“Aceito ideias, não insultos”, diz 1ª deputada trans eleita na Venezuela
Tamara Adrián ganhou um prêmio internacional por ensinar mulheres e gays a dizer 'não' a tudo que os coloca a margem da sociedade
Engajar os homens na luta das mulheres. Em escala global. Sendo uma mulher trans. Esse é um dos audaciosos desafios que Tamara Adrián tomou para si quando se assumiu, aos 39 anos. Após mais de duas décadas, seu esforço foi reconhecido.
Primeira parlamentar transexual da Venezuela, ela ganhou o prêmio Future of Manhood (Futuro da Masculinidade, em tradução livre) da instituição brasileira Promundo, que defende a equidade de gênero e a prevenção da violência em 22 países.
Além de Tamara, receberam a honraria o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, e outras seis personalidades comprometidas com a construção de um mundo igualitário e seguro para as mulheres.
Em abril, na festa em Washington, o presidente da Promundo, Gary Barker, declarou: “Destacamos essas pessoas por exemplificarem o futuro da masculinidade que queremos e precisamos”. A linha de pensamento é de que não haverá avanços se os homens não mudarem.
No site da organização, Tamara é descrita como voz para a diversidade sexual, que faz da dignidade e da igualdade pilares para combater a injustiça contra mulheres e meninas em todos os lugares.
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De fato, a parlamentar de 64 anos está em muitos locais ao mesmo tempo, atacando em diferente frentes. A convite da Organização das Nações Unidas (ONU), lançou um projeto para barrar, nas escolas, o bullying contra as garotas trans. Em entrevistas e palestras, tem batido na tecla do acolhimento pelas famílias.
“Uma das pesquisas que coordenei mostrou que 82% dos trans são agredidos fisicamente por um parente que mora na mesma casa”, afirma.“Se a família é incapaz de aceitar o filho homossexual e pratica violência contra ele, que atitudes esperar de desconhecidos?” Em 2017, estreou como coach de jovens lideranças lésbicas, gays, bi, trans e intergêneros (LGBTI) para que conquistem maior espaço político.
No treinamento de uma semana, Tamara ensina como obter financiamento e organizar uma campanha eleitoral. E mostra como resistir e manter o jogo de cintura na oposição ao obtuso regime de Nicolás Maduro. “É difícil ser tolerante com intolerantes”, diz ela, que também enfrenta percalços na Assembleia Nacional de Caracas. Apesar deles, tem conseguido algumas vitórias.
Graças a seu empenho, o Parlamento aprovou em 2016 uma legislação de combate ao preconceito e a criação do Dia Nacional contra Transfobia, Homofobia e Bifobia (17 de maio). Tamara está à frente do comitê ligado a esse evento e ainda preside o Conselho de Diretores da Ação Global para a Igualdade Trans.
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O diabo no corpo
“A minha vida política nasceu no momento em que assumi ser uma mulher trans”, explica Tamara. Assumir-se, porém, não foi um processo simples. Aos 4 anos, tinha certeza de que o corpo biológico, com órgãos masculinos, “era uma cela”. Cedo também soube que a população LGBTI estava exposta a todo tipo de preconceito.
Ela se lembra de ouvir, na infância, que “tinha o diabo no corpo”. Na adolescência, quando as alterações hormonais tornaram-se insuportáveis, tomou hormônios sem supervisão médica e não revelou a ninguém. Em sala de aula, diz, vivia reclusa. Não era aceita em grupo algum. Nem a própria família a compreendeu. “O preconceito e o medo me levaram ao tratamento clandestino e à solidão”, recorda ela.
Depois de graduar-se em direito na Venezuela, partiu para a França, onde concluiu um doutorado na Universidade Panthéon-Assas. “Em Paris, pude ser quem sempre quis.” Vestia-se como gostava, comportava-se de acordo com seus sentimentos, e não como a sociedade esperava. Na volta, retomou as roupas masculinas. Até deixou a barba crescer para ter espaço no mercado de trabalho. Entrou para a equipe do Banco Central do seu país e seguiu o tradicional caminho “projetado para um homem”.
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Casou-se e teve filhos, Mariano e María Emilia. A união resistiu por três anos, quando Tamara revelou ser uma mulher trans e lésbica. A esposa pediu o divórcio. Por muitos anos, ficou separada das crianças. “Depois que meus filhos atravessaram a adolescência, o entendimento veio”, lembra Tamara. “Fomos nos tornando cada vez mais próximos. Hoje somos novamente uma família.”
O processo de redesignação sexual acabou se arrastando. No trabalho, usava roupas masculinas. “Eu havia escolhido ter um futuro profissional. Por isso, vivi em um corpo de homem e agi como tal por tanto tempo”, diz. Nos fins de semana, entregava-se aos modelos femininos. “Quando completei 39 anos, deixei de ser Tomás para, enfim, Tamara Adrián viver.”
Não foi uma questão de coragem. Nem a demora em autoproclamar-se mulher ocorreu por falta dela. Na Venezuela, como em quase todo o mundo, os trans são hostilizados e perdem oportunidades. Às vezes, a rua e a prostituição são as alternativas que sobram para eles. Não há dados sobre a população trans no país vizinho, mas pode-se comparar a realidade de lá à do Brasil. Aqui, uma pessoa trans é morta a cada 48 horas.
Ao assumir-se, Tamara entendeu que deveria atuar para que outras como ela pudessem viver sem amarras, longe da opressão. Em 2002, fez a cirurgia de transgenitalização na Tailândia – referência nessa operação, que adequa os órgãos sexuais. Mas, observa Tamara, nem todas as trans desejam enfrentar o centro cirúrgico; e a operação não é requisito indispensável para a mudança de identidade.
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No ativismo, conheceu a atual companheira, Maqui Márquez, que já era mãe. Tornaram-se o primeiro casal lésbico legalmente reconhecido no país. Estão juntas há 20 anos. Do casamento, a parlamentar fala pouco. “Sei que sou plenamente feliz porque, por muito tempo, eu não fui”, resume.
Em 2009, o ativismo encontrou a política partidária. Tamara havia procurado Leopoldo López, opositor do presidente Maduro, na criação do Partido Vontade Popular. Queria o apoio dele para a causa LGBTI.
Leopoldo teria dito que, para dar visibilidade à causa era preciso percorrer um longo caminho. O grupo teria de achar um político disposto a ouvir gays e lésbicas, explicar a ele a situação de vulnerabilidade dessa população, convencê-lo a propor projetos e torcer para que tudo acabasse em aprovação no plenário. “Então, Leopoldo me provocou: ‘Você tem que se tornar essa voz na política’.”
A vida agitada da deputada
Tamara considerou filiar-se. Afinal, o lema do Vontade Popular é “Todos os direitos para todas as pessoas”. Isso indicava uma abertura que ela, até ali, não havia enxergado. Nas eleições parlamentares de 2015, foi obrigada a candidatar-se com o nome masculino. Dez anos antes, solicitara o direito ao nome social (aquele pelo qual a pessoa transgênero prefere ser chamada), mas o governo negou.
A campanha transcorreu sem Leopoldo ao seu lado. Antes das eleições, milhares de pessoas protestaram contra Maduro, e uma onda de violência varreu o país. Acusado de incitar os distúrbios, o líder foi detido. Tamara acusa o governo de radicalismo e considera Leopoldo um preso político. Naquele ano, o Vontade Popular converteu-se na terceira força política, e ela saiu das urnas como suplente.
Só assumiu no ano seguinte, ovacionada pela comunidade. Havia uma demanda reprimida até a advogada chegar ao Parlamento. “Aí descobriram a importância do voto LGBTI.”
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A conquista da Assembleia significou mais que um acerto de contas com o passado, ela garante. Deu visibilidade aos trans. “Nós crescemos ouvindo que não podemos ou não somos capazes. Jovens são expulsos de casa; há negligência em relação a eles o tempo todo”, lembra. “Minha vitória mostrou perspectivas em um país homofóbico.”
No plenário, novas batalhas. As mais de três décadas de atuação na área jurídica e os anos de trabalho no setor financeiro não foram suficientes para que os colegas respeitassem Tamara como uma intelectual competente e séria. “Aceito ideias, não insultos.” Das bancadas religiosas, sofreu atos discriminatórios, como ser chamada pelo nome masculino.
Mas ela também conquistou a admiração de parlamentares ao explicar a cidadania negada aos trans. “Muitos se revelaram dispostos a me ouvir. Digo que, para alguns, até dei aula”, recorda. Inspirada nisso, a cineasta venezuelana Elia Schneider produziu um filme que leva o nome de Tamara.
Em entrevista, Luis Fernández, o ator protagonista, definiu a história como uma “lição de valentia e integridade que merece ser aplaudida”. A parlamentar não viu o documentário brasileiro Entre Homens de Bem, de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, sobre a rotina de Jean Wyllys (PSOL-RJ) na Câmara dos Deputados, mas conhece o baiano. “Sei das dificuldades que ele enfrenta por ser o primeiro parlamentar a se assumir gay e levar as suas lutas”, afirma.
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Mulheres na política
“O mundo está pronto para ver as mulheres no poder, mas os partidos políticos, não”, pondera Tamara. A Venezuela obrigava os partidos a registrar uma cota de 30% de mulheres no total de candidaturas. E, como no Brasil, poucas se elegeram porque não contaram com investimento financeiro para a campanha. Na última eleição, as coisas pioraram e as cotas foram suprimidas. “A estrutura dos partidos é construída de forma machista”, diz. “Sem as cotas, a representatividade caiu.”
Para Tamara, impedir, dificultar e minar carreiras políticas no Executivo e no Legislativo tem nome. É violência política de gênero e acompanha a mulher antes, durante e depois do mandato, já que muitas não passam da primeira legislatura e não se mantêm na política. Ela considera, no entanto, que a mulher não deve se encolher. “O pior que pode acontecer àqueles que se mostram intolerantes é ver alguém romper o silêncio e exigir direitos. Por isso, insisto: mulheres, não se calem!”
A ausência delas nas decisões políticas provoca muitos impactos. Nos governos chavistas, o país chegou à vexatória primeira posição no ranking de adolescentes grávidas na América do Sul. Mesmo antes da crise que assolou o país, contraceptivos não eram encontrados. “Aqui há um entendimento, equivocado, de que, se não falarmos sobre sexo com adolescentes, eles não farão sexo. Por omissão do Estado, das famílias e da Igreja, os jovens seguem sem informação de qualidade”, critica.
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A situação da Venezuela é calamitosa. Tanto que o governo Maduro passou a ser tratado por publicações internacionais como uma ditadura, o que tem levado a um êxodo sem precedentes na história da nação. Só no estado brasileiro de Roraima, entraram 40 mil refugiados venezuelanos. A ascensão dos militares aos postos políticos e à presidência de empresas estatais e privadas culminou com o colapso da economia.
Um exemplo é a baixa produção de petróleo, que foi equiparada aos resultados de 1947. Maduro, reeleito em uma eleição contestada, deu ainda aos militares, por decreto, o monopólio da industrialização e comercialização de alimentos e medicamentos. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a inflação chegará a 13 864% este ano.
Em outro ranking, o país aparece como o segundo pior em desemprego. Os salários decresceram. “Um colega, professor universitário, ganha 30 dólares por mês para manter dois filhos adolescentes. Eles comem duas vezes ao dia. Imagine a miséria que nos assola”, diz Tamara.
O problema é pior nas famílias chefiadas por mulheres. Dos 20 alimentos presentes na cesta básica, elas consomem os de menor valor nutricional. Onde o homem é o provedor, o cardápio com proteínas mostra-se maior, conforme um estudo feito no segundo semestre de 2017.
O número de homicídios saltou de 3,8 mil, em 2005, para 27 mil no ano passado, e a violência doméstica se tornou alarmante. Por dia, chegam ao Ministério Público 200 denúncias de agressão contra elas. “Nunca quis me eleger para lutar apenas pela causa LGBTI. Defendo os direitos de todos, principalmente os das minorias.” Tamara escreveu recentemente em seu Twitter que “tombar é uma palavra que não cabe em uma democracia”. Nem tampouco no vocabulário dela.
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