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Conheça as donas da boiada que conquistam espaço no laço

Sob os olhos das novas pecuaristas, o rebanho e os negócios prosperam

Por Flávia G Pinho
22 jan 2018, 21h05
 (André Andrade/CLAUDIA)
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Filha e neta de pecuaristas, Liliam Valadão, 62 anos, cresceu ouvindo a mesma ladainha. Os homens herdam fazendas e as garotas máquinas de costura. Nascida em Anicuns, município com pouco mais de 30 mil habitantes em Goiás, ela nem questionava o ditado – detestava a fazenda da família, a 110 quilômetros da cidade.

“Não havia asfalto e levávamos um dia inteiro para chegar”, lembra. Sob a luz fraca de lampiões, o clã passava todas as férias na propriedade, incluindo os aniversários da menina, em julho. “Nunca tive festa com os amigos da escola, o que colaborou para a implicância”, reconhece.

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Liliam Valadão, na fazenda que herdou e administra, em Anicuns, pequeno município de Goiás (André Andrade/CLAUDIA)

Liliam tentou seguir caminhos que corressem bem longe da boiada. Formou-se em arquitetura pela Universidade de Brasília e assinou alguns projetos residenciais até ser recrutada para a equipe do pai, Ary Ribeiro Valadão, então governador de Goiás. Nas décadas de 1980 e 1990, já casada, ingressou na política. Chegou a presidente da Agência Goiana de Desenvolvimento Rural e Fundiário, cargo que ocupou até 2003. No contato com o meio do agronegócio, ela se redescobriu. “Aquele trabalho despertou minhas raízes. Foi quando decidi tomar conta do que era meu.”

Ao assumir uma fazenda de criação de gado da família, em Santa Fé do Araguaia, norte do Tocantins, passou a enfrentar a realidade comum à maioria das mulheres que se tornam fazendeiras. Não teve nem o apoio do marido. “Ele nem sequer me acompanhou na primeira visita. Fui sozinha com meu filho, ainda pequeno, e a babá”, conta.

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De cara, tentou implantar técnicas mais modernas de gestão e manejo dos animais por não aguentar ver vacas feridas por descuido dos tratadores. “Os peões me olhavam com desconfiança, considerando fricotes sem importância todas as mudanças que eu propunha.” Quase 15 anos mais tarde, ela mostrou a que veio. Depois de modernizar a propriedade do Tocantins, hoje, viúva, se dedica a implementar as mesmas inovações na fazenda de Anicuns. “Os peões finalmente entenderam que não podem manter o emprego se a fazenda não for rentável. E que é nos pequenos detalhes que ganhamos dinheiro.”

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Liliam implantou técnicas modernas de manejo dos animais porque não aguentava ver vacas machucadas (André Andrade/CLAUDIA)

Gestoras que se fazem

O Brasil não sabe quantas elas são no campo. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia 3,5 milhões de mulheres trabalhando em agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura em 2010, ante 8,7 milhões de homens. Mas é provável que o número tenha crescido muito desde o último censo demográfico.

O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) fornece uma pista do aumento. De 2006 a 2016, o total de mulheres que frequentaram o curso de formação profissional rural, que capacita para todas as atividades nas fazendas, era de 3,6 milhões. O contingente cresce ano a ano – de 307 mil inscritas em 2006 pulou para 500 mil uma década depois. Também criado pelo Senar em 2010, o programa Mulheres em Campo é voltado para as herdeiras que precisam conduzir suas fazendas. Em 40 horas de aulas teóricas e práticas, elas aprendem técnicas de gestão com base em um completo diagnóstico das propriedades. Nos últimos sete anos, 25 mil mulheres concluíram o curso.

Andrea Barbosa, diretora do Departamento de Educação do Senar, vê nas mulheres um olhar bem particular para as rotinas no campo. “Enquanto os homens focam nos processos produtivos, elas se preocupam mais com os trabalhadores e o bem-estar animal. E ainda se apoiam, sem medo de revelar dificuldades ou pedir ajuda. Por isso, se destacam como empreendedoras”, avalia.

As entidades de mulheres do agronegócio pipocam país afora. O Grupo Feminino do Agronegócio, fundado em 2010, tem 25 associadas e acaba de virar empresa formal. Uma das agremiações mais recentes, formada há apenas um ano, o Núcleo Feminino de Pecuária Goiana reúne 163 gestoras, inclusive de outros estados. Segundo a presidente, a pecuarista Janaína Flor, 44 anos, elas se unem para trocar experiências e, principalmente, enfrentar culturas arraigadas do setor. “Não é fácil para quem começa. Se você está na plateia em uma palestra e levanta a mão para tirar dúvidas, logo ouve de um homem o comentário: ‘Tinha que ser mulher’ ”, revela.

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Carol voltou para o campo e ajuda a mãe com o rebanho (André Andrade/CLAUDIA)

“Por isso, organizamos encontros exclusivamente femininos. Ficamos à vontade para questionar ou até para pressionar o palestrante.” Quebrar paradigmas é com elas. Trata-se de um time de fazendeiras belas, vaidosas e diferentes do que se espera no meio rural. Se a dupla jeans e botas é uniforme na lida, vestido e salto agulha são onipresentes nos encontros femininos, que acontecem após o expediente e em lugares elegantes. Em outubro de 2017, um grupo do Núcleo Feminino de Pecuária Goiana se encontrou no restaurante Cortés, em São Paulo. Tomando espumante, assistiram à palestra do especialista em carnes da casa, Flavio Saldanha. “Precisamos entender o que o mercado está querendo para adequar nosso trabalho”, diz Janaína.

Inversão de papéis

Mulheres não são novatas no agronegócio – pelo contrário. É o que afirma Nelcy Palhares, 65 anos, paulista de Morro Agudo e dona de uma fazenda em Inaciolândia (GO). “Elas sempre foram fundamentais na administração das propriedades, mas viviam à sombra dos maridos. Depois que eles morriam, elas viravam a viúva do fulano de tal”, lembra.

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Nelcy fez diferente. Desde 1974, quando se casou, assumiu o comando da propriedade com o parceiro. Os dois iam juntos a feiras e leilões de gado, e ela mostrava que não era uma simples acompanhante. Ainda hoje, Nelcy ri das cenas que vivenciou. “Até meu marido era vítima de preconceito. Não entendiam por que ele me deixava apitar nos negócios”, conta. “Veja bem, estou falando de um tempo em que mulheres superfaturavam a conta da farmácia quando precisavam tirar um dinheiro do marido”, diverte-se.

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Boa de laço, ela constrangia os homens nos leilões que frequentava (André Andrade/CLAUDIA)

Não satisfeita, em 1980 Nelcy ainda decidiu empreender. Havia dificuldade para encontrar bons reprodutores para a criação de gado, e ela enxergou uma oportunidade. Fundou então a Agropecuária Jequitibá, especializada em seleção de gado nelore puro de origem. “Eu disse a meu marido: ‘Deixa que farei uns touros bons procê’. Ele me deu dinheiro e mandou comprar uma joia. Voltei para casa com 30 matrizes.”

Nelcy ficou viúva em 1996. Herdou 300 alqueires com 2 mil cabeças de gado, que passou a tocar sozinha. Nos eventos, via muito homem constrangido por sua presença – realidade que, ela nota, vem mudando nos últimos 20 anos. “Se existe machismo, ele mora no Centro-Oeste”, diz rindo, mas assertiva. “Quando a gente entra em um estande para comprar trator, é recebida por mocinhas de roupas colantes. O preconceito já não é tão escancarado, mas continua ali, de forma velada.”

Há 15 anos, Nelcy ganhou a companhia da filha, Ana Carolina Palhares Ribeiro, hoje com 37 anos. Nascida em Ribeirão Preto (SP) e criada em Uberlândia (MG), ela se mudou para o campo em 2002, ao se formar em administração de empresas. Carol relata que encontrou um cenário diferente e mais amigável, mas acredita que sua autoconfiança faz a diferença. “Cresci nesse meio e todos me conhecem. Por isso, muitas das portas estavam abertas. Mas, sim, há reações machistas diante da mulher que manda”, afirma. Elas também plantam cana e lidam com usineiros.

Todos homens e durões. “Eu ‘chego chegando’, fica tudo certo”, garante. Divorciada, tem uma rotina parecida com a de toda mulher que trabalha. Divide-se entre o expediente em Itumbiara (GO), idas semanais à fazenda de Inaciolândia e os dois filhos pequenos. Adora os encontros do setor e não faz questão de que sejam só femininos. “Pode ser misturado, não vejo problema. Mas, se estivermos juntas, não tem para mais ninguém.”

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Parceria a quatro mãos

A paulistana Liliana Teles de Menezes Almeida, 43 anos, foi uma menina diferente. Filha e neta de pecuaristas, era tão louca por bois e cavalos que não queria outra brincadeira. “Em vez de boneca, eu pedia botas ou chicotes de presente”, conta. Aos 19, ela se casou com o zootecnista Fábio Souza de Almeida Filho e se instalou na fazenda dos pais, em Araçatuba (SP).

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Liliana, louca por bois e cavalos. Quando criança, ela trocava bonecas por botas e chicotes (André Andrade/CLAUDIA)

“Queria ter cursado veterinária, mas meu marido me incentivou a trabalhar na fazenda com ele”, recorda. Foi um tempo de brigar por espaços. “O Fábio me apoiava, mas eu sentia uma cobrança enorme de fora. Ouvia comentários do tipo: ‘Como você entende disso?’ ou ‘Você sabe conversar como homem!’.” Nesses ambientes, ela ainda é uma das raras mulheres.

O casal toca a propriedade de cria, recria e engorda. E, há 15 anos, fundou a marca Nelore do Golias, de melhoramento genético da raça, com a colaboração de geneticistas estrangeiros. “A carne do nosso nelore é superior à do angus. Vendemos para clientes importantes, como as butiques de carne de São Paulo”, festeja.

No dia a dia, a divisão de tarefas é clara. Fábio cuida dos animais, Liliana toca a administração e a área de recursos humanos, tema no qual as pecuaristas se destacam. “Vejo os homens muito focados no lucro. Mas fazenda não dá lucro se os funcionários não estão satisfeitos”, lembra.

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Segundo a pecuarista Janaína, a relação entre os peões e as chefes segue roteiro parecido em qualquer fazenda. “No início, eles não gostam de receber ordens de mulher. Com o tempo, entendem que a vida deles fica melhor, com vínculos mais sólidos.” A razão, ela afirma, é o apreço feminino por questões que passam despercebidas pelos patrões. “Ao sentar com o funcionário, um homem dificilmente pergunta se a esposa dele está satisfeita com a casa onde vive, por exemplo.”

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O gado de Nelcy Palhares e Carol. Mãe e filha comandam uma fazenda na goiana Inaciolândia (André Andrade/CLAUDIA)

Fábio confirma a tese. “Mulheres são mais detalhistas e não ficam de rodeio; vão lá e resolvem. Os homens precisam vê-las como aliadas.” O casal tem mais razões para lutar por um ambiente favorável. A filha deles, Isabela, 6 anos, já se diz fazendeira. “Ela relinchava antes de aprender a falar e adora montar”, conta a mãe. “Isabela sou eu em miniatura.”

Helena, neta de Nelcy e filha de Carol, também quer seguir a trilha. Aos 6 anos, elegeu o curral como seu lugar preferido na fazenda. “Quando era menor, ela vivia se escondendo nos cochos de sal”, lembra Nelcy. Da posição de quem viu tantas transformações no meio rural em quatro décadas, ela arrisca um palpite para o futuro da criança.

“Eu quebrei muitas barreiras, minha filha derrubou outras, conseguimos ser respeitadas. Quando chegar a vez da Helena, acredito que o mundo será melhor. Os meninos da idade da minha neta crescem vendo as mães trabalhando e certamente estarão preparados para ser parceiros. Mesmo assim sobrarão barreiras. A mulher sempre terá novas conquistas a fazer.”

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