Lembro que 2015 foi um ano muito difícil para nós. Na Venezuela, os problemas de segurança ficaram ainda mais sérios. O número de roubos era alto e muitas pessoas eram sequestradas. Nem mesmo as escolas escapavam da violência. Crianças inocentes eram ameaçadas. Ouvi a história de uma garota que se recusou a dar um par de tênis e foi assassinada. A vida na Venezuela começou a valer um par de tênis.
A casa onde eu morava com minha família era considerada segura, tínhamos câmeras. Mas isso não foi suficiente para inibir uma tentativa de invasão. Fiquei com muito medo, não conseguia mais nem sair até o quintal. Depois começaram as ligações com ameaças. A situação ficou insustentável e fomos embora o mais rápido que pudemos.
Meu marido e eu decidimos vir para o Brasil porque tínhamos amigos aqui que sabiam da situação difícil que vivíamos na Venezuela e se disponibilizaram a nos acolher e nos ajudar. Eles foram nos buscar no aeroporto e ofereceram a casa deles até que a gente conseguisse os documentos necessários para alugar um espaço.
Contar com essa rede de apoio aqui no Brasil foi fundamental. Graças à ajuda de várias pessoas, alugamos uma casa e meu marido conseguiu trabalho. Ainda assim, o recomeço não foi nada fácil.
Não sabíamos como matricular as crianças na escola, por exemplo. Quando pedíamos informação, recebíamos como resposta “não sei, não entendo, não consigo te ajudar.” Foi então que comecei a perceber que quando você é forçado a deixar seu país, você perde uma parte da sua identidade.
Com o apoio da Caritas São Paulo, organização parceira do ACNUR, comecei a sentir que estava recuperando meus direitos. Com mais informação, a gente se comunicava com mais propriedade. Tudo ficou mais claro. Entendemos, por exemplo, que tínhamos direito de abrir uma conta bancária como refugiados. Imagino que quem não tem essa ajuda passa anos sem esses direitos básicos, até sem documentação. Então a vida do refugiado sempre tem desafios, eles nunca acabam.
A revalidação do meu diploma de terapeuta ocupacional é um desafio que ainda não consegui vencer. Comecei o processo assim que cheguei no Brasil, mas não sabia que seria tão complicado. As pessoas se impressionavam com meu currículo: tenho especialização para trabalhar com crianças especiais e autistas. Mas não ter um diploma reconhecido foi um obstáculo e não consegui continuar exercendo minha profissão de formação.
Foi então que comecei a transição para trabalhar com gastronomia. Minha prioridade era ter uma boa renda, então o sonho da revalidação do diploma passou para um segundo plano.
Comecei vendendo comida na rua, mas depois comecei a participar de eventos corporativos e feiras gastronômicas. Como outros empreendedores, senti o impacto da pandemia nos meus negócios. Logo procurei outras maneiras de vender. Agora tenho um delivery mais estruturado para o atendimento online. Compartilho com amigas refugiadas essa preocupação de quando as coisas vão voltar a ser como antes. Quem tem filho, sempre se preocupa mais.
Ser mãe não é nada fácil. Ser uma mãe longe de sua casa e sua família é mais difícil ainda. Meus três filhos sofreram muito com o recomeço aqui no Brasil. Sentiam muito medo de ficarem longe de mim, era difícil sair para trabalhar, faziam perguntas que nem eu sabia a resposta. Muitas vezes senti vontade de chorar. Mas por eles, eu sorria.
Minha filha foi quem mais sentiu o impacto de todas as mudanças. Ela chorava muito, não conseguia dormir e tinha pesadelos. Precisamos buscar apoio psicológico. Aos poucos, ela e os irmãos vão entendendo que nossa família não teve outra escolha a não ser sair da Venezuela.
Acho que saber disso deixa todos eles com mais saudades ainda de quem ficou lá, principalmente da avó. Eu não vejo minha mãe há quatro anos e não sei quando vamos nos encontrar novamente.
Em maio de 2016, ela sofreu um acidente grave e sobreviveu. Desde então, o dia das mães virou uma data ainda mais importante para a família. É um momento no qual, mesmo distantes, estamos todos juntos para celebrar o renascimento da minha própria mãe.
Sei que ela sofre muito porque todos os netos estão crescendo longe dela. Acho que em um dia das mães perfeito, eu estaria junto com minha mãe, avó e filhos. Essa realidade hoje parece distante, mas não perco as esperanças de que esse dia vai chegar.
Para ajudar refugiados acesse doar.acnur.org.
* Yilmary de Perdomo, 37 anos, tem dois filhos e um enteado. Mora no Brasil há quatro anos. Na Venezuela era terapeuta ocupacional, aqui tem um negócio próprio de gastronomia.
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