Vi o diretor Hector Babenco na grande mesa redonda, à esquerda, no restaurante Arábia, nos Jardins, em São Paulo. Estava careca. Tomava água. E dividia a comida libanesa com a mulher, a atriz Xuxa Lopes, e com os amigos Dráuzio Varella, seu médico particular, e Regina Braga, a atriz casada com Dráuzio. Parecia desanimado e muito sofrido. Então, era verdade: o linfoma fazia estragos no meu cineasta preferido. Dos 10 filmes que assinou, assisti a nove. Não sei de qual gosto mais.
Eu me segurei para não ir cumprimentá-lo por Brincando nos Campos do Senhor; dizer que adorava Pixote, a Lei do Mais Fraco e também Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia. Naquela noite (teria sido no final os anos 90? Ou no começo de 2000?), eu ainda sabia de cor frases de Sonia Braga em O Beijo da Mulher Aranha – que rendeu a Babenco uma indicação para o Oscar e a estatueta de melhor ator ao americano William Hurt. Não devia perturbá-lo com perguntas sobre Ironweed e a condução magnifica de Jack Nicholson e Meryl Streep, dois amantes alcoólatras, de rua, brigando com o frio e com as piores memórias de cada um. Como teria sido a direção daqueles monstros sagrados de Hollywood? Era Babenco pertinho… O cineasta que melhor traduziu a alma e as mazelas sociais brasileiras; fez um pixote mamar no peito de uma puta tão bem acolhida no corpo de Marília Pera. Grande momento!
Como repórter, estive com ele em duas coletivas de lançamento (acho que de Carandiru, um estouro de bilheteria, e de O Passado, conturbada história de amor que juntou o nome do mexicano Gael García Bernal ao de Babenco). Nas entrevistas, me lembro de ter constatado características frequentemente atribuídas a ele: uma certa arrogância e o tom ríspido para lidar com as pessoas. Babenco é o máximo, apesar de qualquer tipo de pequenez ocorrida ao longo dos seus 70 anos.
Teve a sorte, como raros, de se preparar para o fim. Esperou que o desfecho o alcançasse no cinema, lugar que o seduziu na infância argentina. A morte lhe ofereceu esta concessão: Meu Amigo Hindu é o inventário amoroso de Hector. “O último filme que a morte me deixou fazer”, declarou ele no lançamento, em março deste ano. A autobiografia configura uma tentativa de passar a vida a limpo, desculpar-se com amigos (no filme, fica claro que ele esfolou alguns profissionais do cinema, por exemplo), acertar contas com os erros, apaziguar-se com as mulheres que amou.
São reflexivos os diálogos entre o cineasta, interpretado pelo americano Willem Dafoe, e o moribundo (Selton Mello) que quer levá-lo. Qualquer arrogância, mesmo que fosse verdadeira, cairia ao tornar-se amigo de um menino hindu, tão doente quanto ele, internado no mesmo hospital americano onde Babenco se submeteu a um transplante de medula. Jogar-se no chão com o garoto, brincar com ele, um macaquinho de pano e uma arma de plástico oxigenaria os seus pulmões e lhe daria a chance de experimentar o que ainda faltava.
O balanço está concluído em Meu Amigo Hindu. A atriz Bárbara Paz é ela mesma na tela. Recém-saída de Casa dos Artistas, programa do SBT, a atriz encontra no premiado diretor a mão amiga, um amor e o orientador de sua carreira. E devolve a ele o gosto de viver. Bárbara protagoniza a cena mais bonita do filme. Dança para aquele homem cheirando a remédio uma das célebres músicas do cinema: Singin’ In The Rain, celebrizada por Gene Kelly. Fica assim o tributo de Babenco a tudo que o emocionou no cinema. Bárbara dançando na chuva comove o marido e a plateia.
Se estão certos os estudiosos da Experiência de Quase Morte (quando se está entre a vida e o fim, antes de apagar definitivamente ou de voltar à consciência), Babenco partiu revivendo aquilo que mais o tocou: a última companheira, Bárbara, com seu corpo forte, cheio de ternura e vida, bailando na sua frente com leveza de menina. Àquela altura, pouco importava se a cena era real, como a do set, ou ocorria só para distraí-lo enquanto se desprendia do leito do Hospital Sírio Libanês. Para tornar-se etéreo e também imortal.