Contra a fome e pela natureza: projetos combatem o desperdício de comida
Eles juntaram o empreendedorismo, o amor pela gastronomia e a dedicação ao meio ambiente para criar soluções para o desperdício desenfreado de alimentos
“É melhor sobrar, do que faltar”. Essa expressão, feita principalmente na hora de fazer as compras no supermercado, parece inofensiva, mas fomenta a cultura do desperdício de alimentos que, além de trazer danos ambientais, também é responsável pela desigualdade entre quem tem muito o que comer e quem luta para não morrer de fome.
No mundo, 30% de toda a comida produzida por ano é desperdiçada ou se perde ao longo das cadeias produtivas de alimentos, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Isso é equivalente a 1,3 bilhão de toneladas de comida.
Dentro dessa estatística, 45% das frutas e vegetais produzidos do mundo são desperdiçados a cada ano, tanto no plantio quanto depois da colheita, nas etapas de processamento, distribuição e consumo, também segundo dados da FAO.
Diante deste cenário, algumas soluções estão sendo apresentadas para reduzir o descarte excessivo de alimentos, como, por exemplo, reaproveitar partes que são consideradas “restos” de legumes, verduras e frutas, como as cascas, talos e sementes. Isso é bom tanto para o meio ambiente, já que reduz o volume de resíduos, quanto para a nossa saúde, já que promove uma alimentação mais saudável e orgânica.
Pensando nisso, alguns projetos foram criados para disseminar o consumo consciente, estabelecer conexões entre produtores e consumidores e, ainda, reduzir os índices de fome no Brasil por meio da reutilização de alimentos e da capacitação de jovens no meio gastronômico. É o caso do Favela Orgânica, Fruta Imperfeita e Gastromotiva. Conheça a história e o trabalho de cada um desses projetos a seguir.
Aproveitando até o talo
Fundado pela chef de cozinha e empreendedora social Regina Tchelly, o Favela Orgânica nasceu nas comunidades Babilônia e Chapéu Mangueira, na zona sul do município do Rio de Janeiro, em 2011. Natural de Serraria, na Paraíba, Regina já tinha o costume de aproveitar os alimentos integralmente e ficou indignada com a quantidade de vegetais que eram desperdiçados nas feiras livres da capital fluminense. “Pensei que eu tinha que fazer algo para mudar isso”, conta à CLAUDIA.
Com um investimento inicial de apenas R$140, o projeto foi criado com a proposta de aproveitar integralmente os alimentos naturais, incluindo cascas, talos e caroços, por meio de receitas criativas. Além de reduzir o desperdício, a ideia é modificar a relação das pessoas com os alimentos, conscientizando-as acerca de sua própria alimentação, desde o planejamento das compras, até o preparo e o descarte.
“Conhecer sobre o ciclo do alimento e o aproveitamento dos alimentos transforma nossa relação com a comida e nos faz repensar sobre nossas responsabilidades enquanto cidadãos”, aponta Regina.
Para ajudar nessa missão, a Favela Orgânica criou ainda, junto com a Hellmann’s e o Facebook, uma plataforma para inspirar as pessoas a reduzir o desperdício de alimento. Denominada “Heróis da Geladeira”, o bot, disponível no Messenger, possibilita conversas entre especialistas e interessados em aprender a fazer a geladeira render. “A expectativa é que estas conexões se transformem em aprendizados para estimular as pessoas no início da jornada da mudança de hábito em relação ao desperdício de alimento”, finaliza.
Mas é realmente saudável comer talos, sementes e cascas?
Sim! Para tirar essa dúvida, CLAUDIA conversou com a nutróloga Nivea Bordin, da Clínica Leger, que nos garantiu que reaproveitar essas partes que seriam descartadas é realmente saudável. “A semente da abóbora, que é seca, quando ingerida tem efeito antiparasitário, bem importante pro intestino”, exemplifica. “Ela tem os macronutrientes (enxofre, fósforo, magnésio, cálcio e potássio) e micronutrientes (cobre, zinco, manganês e ferro), fibras e é excelente para o corpo.”
De acordo com a profissional, talos de couve e agrião também podem ser usados para o preparo de bolos. Eles são importantes porque têm vitaminas do Complexo B, além de vitamina A, C, K, minerais (potássio, ferro, cálcio e fósforo), que são substâncias essenciais para o funcionamento do corpo.
Já a folha da beterraba, por exemplo, pode ser consumida como salada e o talo pode ser refogado e consumido. São alimentos ricos em fibras, fósforo, zinco, magnésio, potássio, cobre, manganês, cálcio, ferro, vitaminas A, B6, C, e fonte de antioxidantes.
Imperfeitos são perfeitos
Você sabia que quando uma fruta ou legume não é produzido no padrão para venda (por ser maior ou menor do que o “normal” ou com um formato diferente), ele é desperdiçado? Para evitar que isso aconteça, o casal Roberto e Nathalia Inada fundou a Fruta Imperfeita, um e-commerce de frutas que estão fora do padrão estético do mercado, mas possuem o mesmo valor nutricional, e que são produzidas por pequenos produtores.
“Descobrimos o problema dos alimentos imperfeitos em uma conversa com um pequeno produtor de milho no interior de São Paulo. Toda sua safra de milho era vendida em bandejas de isopor e embaladas para uma rede de supermercados. Porém, parte da produção não era do tamanho adequado para a bandeja e acabava sendo descartada. Achamos isso um absurdo e vimos que isso acontecia com muita frequência e com outras variedades”, relata Nathalia.
Além disso, ela ressalta a importância da compra de alimentos imperfeitos como uma maneira de valorizar a agricultura familiar, que além de preservar a biodiversidade local, produz com menos (ou nenhum) agrotóxico e respeita os ciclos na natureza. Atualmente, a Fruta Imperfeita beneficia cem famílias de pequenos produtores.
“Passamos muito tempo da nossa vida com um modelo de consumo e mudar isso demanda um baita esforço. No começo é ruim e depois vai mudando, até que, finalmente, vira hábito”, declara. Com o projeto, já foram salvas mil toneladas de frutas e legumes que seriam desperdiçados por serem imperfeitos. “Acreditamos que pequenas mudanças de comportamento podem tornar o mundo um lugar melhor, por isso apoiamos o consumo consciente”.
Transformação social pela gastronomia
O potencial transformador da comida foi o que motivou o empreendedor social e chef de cozinha David Hertz a fundar a “Gastromotiva”, ONG que promove inclusão por meio da Gastronomia Social. O projeto é internacional, colaborativo e foi co-criado pela organização, que faz conexões entre cozinheiros e alunos para usar os alimentos como ferramenta de transformação e inclusão social.
Tudo começou em 2004, quando Hertz visitou a favela de Jaguaré, em São Paulo. Lá, ele começou o projeto Cozinheiro Cidadão, que tinha o objetivo de ensinar gastronomia aos jovens da comunidade. “A comida é uma poderosa ferramenta de impacto social, vai muito além de apenas nutrir. Carrega cultura, dignidade e pode ser um grande elo de aproximação entre as pessoas”, conta o chef.
Até hoje, a Gastromotiva trabalha capacitando jovens em vulnerabilidade social por meio da gastronomia e ainda prega o consumo consciente em suas oficinas. “É muito importante todos entenderem de onde os alimentos vêm”, defende. “Com essa visão, automaticamente queremos aproveitar integralmente os alimentos. A Gastromotiva forma todos os alunos com essa consciência, muitas vezes também como alternativa econômica”.