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“Misturaram sabão em pó na nossa comida”, conta Joana

Joana Silva, de 37 anos, conta como entrou no crime organizado e o que viu dentro da penitenciária de Sant'Ana, em São Paulo

Por Isabella Marinelli | Com: Ana Laura Pádua, Débora Stevaux, Mariana Ramos e Mariana Zancanaro
Atualizado em 8 jun 2017, 18h26 - Publicado em 16 fev 2017, 16h36
 (Débora Islas/)
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“Você acredita que quando tava lá inventaram o latão? Cara [sic], existia o latão da cerveja e eu nunca tinha tomado! A primeira coisa que fiz quando eu saí foi comprar uma”, conta, aos risos, Joana da Silva*, de 37 anos, sobre seus primeiros momentos de liberdade após o segundo período em que permaneceu encarcerada, em São Paulo. Por ter trabalhado durante seu período no cárcere, deixou a unidade com uma pequena quantia de dinheiro — parte dela usou para refrescar a garganta e a alma com o néctar da cevada.

Foi assim que começou a contar sua história, quando nos encontramos com sob o viaduto Guadalajara, que liga o Largo Ubirajara ao Largo São José do Belém, na zona Leste da capital. O espaço é oficialmente da Igreja Católica, que mantinha o Centro Comunitário São Martinho, área de apoio a moradores de rua em parceria com o governo municipal. Há alguns anos, entretanto, o local foi esvaziado e trancado. Somente em maio de 2016, alguns sem-tetos, vindos de outros viadutos e comunidades ameaçadas, ocuparam o espaço. Parte da solidificação da empreitada se deve à Jo, que resolve problemas de outros moradores, toma decisões e compõe o coletivo.

A jovem de cabelos cacheados e olhos profundos nem sempre morou lá. Até seus 17 anos vivia com os pais e estava matriculada na escola. Levava uma adolescência tranquila e, entre os flertes típicos dessa fase de descoberta, se apaixonou por um rapaz, com quem engatou um relacionamento. Sua memória é traidora neste momento da narrativa e ela não sabe precisar ao certo quando, de fato, sua vida começou a mudar.

O namoro era estável, diferentemente do parceiro. Como nos clássicos ciclos de violência, ele ficava cada dia mais agressivo. Em rompantes, o jovem se tornava um algoz e o romance terminou após seguidos episódios de violência doméstica. Com tom de pesar, relata que colocou um ponto final na história, mas nunca voltou para casa. Já em tom confessional, rememora as lições sobre honestidade e trabalho compartilhadas por sua mãe, dona Luciana * Alice da Silva. “Quando era adolescente, achava tudo uma grande caretisse”, desabafa.

A essa altura, já estava envolvida com atividades ilícitas — entre suas menções, a falsificação de cheques. Não demorou até que fosse encontrada pela justiça pela primeira vez. Aos 20 anos de idade, Joana* conheceu o cárcere.

Segundo os dados mais recentes do Ministério da Justiça, divulgados em 2013, ela se enquadra nos padrões das mulheres encarceradas no Brasil. O Censo informa que a faixa etária dominante nas unidades prisionais vai de 18 a 24 anos. Não para por aí: assim como Silva, 67% não completaram o ensino médio e 54% identificam-se como negras.

Foram longos 356 dias privada de seu direito de ir e vir aguardando julgamento até que ganhou o direito de responder em liberdade enquanto tramitava a sua transferência para a Penitenciária Feminina da Capital. Fragilizada, neste momento, a moça amargava uma tuberculose. Elaborado pelo Ministério da Saúde, um relatório datado de 2005 afirma que “A carência de atenção à saúde e a precariedade de espaço físico são fatores que as predispõem ao contágio e ao adoecimento pela tuberculose. […] É um dos mais sérios problemas de saúde pública nas unidades prisionais brasileiras, sendo responsável por altas taxas de mortalidade, com índices de incidência muitas vezes superiores aos encontrados na população geral brasileira”. Ainda que diagnosticados, sua doença e sistema penitenciário, nada foi feito por seu tratamento na ocasião.

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Em liberdade, foi a duas audiências: uma na presença da vítima, que depôs a seu favor, e outra na presença do policial. Depois da sentença do juiz, entretanto, não se apresentou, tão pouco esteve nos encontros com a defensoria pública.

De 2001 até 2006, Joana* esteve foragida. Foram cinco anos morando na rua e “se virando como podia” até que, durante os ataques do Primeiro Comando da Capital em maio de 2006, foi presa. Ao ser capturada em Arujá, foi para uma delegacia, onde ficou por quatro meses aguardando transferência. A sentença do artigo 157, que é de roubo mediante a grave ameaça ou violência, previa o regime semiaberto. Depois de sumariar outros processos, o juiz voltou atrás e decidiu por reclusão total — cumprida na Penitenciária Feminina de Sant’Ana.

Lá, não recebia visitas. Da primeira vez encarcerada, contou à mãe. De início, a senhora não acreditou, achou que era uma brincadeira de mau gosto. Para evitar desconforto e poupar a sexagenária, optou pela solidão.

Sua escolha foi desrespeitada por um antigo vizinho de Guarulhos que, durante uma visita ao centro de detenção, reconheceu a amiga de infância entre as presas. A esposa estava confinada e por meio dela conversou com Joana, que, na ocasião, pediu encarecidamente que a família não fosse informada.

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Por nunca receber visitas, costumava compartilhar esse momento de outras formas. Ela esperava as outras famílias, como se fossem a sua, nos portões. Ajudava a carregar sacolas com cobertores, alimentos, itens de higiene e todos os presentes que chegavam com os entes queridos.

Esse é um dos raros momentos em que rotina da cadeia sai do eixo. No xilindró, todos os dias são iguais. As refeições, os horários, as tarefas, os percursos. Nada muda — exceto nos dias de festa, como Natal. As visitas agitam o movimento, mas também mexem com a lida diária. Vem com elas os suprimentos negligenciados pelo Estado. “Eles fornecem um kit higiene a cada um ou dois meses, com duas pedra de sabonete, um pacote de absorvente, um rolo de papel higiênico, uma pasta de dente. Nada além. Isso acaba rápido”, revolta-se Joana. Por isso, faltam muitos produtos. Vale lembrar que, quando falamos de mulheres, o quadro é agravado.

O sistema carcerário brasileiro as trata exatamente como trata os homens. Isso significa que não lembra que elas precisam de papel higiênico para duas idas ao banheiro em vez de uma, de papanicolau, de exames pré-natais e de absorventes internos“, sentencia Nana Queiroz, jornalista e autora de “Presos que menstruam” (Editora Record, 2015), em seu livro — que entrega as feridas das penitenciárias femininas. Ainda segundo o Ministério da Justiça, em 2013 eram 36.135 reclusas em um sistema que só é capaz de abrigar 22.666.

Não bastasse, vez ou outra, a polícia — não se sabe o motivo ou sob qual instrução — entra nas celas e leva tudo. Joana conta que presenciou situações em que misturaram sabão em pó aos alimentos levados por familiares e confiscaram cobertores. “Como alguém pode sair recuperado de um lugar assim?”, questiona-se. Também se lembra de momentos em que, ao cozinhar o feijão, viam-se bichos boiando na água.

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Quem não tem família ou amigos para ajudar está sozinho. Por essa necessidade, muitas encontram meios de ganhar algum dinheiro. Lavam roupa, fazem crochê, pintam as unhas umas das outras. Tudo no improviso, nada técnico ou profissionalizante, é claro, apenas quebra-galhos para conseguir o básico. A mãe de Derick, de um ano, trabalhou por muito tempo na cozinha. Era responsável pela salada. Já viu bichos misturados aos alimentos que chegavam, especialmente no feijão. Garante que as meninas da cozinha fazem o melhor com o pouco que têm. “Mas não sei o que acontece no caminho até o refeitório. O sabor da comida muda, entende? Chega tudo azedo”, conta.

Esse trabalho permitiu que ela acumulasse uma quantia de dinheiro, depositada em uma poupança particular, que só pode ser reavida em liberdade. Foi com esse valor que comprou o latão de cerveja e deu seus primeiros passos de independência. Mudou-se para uma comunidade na zona leste de São Paulo, conseguiu alguns poucos móveis. Conheceu seu atual companheiro — que também estava preso, mas cumpriu o que devia. Pegou trabalhos de manicure para tocar a vida.

Joana* conta que você não sai a mesma pessoa. Hoje, se sente mais insegura, não consegue confiar nas pessoas – está sempre à espera de um golpe ou de uma surpresa negativa. Anda nas ruas com medo.

Sua carta de alforria está nos livros. Ela terminou de cursar o ensino fundamental e agora faz supletivo para garantir o colegial. Quer um trabalho de carteira assinada. “As pessoas dispensam o candidato na hora quando veem a ficha, dizem que não estão precisando, inventam uma desculpa qualquer, mas você sabe o motivo”, relata. Até mesmo os concursos públicos pedem ficha criminal.

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O desejo latente, agora, é a casa própria. Na época da entrevista, no fim do primeiro semestre de 2016, abrigava-se em um quarto privativo na ocupação sob o viaduto, mas dizia que, por lá, era uma espécie de faz-tudo. “Preciso cuidar de muitos problemas além dos meus”, divertiu-se, aos risos. Durante nossa visita, foi procurada inúmeras vezes pelo carinhoso apelido de “tia”.

Hoje, pula de casa em casa, mas não tem onde morar. Foi expulsa de casa pelo ex-companheiro, pai de seu filho, depois de ter apanhado dele. Na rua, foi estuprada e quase morta, não fosse pela ajuda de desconhecidos.

Por enquanto, conta com a solidariedade de conhecidos, enquanto junta dinheiro para alugar um quarto e seguir a vida ao lado de seu menino.

*Nomes alterados pela segurança da personagem.

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