Visibilidade Trans: precisamos falar de cidadania
Temas como mercado de trabalho formal, preconceito, baixa escolaridade e vulnerabilidade ainda são realidade do público trans
A cidadania envolve direitos e deveres, ou seja, o que você tem por direito e o que você deve fazer e respeitar na sociedade como um todo. Ela nos assegura constitucionalmente direito a moradia, saúde, alimentação e educação. No entanto, há uma parcela da população sistematicamente privada desses direitos: a população transexual e travesti.
Hoje, as políticas públicas que envolvem a população T são mais assertivas, mas ainda são falhas, pouco eficientes ou até utópicas. No cenário ainda reinam a dor, desprezo e preconceito, e os números mostram isso. O Brasil mantém o título de país que mais mata transexuais no mundo, mesmo com dados que apresentam subnotificação por conta da pandemia, conforme dossiê publicado nesta sexta-feira (29), Dia da Visibilidade Trans, pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Ao questionar três transexuais e dois coordenadores de projetos para trans e travestis, as maiores dificuldades relatadas são: violência, preconceito, falta de oportunidade para estudo e trabalho formal, o que se agravou com a pandemia. “[…] não houve um único projeto específico de apoio a população LGBTQI+para o enfrentamento da pandemia.”, aponta um trecho do dossiê.
Estudo e Capacitação profissional
A baixa escolaridade da população T é algo muito presente, consequência da evasão escolar motivada pela fuga do lar precoce, baixa inclusão, violência, assédio e agressão, como aponta artigo da revista Ciência e Saúde Coletiva. Em consequência disso, muitos transexuais e travestis recorrem ao trabalho informal e prostituição.
Esses fatores são reflexo da violência e morte. Veja:
A transexual Luana Buenno, ao ser questionada sobre as dificuldades da capacitação profissional e empregabilidade, defendeu que estudar faz sim diferença. “O conhecimento e a forma como você se porta em cada lugar são para mim os dois pontos mais importantes.”, diz. Com Ensino Médio completo e curso de relações humanas, Luana mostra que há espaço no mundo para os T.
Marcelo Gil, da ONG ABCD’S, frisa que as parcerias com órgãos públicos e as políticas são muito importantes para estimular que essa população estude e se capacite. Um bom exemplo é o projeto “Cozinha e Voz” no ABC Paulista fruto de parceria com o Ministério Público do Trabalho. O curso, ministrado pela chef Paola Carosella, fornece capacitação, oportunidade de empregabilidade e também financiamento para 50 mulheres trans selecionadas.
“Dando visibilidade [ao público trans], você cria um projeto de empregabilidade, numa realidade em que não existem formas de indicação e de oferecer cursos.”, diz Marcelo.
Empregabilidade e informalidade
Um desafio resiste: a transfobia institucional. Estimativas da Antra apontam que apenas 10% do grupo trabalham registrados. 90% do público que trabalha de forma informal, recorre ao trabalho sexual.
“Sobre a empregabilidade, a questão é muito mais profunda. É preciso incluir nossa população em programas de capacitação primeiramente.”, aponta Jana Falcão, coordenadora da ONG ABCD’S e do FONATRANS. “No caso das profissões que não exigem escolaridade e experiência profissional, nossa desvantagem já é nitidamente situada por nossa identidade. Pessoas CIS, brancas, jovens e magras têm privilégios em seleções de emprego. Nos é negada a oportunidade de concorrer a uma vaga.”
Sobre a conquista de empregos formais durante a pandemia para as trans que têm acesso à ONG , Marcelo diz que “não conseguimos empregar ninguém” e diz que a invisibilidade desta população se intensificou.
Com a pandemia, a quantidade de pessoas T que se expõem na internet cresceu e o trabalho sexual nas ruas, que exige exposição à violência e ao vírus, continuou sendo uma forma de garantir subsistência, que não foi suprida pelo auxílio emergencial.
“Estimamos que cerca de 70% da população trans não tenha tido acesso às medidas emergenciais ou auxílio por parte do Estado, devido a questões como falta de documentação, acesso à internet e meios tecnológicos insuficientes, assim como dificuldade no preenchimento do cadastro, que sequer contava com campo para o uso no nome social, causando assim a exclusão de uma parcela significativa de nossa população da possibilidade de acesso à política insuficiente que foi disponibilizada pelo estado.”, aponta o dossiê.
Saúde
Mais uma das preocupações que assolam a população trans é com relação a vacinação contra a Covid-19.
“Se nas políticas públicas no campo da Saúde, que a nós são sempre excludentes, não houver mudança, na questão da vacinação não será diferente.”, aponta Jana Falcão.
“Marcelo Gil concorda e diz que “se for pelo fator geracional muitos vão ter direito a tomar a vacina, tem que ter esse acesso. O acesso é igual a todos e todas. Mas se não fosse esse fator, elas não teriam esse acesso.”
Esperança e representatividade
A Casa Florescer, que desde 2016 tem sido a representação da esperança para a população T em São Paulo. Auxiliada por políticas públicas, oferece escape a mulheres trans em estado de vulnerabilidade, contribuindo com abrigo, cursos e oportunidades de emprego, mesmo durante a pandemia da Covid-19. Nesse período, houve a conexão da associação com outras organizações que se sensibilizaram com a dinâmica das mulheres da casa.
“Algumas meninas conseguiram ser inseridas nos mercado de trabalho formal, porque mesmo com toda a dificuldade ligada à empregabilidade, a conexão com o corporativo fortaleceu o projeto como um todo”, explicou Alberto, diretor da Casa Florescer do Bom Retiro.
Jana Falcão, ressalta a importância de hoje ter representantes da causa T no legislativo: “É representatividade! Visibilidade que já está incomodando os conservadores, […] ocupando estes espaços de construção das políticas.”
Paula Teck Valéria, de 44 anos, criadora da ONG Portal pela Vida, que hoje, se intitula como produtora de eventos, cantora, apresentadora e feliz também incentiva: “Nunca foi fácil, nunca foi simples, mas sempre foi libertador.”