A ascensão e queda de Flordelis, em série documental
Mariana Jaspe, roteirista e diretora de 'Flordelis: Questiona ou Adora' conta como acompanhou os desdobramentos do crime que marcou a família da pastora
Mãe de 55 filhos. Pastora evangélica que arrastou uma multidão de fiéis. Deputada estadual do Rio de Janeiro, eleita com quase 200 mil votos. Condenada a 50 anos de prisão por mandar matar o próprio marido. Essa é parte da biografia de Flordelis dos Santos, cuja sentença no tribunal do juri chegou no dia 13 de novembro e encerrou, pelo menos juridicamente, o caso do assassinato do pastor Anderson do Carmo, que ocorreu na casa deles, no dia 16 de junho de 2009.
Antes que chegasse o veredito, a Globoplay lançou Flordelis: Questiona ou Adora, uma série documental que narra como surgiu essa grande família, como a mulher negra e periférica ascendeu socialmente e chegou ao poder institucional e religioso e como seu império pessoal ruiu, a partir do homicídio de Anderson (a HBO Max também prepara uma série sobre o caso). “É mais do que uma série de trume crime”, alerta Mariana Jaspe, roteirista e diretora da série. “A ideia não é contar a história de um crime, mas a história dessa mulher e de sua família”, continua.
Para isso, Mariana volta até o início dos anos 1990, na Favela do Jacarezinho, zona norte do Rio, onde Flordelis nasceu e cresceu. Foi ali que ela, que já tinha três filhos biológicos —Simone, Flávio e Adriano começou a abrigar crianças e adolescentes desamparados— tendo relatado acolher 37 deles em apenas uma noite. Anderson, então com 14 anos, foi um deles. Apesar de ter pais vivos e presentes, o adolescente, que virou líder do grupo de jovens da igreja que Flordelis e a mãe tocavam na comunidade, decidiu ir morar com a mulher por quem se apaixonou e com quem, anos depois, viria a casar. Ele tornou-se, então, figura paterna dos 55 filhos, entre biológicos, adotados (legalmente) e afetivos de Flordelis.
Em 1994, quando sai com a família numerosa do Jacarezinho e se muda para São Gonçalo (também no Rio), a então missionária fica conhecida na imprensa, com várias reportagens exaltando sua abnegação e imenso amor materno. A partir de então, sua fama só cresceria. Flordelis fundaria um ministério pentecostal com seu nome, tornando-se uma das mais importantes pastoras do Brasil, até que sua influência religiosa e capacidade de arrastar multidões a catapultasse à política institucional. “Quando ela surgiu como essa grande mãe de todos, a imprensa não fez questionamentos na época, porque a história vendia”, comenta Mariana. De fato, nas primeiras matérias protagonizadas por Flordelis, sobrava emoção, mas faltava um olhar mais atento e rigoroso. Só soube-se depois, por exemplo, da situação irregular da maioria das crianças acolhidas por ela: indocumentadas, sem registro de adoção formal.
“Essa coisa de querer dar ao público o que ele quer”, comenta Mariana, perpetuou-se durante a cobertura do assassinato de Anderson e o avanço das investigações sobre o crime. O Ministério Público acusou Flordelis de ser mandante do homicídio, com base, principalmente, em mensagens de celular trocadas entre ela e seus filhos, nas quais, entre outras coisas, queixavam-se da presença controladora de Anderson, responsável por administrar os negócios familiares. Flávio Santos Rodrigues, filho biológico da pastora, foi condenado por atirar contra o padastro, matando-o, e sentenciado a 33 anos de prisão. Além dele e da mãe, outras seis pessoas da família foram condenadas por participação no crime, e três foram absolvidas. Os celulares foram peças-chave na investigação, que também apurou o suposto envenenamento gradual de Anderson durante as refeições em casa e outras tentativas de assassiná-lo, bem como acusações de que ele assediava Simone, filha biológica de sua esposa.
“As matérias sobre envenenamento ou assédio sexual davam muito mais cliques do que aquelas sobre adoção. Isso ajudou no sensacionalismo do caso”, afirma Mariana Jaspe. “Não é uma historinha fechada. Todos naquela família compartilhavam uma narrativa muito heroica da trajetória deles e controlavam muito bem essa narrativa, até que o crime aconteceu”, acrescenta. Sua série documental mostra é que, após o homicídio, houve uma divisão na família, entre os que suspeitavam ou diretamente acusavam Flordelis e aqueles que a apoiavam. Como não houve confissões detalhadas, os próprios investigadores responsáveis pelo caso admitem que provavelmente “ninguém vai saber o que aconteceu de fato” naquela casa, no dia do homicídio.
Por isso, a série documental de Mariana apresenta o crime sem apontar o dedo para culpados. Ela apresenta Flordelis e Anderson quase como personagens esterilizados, dispostos ali, com suas respectivas narrativas, para que o público lance seu próprio veredito —ou levante as próprias dúvidas. “Flordelis é uma grande personagem. Como mulher negra e periférica que ascendeu socialmente, ela tem uma curva dramática que vende. Ela foi aprendendo a jogar o jogo da fama e acabou acusada de matar o marido, pai de suas dezenas de filhos. É praticamente uma novela de Walcyr Carrasco. Poderia ser uma super obra de ficção, mas é uma tragédia da vida real”, lamenta a diretora e roteirista.
Nessa exposição da história para além do crime, ela mergulha na complexa dinâmica familiar da família de Anderson e Flordelis, que funcionava quase como um organismo autossuficiente, com cada indivíduo desempenhando papéis bem marcados na vida doméstica e nos negócios. Todos trabalhavam na igreja ou em empresas e serviços que gravitavam ao redor do Ministério Flordelis. A obra de Mariana mostra como, depois da tragédia, alguns membros conseguiram se afastar “de forma mais saudável” do caos e reconstruir as próprias vidas, enquanto outros enfrentam dificuldade até mesmo de encontrar um trabalho simples. Pesa sobre eles o estigma de ser da família de 55 filhos da pastora que mandou assassinar o marido, com a participação de parte da prole. Mais uma faceta dessa história emaranhada, que, como diz a diretora, vai além do true crime para fazer mais um retrato social do país.