“Não tive referências trans quando jovem. Quero ajudar quem não tem apoio”
A professora e influenciadora digital Leona Rodrigues relembra os desafios que viveu no processo de se identificar como mulher trans
“Tive uma infância feliz, apesar de já entender que eu era diferente e que muitos caminhos seriam mais difíceis. Eu sentia que dentro e fora de mim algo iria mudar. Meus pais e meus três irmãos sempre tentaram abrir espaço para o diálogo, mesmo com uma visão um pouco limitada sobre quem eu era e poderia me tornar. Lembro-me que foi aos 7 anos que a transexualidade aflorou em mim e, mesmo sem entender, eu queria coisas ditas femininas (vestidos, brincos, maquiagens). Tenho lembranças de dublar Diana Ross em frente ao espelho, usando roupas e acessórios da minha mãe, num momento que foi libertador para mim.
À medida que a adolescência chegava, eu sentia uma angústia indescritível do mundo que eu vivia e das minhas expectativas em relação a minha identidade. A adolescência pode ser bem cruel para uma pessoa trans e, na minha época de adolescente (final dos anos 90, começo dos anos 2000), as informações sobre diversidade e identidade de gênero eram defasadas e pouco acessíveis. Meu contato com amigas e o mundo feminino era cada vez mais intenso e eu já sabia que havia uma identificação dentro de características e gestos femininos.
Sofri muito bullying nessa época partindo dos colegas de escola e até de alguns familiares que não entendiam o porquê de eu ser assim. Foi nessa época também que tive minha primeira experiência com outro ser humano, que veio como forma de abuso. No ensino médio, eu frequentava a biblioteca de minha cidade, e foi lá, num espaço público e que deveria ser acolhedor, que eu conheci o meu abusador aos 16 anos. Eu não entendia o que era o abuso sexual e para mim isso tornou-se uma cicatriz que eu levo até hoje.
Naquela época, a única referência enquanto mulher trans que prosperou e que poderia me espelhar era a Roberta Close. Senti muita carência dessa representatividade durante minha adolescência e começo da fase adulta. Talvez se eu tivesse esse contato real com outras pessoas trans antes, minha história e minha transição teriam sido bem diferentes. Meu primeiro contato de fato com questões relacionadas ao meu gênero veio depois, aos 20 anos, quando conheci a vida noturna de São Paulo através de amigos. As boates LGBTQIA+ naquele tempo eram e são, ainda hoje, um turbilhão de cores e personas, singularidades tão especiais que me encantaram logo de cara! Existia uma balada na Rua Rego Freitas, que era o “reduto” de trans e travestis. Foi lá que eu me encantei pelas mulheres lindas, bem arrumadas e turbinadas (próteses de silicone e preenchimentos). Descobri que era aquela identidade que eu queria ter.
Logo após essa constatação dentro de mim, aos 21 anos, eu me casei. Já trabalhava como professora desde os 19 anos, então conciliar minha vontade de viver a vida que eu precisava viver e a vida que eu vivia era uma tarefa muito difícil e angustiante. Meu “marido” não curtia muito a ideia de eu ser afeminada e trazer esse mundo pra dentro do relacionamento. Aos poucos, as brigas se tornaram cada vez mais comuns e optamos por seguir nossas vidas separadamente. Foi neste momento em que eu decidi tomar iniciativa: começaria a me montar! Vestiria roupas femininas e usaria acessórios e maquiagem. Eu me identificava, então, como crossdresser, que é o termo para esse estilo de vida.
Com o crossdressing, estava chegando cada vez mais perto da minha identidade. Sentia dentro de mim uma felicidade sem tamanho e aquilo, durante um tempo, até me bastou. O problema era que a prática do crossdressing era para uma vida noturna, algo relacionado a realização pessoal e ao mesmo tempo um fetiche, mas comecei a perceber que era mais do que isso. Eu não queria me desmontar, não queria tirar a peruca ao final da noite. Eu era aquela mulher linda e incrível! Nesse momento, aos meus 23 anos, decidi que era hora de me “assumir” enquanto mulher.
Desde esse momento, ficou claro que já não havia mais espaço para uma identidade que não fosse feminina e, na companhia com uma amiga que também praticava o crossdressing, iniciei a terapia hormonal, a princípio por conta própria, aos 24 anos. Eu senti que aquilo era o certo, que todo aquele eu anterior estava se despedindo. Mas não foi fácil. Nunca é fácil.
Dizem que os amigos de verdade estarão com você em todas as situações da sua vida, das mais felizes às angustiantes, mas, ao me identificar enquanto mulher, pude sentir o desprezo e esquecimento de muitas pessoas que eu amava. Minhas melhores amigas, inclusive, acharam que era uma “moda ou fetiche” meu e que logo eu iria me identificar com outras coisas, novos projetos de vida. Isso nunca aconteceu. Aos poucos as pessoas que eu mais me identificava foram se afastando e poucas pessoas, incluindo familiares, abraçaram a Leona.
Eu costumo dizer em meu canal do YouTube e no Instagram que a primeira batalha que a gente trava quando se identifica enquanto pessoa trans é interna. Existem forças e pensamentos dentro de nós que nos derrubam e nos deixam mais frágeis à opinião alheia e ao modo de encarar o preconceito. Por incrível que pareça, os maiores preconceitos que eu vivi e tive que contornar a situação foram dentro do ambiente de trabalho, um lugar onde eu já havia construído uma trajetória de mais de 5 anos.
Foi muito difícil entender que as pessoas eram desprovidas de conhecimento a cerca da vida trans e isso me entristecia, me deixava furiosa e agressiva. Eu não percebia naquela época que muitas pessoas tinham afeto e respeito por mim. Não percebia que eu mesma estava afastando essas pessoas e que, mesmo sofrendo pequenas agressões diárias (não reconhecimento da minha identidade, brincadeiras, insultos disfarçados de opinião), havia ainda muita gente preocupada em me entender e cuidar de mim.
O processo de transição é um caminho, um projeto contínuo e sem previsão de término. A minha vida hoje é consequência de todas as dificuldades e realizações desse caminho e a mulher que eu sou hoje é muito mais confiante, segura e aberta ao mundo do que eu poderia imaginar. A autoestima de uma pessoa trans é muito influenciada por vários fatores como questões hormonais, tendências depressivas e transtornos de personalidade, rejeição familiar e de amigos e eu vivi tudo isso em cada descoberta sobre o meu corpo e o meu ser.
Eu sofro de depressão e já tive alguns pequenos e grandes surtos ao longo da minha vida. Num desses surtos, relacionado à minha disforia (transtorno relacionado à pessoa trans não se achar feminina/masculina o suficiente ou questionar sua beleza, aparência), eu senti a necessidade de desabafar, de conversar com alguém que pudesse me entender e ao mesmo tempo que pudesse ver minhas angústias e me ajudar na autoestima que eu por vezes não tinha. Eu já havia gravado uns vídeos no começo da transição (entre 2011/2012), mas por medo de sofrer bullying cibernético nunca cheguei a publicar. Foi apenas em 2017, por incentivo do meu atual namorado e da minha melhor amiga que, finalmente, mostrei minha realidade e a vida de uma pessoa trans. O YouTube foi um divisor de águas em minha vida.
Independente da minha identidade de gênero, sempre trabalhei com respeito e com um olhar mais aberto às agruras vividas pelos meus alunos. Trabalho desde o começo da minha carreira como professora em escolas periféricas e a maior parte desses 15, 16 anos dentro da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O desafio de tratar o respeito e a diversidade dentro de sala de aula para um público que vai dos 18 aos 70 anos é muito maior, pois a maioria deles tiveram uma criação e educação familiar totalmente diferente e condicionada à preceitos muito diferentes dos meus. É um trabalho de formiguinha e também muito satisfatório.
Depois de tantos anos na transição, os alunos e a comunidade escolar vêem em mim um exemplo de professora que luta, que persevera e que conhece a realidade deles. Eu sei de cor o nome de todos os meus alunos! Conheço a família de muitos pois dou aula na mesma escola há anos e minha transição aconteceu também dentro do ambiente escolar. Então quando entro em sala de aula sei que serei respeitada como a profissional que eu sou, sem distinções e sem questionamentos. Estou lá para trabalhar e é somente esse o meu papel naquele espaço.
Hoje, em razão da pandemia, estamos todos vivendo um momento de repensar em nossas prioridades e nosso modo de viver, de trabalhar e se relacionar. Pedi uma licença especial para isso da educação e estou tocando outros projetos. Meu foco está em levar conhecimento através das redes sociais e nos projetos de casas que acolhem pessoas trans e travestis em situação de rua. Cultivo o sonho de viver financeiramente através do trabalho na internet e poder continuar ajudando meninas e meninos trans que não tem referências pessoais e apoio familiar para iniciar uma transição segura com tratamento e acompanhamento médico. Pretendo ainda escrever meu primeiro livro e realizar o sonho antigo de ser mãe.”
Veja Também:
Homofobia e maus-tratos: o que internas de centro socioeducativo denunciam
EUA elege a primeira senadora trans da história do país