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A geração de mulheres que põe o orgasmo em primeiro lugar

Mobilizadas pela reinvenção do feminismo, uma nova geração de mulheres demanda mais liberdade e coloca em primeiro plano a busca pelos próprios orgasmos

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 17 fev 2020, 13h20 - Publicado em 19 set 2019, 08h00
Sexo
 (Elisa Riemer/CLAUDIA)
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Em 1949, a filósofa Simone de Beauvoir escreveu em Segundo Sexo, obra que se tornaria referência para os movimentos feministas: “Na cama, a mulher aguarda o desejo do homem, espera, por vezes ansiosamente, seu próprio prazer”. Naquele momento, as mulheres lutavam pelo direito de trabalhar e, nas décadas seguintes, com a pílula anticoncepcional, ganharam mais autonomia para planejar a gravidez.

Hoje, não esperam mais pelo próprio prazer e guiam, elas mesmas, essa busca. Com a reinvenção do feminismo, na última década, estimulado pela discussão de ideias nas mídias sociais, uma nova geração de mulheres adentra a vida adulta com outras perspectivas sobre a sexualidade – mais centradas nelas e menos preocupadas em atender a convenções ultrapassadas.

Concentradas na faixa dos 20 aos 40 anos, se insurgem contra a violência nas relações, o descaso e a ignorância sobre o que lhes dá prazer. Além de poder decidir, elas querem gozar. Há um deslocamento sobre a percepção da sexualidade, que passa a incluir as mulheres no papel de protagonistas e tem o consenso como base na hora do sexo. Assim, não seria exagero afirmar que elas abrem frente para uma nova revolução sexual.

“Ainda que nas décadas passadas tenha se iniciado uma revisão comportamental, a grande mudança aconteceu nos últimos anos. A mulher não se expressava. Agora se permite fazer escolhas sem tanta culpa nem estereótipos”, afirma Heloísa Buarque de Hollanda, professora aposentada de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do livro Explosão Feminista: Arte, Cultura, Política e Universidade (Companhia das Letras).

Se antes as conversas sobre sexualidade feminina ficavam confinadas a grupos de amigas, com o que a socióloga chama de a “explosão” elas passaram a compartilhar experiências via redes sociais. Essa ampliação permite que o debate vá, pouco a pouco, atingindo diferentes perfis e gerações de mulheres.

“Hoje, até a mãe de família mais recatada tem acesso à internet, e sua cabeça já começa a mudar ao ter contato com as filhas, que vivem este momento”, explica Heloísa. Nesse espaço recente, por vezes, elas percebem que não são as únicas a enfrentar certas situações e a estar insatisfeitas com suas experiências sexuais. Ao mesmo tempo, trocam vivências positivas.

Após um relacionamento que não lhe trazia nenhum prazer e a deixava insegura para explorar o próprio corpo, a carioca Roberta publicou um pedido de ajuda em um grupo de Facebook que reúne mulheres de todo o Brasil. Conforme descrevia no post de 2016, Roberta não conseguia ter orgasmos e cada relação sexual era um fiasco.

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“Na época, eu tinha um namorado que rechaçava masturbação feminina, sentia nojo de sexo oral feminino e não se importava com meu prazer”, conta a jovem de 24 anos, estudante de pedagogia.

No entanto, suas questões eram ainda mais complicadas, remontando à infância – aos 8 anos, havia sido estuprada por um primo; aos 14, a relação que entendia como a do fim de sua virgindade também acontecera à força. Dali em diante, todas as suas experiências sexuais a lembravam das violências.

O contato com outras mulheres, ao vivo e virtualmente, fez com que despertasse para o impacto dessas vivências em sua sexualidade e a repensar a forma como a conduzia. “Passei a me masturbar, encontrei prazer no sexo ao me relacionar com homens com pensamentos mais abertos e me assumi bissexual. Agora, sou muito mais plena”, afirma. O nome dela e o de outras mulheres que compartilharam suas experiências com a reportagem foram trocados para preservar a privacidade delas.

A geração de Roberta admite a possibilidade de experimentar diferentes práticas sexuais e de não se limitar a identidades de gênero e orientação sexual predefinidas. “Surge a noção de sexualidade fluida, mais aberta à diversidade e mais livre de tantos estereótipos sobre o que é sexo”, aponta Carolina Ambrogini, coordenadora do Projeto Afrodite, que orienta mulheres sobre sexualidade e está instalado no Departamento de Ginecologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Romper com os estereótipos implica novas formatações para relações sexuais – isto é, foge ao protocolo que entende sexo apenas sob o ponto de vista das relações heterossexuais e da penetração – e para os papéis de gênero desempenhados. Em busca de parceiros que façam sentido, os nativos digitais usam ainda a tecnologia, o que inclui tanto os aplicativos de relacionamento quanto o envio e recebimento de sexts (termo em inglês para as mensagens e fotos de cunho sexual, mais populares entre os jovens).

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E, embora a qualidade das parcerias seja preponderante para definir quando e se terão satisfação, o prazer passa a ser entendido como algo a ser conquistado também por si mesmos. “Antes, eu acreditava que os outros me fariam ter experiências e que, se conseguisse namorados legais, isso se resolveria por si só”, conta Roberta.

Quando adolescente, Stella, curiosa com os mistérios do próprio corpo, obtinha informações de programas de TV para jovens, dada a quase inexistência de diálogo sobre sexo com a família. Foi o bastante para depreender que, antes de ter prazer com um parceiro, precisaria buscá-lo por si própria.

A percepção foi potencializada quando a advogada, hoje com 25 anos, ficou solteira após o fim de um relacionamento iniciado ainda na adolescência. “Comecei a me masturbar quando adulta, mas era muito mais difícil do que diziam. Eu não sentia absolutamente nada”, comenta sobre a situação, que se arrastou por anos.

Imaginava que o problema devia estar no seu corpo – se não se julgava capaz de ter orgasmos no sexo, quanto mais se tocando. Até que resolveu investir em vibradores. “Passei a conseguir guiar o meu parceiro com muita naturalidade”, diz Stella. Antes disso, durante o período de maior frustração, iniciou diversos testes na tentativa de sentir algum prazer. Deixou até a pílula de lado para entender como o ciclo menstrual, livre de interferências, poderia afetar sua libido.

Há dúvidas no meio científico sobre os efeitos da pílula anticoncepcional no desejo sexual feminino de modo generalizado, mas pode-se afirmar que as mulheres respondem de diferentes formas à sua ação – basicamente, a pílula injeta hormônios que acabam por impedir a ovulação.

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Durante a fase de testes, em 1956, com cerca de 1,5 mil mulheres em Porto Rico, foram ouvidas queixas sobre náuseas, tontura e dores de cabeça, mas a eficácia do procedimento era muito mais sedutora do que os malefícios apresentados por uma minoria. Reconhecida como um dos fatores mais importantes da revolução sexual vivenciada pelas mulheres na década seguinte, a adoção da pílula como método anticoncepcional universal é revisada agora pela nova geração.

“Muito pelo modo como a ginecologia se organiza, o corpo feminino é visto como algo a ser controlado. O oposto disso é o que tem acontecido, com as mulheres requisitando saber mais sobre si mesmas”, explica a ginecologista Halana Faria, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em São Paulo.

Nesse sentido, há o resgate de métodos não hormonais considerados obsoletos na prevenção de gravidez indesejada, como o diafragma (88% de eficácia) e o DIU de cobre (99% de eficácia), que, combinados ao uso da camisinha, têm êxito ampliado. Também entra nessa conta a adoção de métodos de percepção de fertilidade, como a análise do muco basal – sim, aquele que aparece na calcinha em diferentes consistências ao longo do mês – e da temperatura corporal.

Essa revisão é também reflexo de preocupações com uma vida mais saudável e sustentável e inclui outras opções, como a substituição dos absorventes descartáveis por coletores menstruais e calcinhas absorventes. Por fim, os homens passam a ser mais requisitados a se responsabilizar por contracepção também.

Sexo
(Elisa Riemer/CLAUDIA)
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Sexualidade controlada

Na prática, apesar de essas mudanças estarem atingindo parcelas maiores da população, muitas transformações de paradigma estão longe de se enraizarem na sociedade brasileira, que pouco discute uma educação para o livre exercício da sexualidade.

A iniciação sexual de jovens se dá muito mais com base na pornografia e na ideia de sexo penetrativo, com a mulher assumindo posição submissa. Ao mesmo tempo, há a educação pautada pelo medo de DSTs e gravidez. “Isso precisa ser transformado com um papo sobre o direito da mulher ao prazer, com espaço para que as pessoas possam viver sua sexualidade de maneira livre e não formatada”, indica Halana Faria.

Na falta de um debate que atinja a todos, a importância do prazer feminino e da liberdade para a mulher é especialmente negligenciada. “Sinto que mesmo entre amigas da mesma idade, mulheres que considero bem resolvidas, falar sobre essa busca por prazer sexual é tabu”, conta Maria Luísa, 24 anos, estudante de arquitetura, de São Paulo.

A percepção veio dias após mais uma relação casual, quando ela, que já estava iniciada na masturbação e no uso de vibradores, decidiu ir à uma sessão de terapia que se propõe a ajudar mulheres a encontrar seu potencial para orgasmos mais intensos (veja nossa seleção de iniciativas com esse objetivo em “Sob Medida para Elas”, a seguir). Abriu as janelas digitais de conversas com diferentes amigas e, de boa parte delas, recebeu feedbacks desinteressados.

“Foi completamente diferente de usar sozinha, fiquei muito entregue e surpresa ao notar que era capaz de mais”, revela. A jovem, que afirma ter dificuldade para se sentir à vontade no sexo, considera que a experiência repercutiu positivamente não só na sua sexualidade mas, sobretudo, em outras áreas da vida. Ao perceber que poderia ter mais plenitude sexual, quis maximizar outros resultados.

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“Coincidentemente ou não, me senti mais disposta e ativa. Fui atrás de outro estágio, com foco no que eu queria para minha carreira. Esse tipo de ação é muito diferente do meu comportamento habitual”, conta Maria Luísa. Como mulher solteira, ela está tranquila e não pensa em encontrar imediatamente um parceiro ideal, capaz de satisfazer todos os seus desejos – nem mesmo em se jogar em uma busca desenfreada pelo sexo perfeito.

Embora as mulheres tenham conquistado mais espaço, a livre manifestação de suas vontades no sexo enfrenta reações adversas – aqui incluídas múltiplas alternativas, desde violência física até pornografia de vingança. As agressões, frequentemente, giram em torno de estereótipos que determinam o comportamento das mulheres. As tentativas de exercer a própria sexualidade são condenadas.

“A mulher pode sofrer muitos reveses quando inverte a lógica do sexo pelo prazer masculino ou para a reprodução”, afirma a jornalista e escritora manauara Nadia Lapa, respaldada pela própria experiência. Em 2012, aos 31 anos, sofreu o que hoje seria chamado de linchamento virtual após criar um blog no qual relatava as aventuras sexuais do início dos seus 30 anos. “O que seria diversão se tornou um problema. Muitos comentários eram bastante cruéis, chegavam a detalhar como eu deveria morrer”, conta sobre as mensagens que recebia.

A motivação para as ofensas em grande medida estava no fato de ela ter resolvido transar com quem bem entendesse e narrar isso. As agressões se intensificaram quando veio a público que a autora dos relatos era gorda – e porque supunham que fosse do Nordeste.

“Eu pensava que experimentava minha sexualidade de maneira livre, mas tinha dificuldade em recusar a atender pedidos que não me agradavam”, lembra Nadia. Resolveu então relatar situações que a deixavam desconfortável nas relações e, a partir daí, houve uma virada no tipo de comentários em suas publicações. “Passei a receber também e-mails, por vezes de pessoas que eu conhecia na vida real, revelando que já haviam sofrido violências e abusos.”

Com a experiência, buscou referências para entender por que era alvo de tamanho ódio – e por que tantas outras mulheres eram submetidas a cenas degradantes durante o sexo. Encontrou na literatura feminista algumas respostas, logo no início da reinvenção do movimento.

“Não imagino que meus relatos teriam recepção diferente se fossem publicados hoje, mas acredito que teria maior proteção por parte das mulheres”, conclui Nadia. Sem que a repressão tenha se esgotado, elas criam novos escudos e formas alternativas de apoiarem umas às outras.

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