Ao ver qualquer peça da estilista Jal Vieira, a textura se sobressai e conecta o seu fazer criativo. No look apresentado pela paulistana no editorial de moda da edição de novembro da CLAUDIA, essa característica é representada pelas franjas. “Elas simbolizam a turbulência de um momento de ruptura que vivia na época”, explica. A saia e o blazer da coleção Ruptura foram usados também no clipe de Me Gusta, canção de Anitta com participação de Cardi B e Myke Towers.
Nascida na periferia de São Paulo, no bairro da Brasilândia, o seu traço na moda é resultado de uma herança familiar com raízes no sertão da Bahia, onde sua mãe, Anaohan, nasceu. “Ela sempre fez suas roupas e usava um saco de estopa como tecido”, lembra a estilista, que mostrou sua nova coleção Minha pele costura a minha história na 47ª edição da Casa de Criadores.
Com um salário apertado de empregada doméstica, Anaohan quis dar à filha o acesso às mais variadas formas de arte, que não teve. “Devo todo o meu histórico artístico à minha mãe, que procurava cursos gratuitos pra mim, já que não tinha condições de pagar. Fiz teatro, dança, canto e sempre me interessei por desenho”, diz. O último é o que garantiu, segundo ela, a entrada acidental na moda. Com uma boa nota no Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM, Jal passou no vestibular de moda de uma renomada faculdade de São Paulo com bolsa integral.
O fim da adolescência trouxe mudanças que ultrapassaram as oportunidades de estudo e atingiram sua essência. “Até uns 18 anos, convivi muito com pessoas brancas e passei por um processo de embranquecimento, que me fez achar até que era branca”, comenta a estilista. O colorismo dificultou esse reconhecimento, que foi revelado da forma mais brutal por meio do racismo.
“Fui seguida numa loja pelo segurança. Quando fui sair, sem ter comprado nada, ele pediu para revistar minha bolsa. Essas situações começaram a ser recorrentes, mesmo tendo uma passabilidade maior do que pessoas retintas”, diz Jal, que também enfrentou silenciamento e outro tipos opressão no universo da moda, dominado por profissionais brancos, principalmente homens cis.
O deslocamento era tanto que a estilista chegou a pensar que moda não era para ela. A decisão a levou para o audiovisual, que atuou por quatro anos. Entretanto, o convite para integrar o time de estilistas da Casa de Criadores em 2019 mudou sua forma de se enxergar profissionalmente. “Voltei porque vi que a minha presença ali era importante para ruir com essa estrutura racista, misógina, LGBTfóbica”.
Para enfrentar as marcas que esses atravessamentos sociais provocam, a estilista encontrou força no movimento de aquilombamento. “Entrei para coletivos pretos, que me ajudaram a entender minha potência. A mudança veio de duas formas: mentalmente e esteticamente também, já que ela passou a usar os fios naturais e modificou seu modo de se vestir.
A conscientização racial libertou Jal de algumas prisões, mas também escancarou problemáticas duras, como a de ter um espaço interessante de divulgação do trabalho, só que experenciado de maneira solitária.
A Célula Preta, coletivo de estilistas negros do evento, preencheu esse vazio. “Fiquei com receio no começo por ser a única mulher, mas percebi como nós pretos temos uma conexão diferente com quem está do outro lado. É uma relação de respeito e escuta, coisas que nunca tinha experimentado com pessoas brancas. Os meninos sempre estiveram abertos à escuta e ao diálogo”, revela sobre o grupo.
Foi nesse movimento coletivo que Jal construiu a coleção apresentada no fim de novembro na Casa de Criadores. As poetas Ryane Leão, Carol Dall Farra, Luz Ribeiro, Valentine e Gênesis contribuíram com suas obras relatando os atravessamentos que as atingem individualmente. Mesmo com particularidades, em comum, elas condensaram as condições de resistências de ser mulher preta.
Assista o resultado no filme da marca: