NA FOTO: Silvye, Alice, Jonathan e Maria. Entre elas, a terceira no foto é a advogada brasileira Gabriela Cunha.
Dois momentos marcaram meu 8 de Março, que na verdade deixou de ser só um dia, tomou a semana inteira e seguirá até o fim deste mês com discussões sobre o quanto a mulher ainda precisa avançar e como pode ajudar o país. Ambos foram movidos pelo afeto.
O primeiro episódio: o lançamento do Projeto Refugiadas, com uma exposição de fotos sobre a rotina de 8 bravas que escaparam de guerras, intolerância religiosa ou distúrbios em seus países e hoje vivem aqui no nosso. O segundo foi o meu encontro com duas líderes feministas muito jovens – as porretas Jessica Tauane, 24 anos, youtuber, criadora do Canal das Bee, que faz militância LGBT de forma para lá de bem-humorada, e Stephanie Ribeiro, 22, ativista, eleita uma das 25 webnegras mais influentes da blogosfera.
Vou contar porque me marcaram tanto. Em outubro de 2015, CLAUDIA publicou a reportagem “Vida de Refugiada”. Trabalhei nela como editora; não tive contato pessoal com as entrevistadas. Estava na minha mesa, na redação, quando Victor Moriyama apareceu com as fotos. Eu me encantei com a força do olhar, da postura, do gestual de mulheres que há pouco chegaram a um Brasil estranho para elas, vindas de nações pobres da África e da Síria. Triunfaram, em parte, por sair na calada da noite escondidas de seus algozes, furar fronteiras, vencer o frio e a fome em porão de navio e por não morrer nas mãos de traficantes de gente. Mas davam (e continuam dando) murros para sobreviver em São Paulo, que recebe a maior parte dos refugiados da América do Sul. O levantamento da situação delas e as entrevistas que originaram o belo texto publicado na revista são da advogada Gabriela Cunha, parceira de Victor no projeto.
Ali, na Fnac da Avenida Paulista, ver quatro das oito refugiadas – rindo descontraidamente, com suas roupas lindas e coloridas, e fazendo questão de reafirmar as culturas de onde vieram –, me encheu de esperanças. Deu para entender: são as mulheres que fazem a vida reencontrar um sentido. Algumas aportaram sozinhas e aos poucos trouxeram filhos e marido, organizando a difícil adaptação da família em ninho estrangeiro.
Nem todas elas obtiveram resposta do Estado para a solicitação de proteção; seguem como solicitantes de refúgio. Como explica Gabriela Cunha, o país que as recebe não faz um favor, mas cumpre a obrigação de garantir direitos previstos em convenções internacionais, incorporadas às leis brasileiras. O Brasil, porém, as trata com as mesmas políticas com que recebe os homens, não reserva atenções para as necessidades específicas de mulher.
As refugiadas que conheci pessoalmente naquela noite de 7 de março não falam português direito. Mas são peitudas. A nigeriana Jonathan, que discursou pelo grupo, apertou Beto Vasconcelos, secretário Nacional de Justiça. Resumindo, ela perguntou ao microfone: “Quando poderemos empreender, ter nossos negócios? Somos mulheres qualificadas, com capacidade para contribuir com o país, só precisamos de oportunidades para isso”. O representante do governo respondeu citando a crise e apontou o Sebrae como possibilidade de ajuda.
As refugiadas que aparecem na foto são: Silvye, 34 anos, advogada, nascida na República Democrática do Congo. O marido dela foi preso por se opor ao regime sanguinário de lá, e pediu para Silvye sumir com os filhos. Horas depois da prisão, ela implorava ao capitão de um navio para deixá-la embarcar no porão, sem pagar. Perambulou nas ruas de São Paulo com as crianças, conseguiu trabalhar numa escola. Meses depois, o marido conseguiu reencontar a família e teve com Silvye um bebê brasileiro. A artista plástica Alice, 24 anos, sem filhos, veio de Burkina Faso em profundo desespero. Mas se recuperou, trabalha como garçonete em um restaurante de comida africana na Galeria 24 de Março, no centro de São Paulo.
Jonathan, 45 anos, ensinava inglês na Nigéria, enfrentou o grupo terrorista Boko Haram, que persegue professores e qualquer pessoa que defenda a liberdade de credo e de pensamento. Ela correu quatro dias, sem água e comida, até o país vizinho, Benin. De lá voou para o Brasil, onde move céus e terras para trazer suas 4 crianças e o marido. A cubana Maria, 40 anos, é jornalista, mestre em antropologia, e se sentiu sufocada pelo regime político de seu país. Hoje, dá aulas de espanhol para brasileiros, no projeto Abraço Cultural. No dia 18, na mesma Fnac, haverá um novo debate com as refugiadas. Quem não foi até lá, deve botar um olho nisso, contemplar as fotos. Elas dão banho de inventividade quando se trata de desafiar agruras e dar a volta por cima.
Quanto ao encontro com as líderes da nova geração do feminismo, sugiro ver o vídeo abaixo. Jessica, do Canal das Bee, mostra o seu Dia 8 de Março, que começa no estúdio do MdeMulher, onde as revistas femininas da Abril, incluindo CLAUDIA, mantiveram no ar 10 horas de entrevistas e debates. Tudo ao Vivo. Jessica termina a jornada dando palestra para um auditório lotado, em Ribeirão Preto. Assista:
Um deleite para mim acompanhar na gravação a alegria da leitora Lúcia, mãe de Jessica, que lê a revista há 25 anos. “Ver a minha filha aqui na redação da CLAUDIA, que me ensinou tanto, é sinal de que eu fiz tudo direitinho. Criei Jessica para ajudar as pessoas”, contou Lúcia. Ela também se emocionou com o relato de Stephanie. A menina negra levou Lúcia a se lembrar de si, de quem havia sido no passado. Stephanie derrota, a cada passo que dá, a intolerância, o racismo, o bullying, a covardia. Eu também me enxerguei nas duas, recordando o começo da minha luta pelas mulheres, antes de completar 18 anos. Jessica e Stephanie deixam a certeza de que o Brasil tem jeito, vai mudar muito e o avanço será conduzido por mulheres como elas, que estão educando outras milhares de meninas. As garotas que seguem essa dupla se organizam em grupos, movimentos de base, nas redes da internet – e sem precisar de tutores da política tradicional. O meu fôlego se renovou.
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