Quatro mães contam como é ter filhos transgêneros, como Ivan
Estas mulheres mostram como lidaram sem problemas com a descoberta de seus filhos não se identificavam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento
Quem acompanha a novela A Força do Querer consegue perceber os conflitos entre as personagens vividas pelas atrizes Maria Fernanda Cândido e Carol Duarte. As brigas se devem ao fato de Joyce não aceitar o filho como um homem transgênero.
No capítulo desta terça-feira (29), a personagem de Carol, que nas últimas semanas vem realizando a transição de gênero por meio do tratamento hormonal, passa a assumir o nome de Ivan após uma discussão recheada de mágoas e desabafos com a mãe Joyce e a família.
Se no mundo da ficção Ivan não tem o apoio da família para a compreensão de sua identidade, na vida real quatro mães mostram como lidaram sem problemas com a descoberta de seus filhos transgêneros.
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Ana Zuleide Mendanha, 60 anos. Mãe de Samanta, 25 anos.
Ana Zuleide com a filha Samanta
“Eu sempre tive vontade de ser mãe. Samanta é minha filha única, fruto de um namoro que não deu certo. Ser mãe traz um sentimento muito gostoso. Um filho é como se fosse uma continuação nossa. É um ser que nasceu de mim. Eu tenho muito orgulho de minha filha.
Vejo que é uma pessoa muito humana; que luta por uma causa. Samanta é uma mulher transgênero. Faz dois anos que tive essa revelação.
Durante a infância, nunca percebi o que acontecia. Quando pequena, com uns 5 anos, Samanta gostava de brincar de bonecas. Eu nunca vi isso como errado. Sempre acreditei que brinquedo não tem gênero. A sociedade que nos impõe esta divisão.
Porém, acabei levando-a para consultar uma psicóloga. No meu íntimo, eu não via nada de errado. Mas e o medo de estar fazendo algo de errado sem saber?
A psicóloga, então, confirmou minha teoria de que brinquedos não eram divididos por gênero. Mas, aconselhou para que eu não incentivasse minha filha a prosseguir com as brincadeiras.
Eu acatei o conselho em um primeiro momento. Me doeu e em Samanta também. Percebi que ela se entristeceu com a proibição. Na época, chegou a comentar que queria ter nascido como as meninas e eu perguntei o porquê. ‘Porque as meninas podem usar brincos, vestidos, batons e brincar com as bonecas’, ela me respondeu.
Decidi esquecer o conselho da psicóloga e deixei a menina brincar. Ela voltou a ser uma criança feliz.
Até que chegou a adolescência e minha filha se tornou uma pessoa calada, reservada, que ficava muito tempo no quarto, na dela, e que evitava a família.
Seu comportamento tinha um motivo: Samanta estava entendendo sua orientação sexual. Naquele tempo, ela descobriu que gostava de homens e mulheres e se sentia confusa com a ideia. Eu perguntei se o modo como a criei havia influenciado de alguma maneira. ‘Você me deu a felicidade de poder brincar’ foi a resposta que recebi.
Cinco anos depois tivemos outra conversa. Quando Samanta estava com 23 anos, resolvemos fazer a viagem para Salvador. Foi lá, na Bahia, que ela me contou que se identificava como uma mulher. ‘Mãe eu tenho uma coisa para te contar. Eu sou transgênero. Estou decidida a lutar pelo que eu acredito e pela minha felicidade, tendo ou não a sua benção.’
Minha reação imediata foi de angústia. E se os procedimentos de mudança que ela pretendia fazer dessem errado? Fiquei com medo, mas sabia que não tinha muito o que fazer a não ser apoiá-la.
Hoje fico feliz que tudo deu certo. Sabe, antes de Samanta eu não entendi muito bem essa história de transgêneros. Mas agora eu entendo melhor. Minha filha despertou em mim a vontade de lutar por essas pessoas cuja família não as aceitam. É preciso entender que os trangêneros não escolhem ser quem são. Eles nascem assim.
Eles já são excluídos da sociedade, da igreja… Se a família não os apoiar, o que vai ser dessa pessoa? Precisamos apoiar nossos filhos.”
Glaucienete dos Santos, 59 anos. Mãe de Pietro, 23 anos.
Pietro e Glaucinete, ao centro, com a família
“Eu vim para São Paulo quando tinha 16 anos. Nasci em Jaguaribe (CE), mas morei até a adolescência em Fortaleza quando decidi vir para São Paulo. É aquela história: vou embora, tentar a vida.
Chegando em São Paulo, acabei trabalhando em uma tecelagem no Brás como ajudante de serviços gerais. Não conhecia ninguém. Mas pouco tempo depois, conheci o pai dos meus filhos.
Eu tenho três filhos: Shirley, 32 anos, a mais nova, Kelly, 22, e o do meio que se chama Pietro, hoje com 23 anos. Criei os três sozinha, já que o pai foi embora de vez quando a mais velha estava com 11 anos.
Pietro sempre foi muito precoce. Foi o primeiro a andar da turma da escola. Também era muito agitado quando criança. Danado. Brincava muito de futebol.
Foi na escola que Pietro manifestou sua primeira insatisfação com o corpo que nasceu. ‘Eu queria que minha mãe trocasse meu nome por Raísso e que não fosse Raíssa’, disse uma vez para a professora da 1ª série.
Não era só o nome que incomodava meu filho. Ele não gostava quando eu comprava vestidos, roupas com estampas de flores pra ele. Sempre preferiu camisetas e bermudas.
Meu filho Pietro é um rapaz transgênero. Apesar de sempre ter se sentido desconfortável, ele só revelou o que sentia e tomou a decisão de me contar aos 17 anos; no ano passado veio a notícia de que desejava fazer a transição de gênero.
Confesso que num primeiro momento me doeu muito. Estava acostumada tratá-lo de uma maneira e agora teria que aprender a enxergá-lo como um rapaz.
Mas a gente vai se acostumando. De vez em quando, ainda fico confusa. Mas eu jamais vou falar que Pietro não pode ser quem ele é. Filho não é um objeto que você tem e vai jogando por aí. É preciso respeitá-lo, defendê-lo.
Outro dia fui ao mercado com Pietro e dois homens começaram a tirar sarro dele. Pietro não sabe, mas assim que eu o deixei em casa, voltei para o mercado e o defendi. Onde já se viu zombar do menino? Disse para os homens não fazerem isso. E se fosse com a família deles?
Eu sempre vou defender meu filho. Eu só não o aceitaria se ele fosse ladrão, assassino. As pessoas falam que ser transgênero é coisa do demônio. Para mim, coisa do demônio é matar e roubar. Eu hein!”
Eliane Maria de Assunçao Miranda, 56 anos. Mãe de Carla, 33 anos, e Suellen, 29 anos.
Da esquerda para a direita: Suellen, Eliane e Carla
“Desde solteira, eu sempre quis ter filha mulher. Sempre achei que as mulheres são mais fáceis de conviver do que os homens. Não sei se pensava assim porque tenho seis irmãs e três irmãos. E eu gosto muito de ser mulher.
Quando eu estava grávida de Carla, 33 anos, meu cunhado me viu andando e me alertou sobre a gravidez. Na época eu nem desconfiava que esperava uma criança dentro de mim. ‘Você está grávida. Sei pelo seu tornozelo. Vem aí um menino.’
De fato, eu dei à luz um menino biologicamente. Mas minha filha nunca se identificou assim.
Desde pequena, Carla se identificava como uma mulher. Ela adorava brincar com bonecas e as roupas que eu comprava para ela sempre lhe incomodavam. Eu explicava que não tinha muita variedade de peças masculinas no mercado. Mas ela dava um jeito.
Um dia cheguei em casa e Carla estava com um bermuda muito apertada. Não me lembrava de ter comprado uma bermuda tão agarrada ao corpo. Então percebi que o ajuste tinha sido feito por ela mesma.
Mais tarde, descobri que Carla vestia minhas saias quando eu não estava em casa. Ela tinha uns 12 anos na época. Fazia tudo escondida. Até que um dia decidiu ir para a igreja usando um vestido meu de mangas compridas na frente de todos. Eu aceitei. Vou ficar lutando contra a menina? Eu não. Lutaria se minha filha fosse um trem ruim, uma bandida, uma traficante. E ela não é.
Carla serviu de inspiração para minha outra filha transgênero, acredito. Suellen também não se identificou com o corpo que nasceu. Porém, ao contrário de Carla, eu nunca desconfiei.
Quem me contou sobre Suellen foi minha outra vizinha. Morávamos em Contagem (MG), na época. Minha caçula ia para a casa das amigas se vestir com roupas femininas escondida.
Decidi conversar com Suellen sobre o assunto e ela me contou o que se passava com ela e Carla. Foi nesta conversa que eu entendi que minhas filhas são mulheres transgêneros.
Na hora eu compreendi, mas também fiquei surpresa com a notícia. Afinal Carla sempre deu sinais de insatisfação com o corpo, mas Suellen não. Porém, eu procuro ver as coisas como são e não como um problema.
É muito triste quando um pai ou uma mãe rejeita seu filho e sua filha trans. Por isso é que eles não se sentem acolhidos pela sociedade. Eles tiem a percepção de que nunca serão aceitos.
O que eu sempre digo a minhas filhas é que elas precisam se aceitar. Até os 19 anos Carla chorou muito por não se aceitar. Um dia eu cheguei e falei para ela que se eu pudesse engoli-la para fazê-la da forma que a fizesse feliz, eu faria. Mas que não podia. Então que era preciso se aceitar para ser feliz.
A sociedade ainda tem uma mentalidade muito atrasada sobre este assunto. Se elas não se aceitarem, como os outros poderão enxergá-las como pessoas comuns?
Para os pais, o meu conselho é que eles se coloquem nos lugar dos filho. Um dia eles vão acordar e pode ser tarde para se arrepender. Quantos transgênero não morrem diariamente no país?”
Eide Aparecida Galicia, 70 anos. Mãe de Claudio, 44 anos.
“Eu tenho três filhos. Duas mulheres, a Carla, 42 anos, e a Andreia, 40 anos, e o mais velho, o Claudio, 44 anos. Trabalhei a vida inteira para poder sustentar meus filhos. Criei todo mundo sozinha praticamente. Meu ex-marido morreu há 25 anos.
Ele não era uma pessoa boa. Claudio e o pai sempre brigaram muito. Meu ex-marido não aceitava o filho. Os dois batiam de frente. Mesmo quando Claudio ainda não tinha se assumido. Decidi me separar porque ele bebia pra caramba e vi que o pior podia acontecer. E aconteceu.
Um dia cheguei em casa e vi que Claudio estava com a mão machucada. Na discussão, o pai bateu nele e para não revidar, o menino descontou sua raiva na parede. Machucou a mão.
A implicância de meu ex-marido com o filho era, entre outras coisas, o fato de Claudio ser quem é: um homem transgênero.
Claudio me revelou sua identidade há cerca de 16 anos. Foi após o falecimento de meu pai, quando precisei voltar para Bauru, minha cidade, para cuidar de minha mãe. No retorno a São Paulo, ele me contou que pretendia fazer a transição de gênero.
Falei ‘tá’. Nunca fui contra. Cada um tem o seu livre arbítrio. Cada um tem que viver do que jeito que é feliz. Não adianta impor uma coisa que você não é. Em janeiro deste ano ele decidiu remover os seios. Está tomando hormônios.
Está se sentindo melhor agora e contente, porque antes precisava usar camisetas e faixas. Fez a solicitação de mudança de nome também. Escolheu o nome de meu avô: Claudio Rafael. Eu não me acostumei ainda. Chamo-o de Ne. É muito tempo conhecendo-o por outro nome, né?
Com Claudio as imposições nunca funcionaram. Quando meus filhos eram pequenos eu costurava suas roupas. Acontece que com Claudio não adiantava forçar as peças que eu produzia como fazia com minhas outras filhas. Parece que não encaixava. Ficava uma coisa esquisita, não combinava. Mas eu não sabia o porquê. Primeiro filho a gente não sabe como é.
Além disso, há 30 anos o assunto transgênero não era comum. As pessoas tachavam as essas pessoas como safadas. E elas eram obrigadas a se esconder. Eu aceito, mas eu sei que outras pessoas podem ter dificuldade em entender.
Por isso digo aos pais que têm dificuldade em aceitar os filhos trans a verem a situação como um aprendizado. Eu sempre vejo tudo o que acontece em minha vida por esse lado. Eu tenho que aceitar o meu filho de coração aberto. Se tiver que brigar por ele, eu brigo. Estarei sempre do lado dele com palavras, dando um ombro. Ele saiu de mim. É um amor incondicional.”