, é que a maioria das mulheres vítimas de algum abuso jamais vai a uma delegacia prestar queixa. Segundo dados do Ipea, mais de 500 mil pessoas (dessas, cerca de 450 mil mulheres) são estupradas no Brasil todo ano, mas as autoridades só tomam conhecimento de 10% desses casos.
Em outro ponto polêmico, o projeto permite que o profissional de saúde se recuse a fornecer medicamento que ele, pessoalmente, considere abortivo. Não entendo onde está a brecha para que a natureza de um procedimento como o aborto seja relativizada de acordo com o que as pessoas pensam dele. Ou é aborto ou não é. Mas, para Cunha e os aliados, não importa: se não é aborto, mas eu quero pensar que é, vale o que penso.
Em outras palavras, isso quer dizer que se algum atendente da farmácia não quiser te vender, por exemplo, a pílula do seguinte, porque considera errado você não querer engravidar, prevalece a opinião dele. Por que isso? A pílula do dia seguinte não é abortiva, apenas impede ou retarda a ovulação. Ainda assim, o medicamento sempre esteve no radar dos moralistas. Só resta concluir que apelar para o livre arbítrio foi a maneira dessa bancada encaixar um remédio não abortivo num projeto que reforça a criminalização do aborto.
“O projeto quer tratar é da liberdade de consciência. A consciência é inviolável. Não posso obrigar uma pessoa a ser coagida em relação a suas crenças”, disse o relator do projeto e deputado Evandro Gussi (PV-SP). Já para a deputada Maria do Rosário (PT-SP), isso não passa de uma manobra. Segundo ela, o PL 5069 seria a antessala da proibição da pílula do dia seguinte.
A lei ainda precisa ser aprovada pela Câmara dos Deputados, seguir para o Senado e, então, ir para a mesa da presidente da República. Mas já é escandaloso que isso esteja sendo discutido.
Embora alguns jornais e blogs considerem Cunha um problema para o Brasil, o PL5069 tem sido tratado como um problema exclusivamente feminino. Sim, o estupro é uma violência quase restrita às mulheres. No entanto, os homens não podem mais serem excluídos desse chamado.
Tempos atrás, conheci o trabalho de Mallika Dutt, indiana radicada em Nova York, que fundou a Breakthrough. A ONG atua no combate à violência contra a mulher e, em 2008, lançou a campanha Ring the Bell, alertando para o fato de que, às vezes, é preciso se intrometer numa briga de marido e mulher.
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Mais do que isso, a ação colocou os homens como agentes principais na mudança desse paradigma. Nos vídeos, são eles que aparecem para interromper brigas de casais que, pelo barulho, percebe-se estarem indo longe demais. A Breakthrough entendeu que, num mundo machista, um homem reprovar a atitude de outro tem um peso a mais – e usou isso com inteligência.
É preciso entender que a cada a mulher estuprada, além da imensa dor própria, todos ao redor dela são afetados por essa violência.
Está mais do que na hora de todos os homens serem efetivamente incluídos nas campanhas de violência contra a mulher. Eles também merecem isso.