O estresse causado pela pandemia pode estar aumentando uma doença rara, a síndrome do coração partido. A observação revela que as mulheres – e os médicos – ainda negligenciam os problemas cardiovasculares, apesar deles serem os líderes no ranking de mortalidade feminina no Brasil
Seis meses após o início da pandemia da Covid-19, que paralisou países e enclausurou metade da população mundial, cientistas norte-americanos viram uma doença rara ter um súbito crescimento. Conhecida como síndrome de Takotsubo, a condição, que afeta especialmente mulheres acima dos 50 anos, está associada a eventos de estresse intenso, como a perda de alguém próximo, um desastre natural ou um tratamento médico intenso – três fatores que, separados, já são capazes de provocar sintomas semelhantes ao de um infarto, mas que apareceram combinados na vida de muitas famílias no último ano e meio.
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Não à toa a condição é também conhecida como síndrome do coração partido ou cardiomiopatia do estresse e decorre da liberação da altas doses de adrenalina na corrente sanguínea. A descarga pode ser tão intensa que leva a paciente à morte.
O avanço de uma doença incomum cujo fator de risco é o estresse intenso fez acender o alerta sobre como a pandemia e as perdas decorrentes dela se transformaram numa nova fonte de agressão ao já tão exposto coração feminino.
“Muitos pensam que é o câncer de mama que mais mata mulheres no Brasil, mas são as doenças cardiovasculares as responsáveis por uma em cada três mortes”, diz o cardiologista Evandro Tinoco, professor da Universidade Federal Fluminense, citando dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).
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“A pandemia trouxe ansiedade e tensões de toda ordem a um contingente de mulheres que já estava hipertensa, obesa e com diabetes”. Segundo a mais recente Pesquisa Nacional de Saúde, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 29,5% das mulheres têm obesidade no país. O diabetes também tem preferência por elas.
Liderado por médicos da Cleveland Clinic, nos Estados Unidos, o primeiro estudo a chamar a atenção para o problema da síndrome de Takotsubo viu sua incidência saltar de 1,5% a 1,8% para quase 8%, um índice quatro vezes maior. Na pesquisa, foram analisados dados de pacientes que chegaram ao hospital com sinais de síndrome coronária aguda entre março e abril de 2020.
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Para chegar ao diagnóstico, é preciso fazer exames específicos, como a ecocardiografia, que mostra a principal característica da doença, um arredondamento do ventrículo esquerdo que provoca falhas no bombeamento do sangue no organismo. Os pacientes sentem falta de ar, dor no peito, suor excessivo, arritmias e perda dos sentidos. Algo curioso ocorre no Takotsubo: não há entupimento nas artérias, mas uma tempestade anormal e súbita de adrenalina, o hormônio que prepara o corpo para uma situação de luta ou fuga.
Para investigar se algo semelhante estava ocorrendo no Brasil, a Sociedade Brasileira de Cardiologia iniciou um estudo inédito, que busca criar um registro nacional da síndrome de Takotsubo no Brasil, o terceiro do mundo, atrás apenas do Japão e dos Estados Unidos. Hoje, um total de 455 pacientes estão sendo monitorados em 27 centros espalhados pelo país.
O cardiologista Marcelo Montera, coordenador do estudo e também do departamento de insuficiência cardíaca do Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro, diz que ainda é cedo para estabelecer uma relação direta entre o aumento do índice da síndrome e o estresse da pandemia por causa da necessidade dos exames específicos para diagnosticá-la.
“Só é possível afirmar que uma pessoa tem Takotsubo se você colocá-la numa sala de coronariografia. Além disso, a própria Covid-19 pode dar miocardite com um aspecto parecido”, observa Marcelo. Os resultados devem ser conhecidos em breve.
“Muitos pensam que é o câncer de mama que mais mata mulheres no Brasil, mas são as doenças cardiovasculares as responsáveis por uma em cada três mortes”
Evandro Tinoco, cardiologista
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Mesmo sem ter os resultados prontos, os médicos não têm dúvidas que o coração da mulher precisa receber mais atenção. Apesar de liderar o ranking de mortalidade no Brasil e no mundo, o órgão é frequentemente negligenciado.
O périplo da gaúcha Eva Catarina Monteiro Przybilski, 60 anos, é um exemplo disso. Mesmo com um histórico familiar de doenças cardiovasculares e dos fatores de risco próprios – Eva fumou por 30 anos e tem hipotireodismo –, a aposentada conta que não recebeu alertas específicos para o coração nas suas consultas de rotina. O cigarro era sempre apontado como um vilão pelos especialistas, mas não era relacionado às questões cardiovasculares.
Só há cerca de um ano, Eva descobriu que o fôlego que faltava após percorrer distâncias curtas era o seu coração pedindo ajuda. O cardiologista ficou chocado com o que viu. Ela estava com insuficiência cardíaca, cardiomegalia (quando o coração aumenta de tamanho) e problemas na válvula mitral e no ventrículo esquerdo. “Caiu meu chão. Adoro cuidar da casa e me vi, de um dia para o outro, precisando de ajuda para fazer coisas básicas”, relata. “Meu corpo é um peso. Estou sempre cansada, com pernas e braços doendo”, lamenta.
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Pelo menos dois aspectos atrasam o diagnóstico de problemas cardiovasculares na mulher. O primeiro é uma questão social. “A mulher minimiza os sintomas. Às vezes, está infartando, mas não quer atrapalhar festa ou Natal”, descreve a cardiologista Walkiria Samuel Ávila, do departamento de cardiopatia na gravidez, no Instituto do Coração (Incor), em São Paulo.
O segundo aspecto tem a ver com o fato de os sintomas do infarto nas mulheres não serem iguais aos dos homens, mais difundidos. Enquanto eles sentem dores fulminantes no peito e formigamento no braço esquerdo, elas sentem sinais inespecíficos, como falta de fôlego e indigestão.
“Mulheres estão acostumadas a prevenir doenças femininas. Fazem papanicolau, ecografia e mamografia, mas esquecem de ir no cardiologista. Infarto não é doença só de homem, é de mulher também”
Walkiria Samuel Ávila, cardiologista
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A falta de cuidado e atenção médica ao coração feminino contrasta com as agressões aos quais o músculo é exposto ao longo da vida da mulher. “Desde a primeira menstruação, começamos um ciclo biológico em que o sistema cardiovascular vai sendo agredido”, explica Walkiria.
Vale para todas as etapas: puberdade, anticoncepção, gravidez, puerpério e menopausa. Com a primeira menstruação, a mulher recebe uma descarga maior de hormônios, como o estrogênio. Essa substância – que serve de proteção aos vasos sanguíneos, mas se torna perigosa em excesso – é o componente mais comum nas pílulas anticoncepcionais.
Seu uso indiscriminado, segundo a cardiologista, pode acarretar problemas em diversas partes do corpo, inclusive um maior desgaste do músculo cardíaco. Quem é cardiopata ou tem histórico familiar de doença cardiovascular precisa conversar com o ginecologista sobre outros métodos contraceptivos.
A gravidez também provoca sobrecarga ao coração, especialmente para quem já teve problemas anteriores. As mudanças fisiológicas no corpo agravam cardiomiopatias, podendo causar danos irreversíveis. De acordo com a OMS, a cardiopatia é a principal causa de morte em gestantes no mundo. Mesmo mulheres sem problema cardíaco prévio devem ficar alertas.
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A complicação cardiovascular mais comum na gravidez é a pré-eclâmpsia, uma hipertensão que aparece nos últimos meses da gestação em quem tinha pressão arterial normal até então. Às vezes, não há sintomas, ou eles se confundem com situações habituais da maioria das gestações, como retenção de líquido, inchaço, suor excessivo.
“Muitas vezes, condições como hipertensão e diabetes se instalam na gravidez e não vão mais embora”, alerta Evandro. Outro distúrbio comum a esta fase é a miocardiopatia periparto, uma intensa falta de ar no final da gravidez que pode indicar insuficiência cardíaca. O cansaço é normal no período, mas a falta de ar em excesso pode causar problemas para o resto da vida e até levar a mãe à fila de transplante. “O risco é baixo, mas quantas acabaram falecendo em casa porque não foram alertadas?”, questiona Walkiria. Se o problema for identificado e diagnosticado cedo, as chances de cura são grandes.
A terceira etapa da vida, a menopausa, também reserva um novo desafio ao coração, pois ocorre um declínio natural na produção de hormônios reprodutivos que protegem as artérias. Foi isso que aconteceu com Eva. Seu histórico familiar e seus fatores de risco pesaram mais quando ela passou pela menopausa.
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Para evitar que a idade se reverta em uma arqui-inimiga do coração, o melhor a ser feito é investir na prevenção. “A gente tende a pensar na medicina como tratamento quando a doença já está instalada, mas o grande segredo é tentar evitar problemas maiores e irreversíveis”, diz o cardiologista Anderson Donelli, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e especialista em cardiologia do exercício. Mais uma vez entra o combo que integra 100% das recomendações médicas: seguir uma alimentação saudável, rica em fibras e sem comidas ultraprocessadas, e praticar exercício físico regularmente.
Anderson sugere caminhar, correr ou andar de bicicleta pelo menos 30 minutos por dia – existem aplicativos que contam os passos dados e servem para medir idas ao trabalho ou ao supermercado como atividade física. Os treinos de força, como musculação, precisam entrar em cena duas vezes na semana. A prática de exercícios regulares não é só fundamental para manter o músculo ativo, mas servem como escudo de proteção ao estresse – o fator principal no surgimento das miocardiopatias, como a síndrome de Takotsubo.
E na próxima vez que for fazer um check-up, dê atenção especial ao órgão que concentra suas emoções. “Mulheres estão acostumadas a prevenir doenças femininas. Fazem papanicolau, ecografia e mamografia, mas esquecem de ir no cardiologista”, ressalta Walkiria. “Infarto não é doença só de homem, é de mulher também”.