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“Após ser abusada pelo meu padrasto, virei voluntária e ajudo vítimas”

Depois de anos, a leitora Ana Carolina* contou para a mãe sobre os abusos do padrasto. Com terapias e estudo, conseguiu superar o trauma

Por Da Redação
Atualizado em 24 set 2020, 09h11 - Publicado em 24 set 2020, 09h00
agressão
 (Palmiro Domingues/Getty Images)
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“Eu tinha apenas 6 anos, corpo de criança. Não era sensual e nem bonita. Minha mãe cortava meu cabelo estilo ‘joãozinho’. Eu tinha bronquite e muita falta de ar, então os fios curtinhos eram mais fáceis de cuidar.

Cresci em um lar complicado. Meus pais tinham uma relação abusiva. Minha mãe sofria violência física e mental. Após se separar três vezes e com três filhos, ela decidiu voltar para a casa da minha avó. A ideia era recomeçar. O mais velho tinha 4 anos, eu tinha 2 e o caçula era recém-nascido.

Na década de 1960, uma moça com 21 anos divorciada e com filhos sofria muito preconceito. Ela  não tinha profissão porque tinha se casado aos 16 anos. A solução era arrumar outro marido logo. Não demorou para um tio apresentar minha mãe para um homem que ele considerava bom partido.

Eles ficaram amigos e logo surgiu o romance. A família dele não viu a relação com bons olhos. Era uma desquitada e um rapaz. Desolada, minha mãe viajou para a casa de parentes, em Minas Gerais e tentou esquecer esse relacionamento.

Quando retornou, este rapaz voltou a procurá-la. Acabaram reatando mesmo com tantos obstáculos impostos pela família dele. Minha mãe era uma mulher extremamente bonita, educada e agradável.
Com o apoio da família dela, eles se casaram na igreja católica brasileira, porque não poderiam realizar a cerimônia na igreja ou no civil.

Minha avó deu apoio financeiro, porque ambos estavam desempregados, e ofereceu uma casa em seu quintal para nossa família morar. Apesar de pequena, simples, modesta, a casa tinha três cômodos e era melhor do que pagar aluguel naquele momento.

Com este apoio fundamental, eles começaram a vida. Foram camelôs, venderam enxoval de plástico, moda na época para donas de casa. Foram se virando porque ambos não tinham estudo nem profissão.
Com o tempo e apoio familiar, seu marido conseguiu um emprego em uma estatal e mesmo ganhando pouco as coisas foram melhorando.

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Vovó, que já tinha comprado seu segundo carro zero, vendeu seu fusca parcelado para meu padrasto. Minha mãe trabalhou uma época em um grande hospital, mas engravidou e teve que sair. Seria o primeiro filho deste marido.

Ele, com muito ciúmes, pediu para ela não trabalhar mais e só cuidar da casa e do filho que ia nascer.
Ela pediu para ele assumir a tarefa de nos dar banho para ajudar. Era uma escadinha de filhos. Ele dava banho nos meus irmãos e depois em mim.

Eu me recordo que ele lavava minhas partes íntimas, mas nunca via maldade nisto. Minha mãe sempre foi muito ingênua e não percebeu nada. Eu tinha 6 anos, ia para a primeira série do colégio. Minha mãe me acordava bem cedinho e me levava à escola. Eu chorava muito longe dela.

Uma noite acordei e senti alguém tocando minhas partes íntimas. Fiquei assustada e pensei que fosse um sonho. Quando olhei, vi que era meu padrasto me fazendo carinho. Eu ameacei chorar e ele falou baixinho: ‘Estou aqui porque gosto de você, não vou fazer nada errado, sou seu pai’. Fiquei quieta e deixei que ele me tocasse. Mesmo contrariada e me sentindo estranha, permiti.

Noites e noites isto se repetiu. Comecei a ficar irritada, não conseguia mais dormir. Tinha pesadelos e acordava muitas vezes gritando. Um dia ele veio me tocar, e eu pedi: ‘Por favor, pare com isto!’. Então ele me disse: ‘Se você contar para sua mãe, eu vou embora e você voltará a não ter pai, ela será novamente infeliz’.

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Aquilo me tocou como uma faca na garganta. Minha mãe era sorridente, eu achava que aquele homem era bom para ela. Decidi respeitar o pedido dele. Acordei muitas vezes com ele se masturbando na minha frente. Não entendia porque saía aquele líquido do corpo dele, mas sentia muito nojo.

Ele chorava e dizia muitas vezes: ‘Eu te amo, eu te amo’. Aquilo me deixava muito deprimida. Cansei de ir à missa aos domingos e pedir perdão ao padre, dizer que fazia coisas erradas e que me sentia suja e pecadora. Ele me perguntava o que era, eu dizia que traía minha mãe. Ele me dava penitencia e eu acreditava que estaria limpa e em paz.

Este ciclo se repetiu outras vezes. Cheguei a ter cacoetes e de tanto arrancar cabelos fiquei quase careca. Fui parar na psiquiatria de um grande hospital. Me deram remédios para dormir. E quando perguntavam como me tratava meu padrasto eu gelava. Não queria que minha mãe enfrentasse uma nova separação. Dizia que me tratava bem e mudava de assunto.

Com o passar do tempo, fui ganhando peso e corpo de mulher. Apesar de ser muito magrinha, meus seios já apontavam. E meu padrasto começou a perturbar ainda mais. Quando ia tomar banho, eu o via me espionando pela janela do banheiro, ou pela fechadura da porta. Com medo, peguei mania de fechar todos os buracos com papel higiênico. E me sentia segura. Minha mãe indagava porque eu fazia aquilo, e eu sempre desconversava.

Para usar o vaso sanitário, eu também forrava, porque tinha nojo de usar o mesmo local que ele. Tudo nele me incomodava, o cheiro de suor, seu hálito, suas piadas maliciosas, seus comentários de baixo nível sobre as mulheres da TV. Eu percebia seu jeito machista, ele dizia que mulher era para ser ‘comida’ e tinha que ser gostosa.

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Algumas noites, ele pedia para eu não dormir logo e ouvir ele transando com minha mãe, para ver como era gostoso. Ele falava que estava na hora de ele fazer um teste para ver se eu ainda era virgem. Eu não conseguia mais dormir de medo de ouvir minha mãe com ele, e quando ouvia ela gemer eu gritava e ela vinha dormir na minha cama. Eu me sentia feliz e protegida. Sabia que ela não seria tocada por ele naquela noite.

Com o tratamento psiquiátrico, foi ficando difícil a minha vida. Pedi para ela não me levar mais para tomar os comprimidos, que eram gigante, e eu não gritaria mais a noite. Minha mãe, muito atenciosa e carinhosa comigo, aceitou. Ela nunca percebeu nada estranho.

Um dia, minha avó me convidou para morar com ela. Eu teria bolsa de estudos em uma escola de freiras e uma vida mais tranquila sem os irmãos e o padrasto me perseguindo. Mas eu amava tanto minha mãe que só de pensar em viver longe dela eu chorava.

Então mesmo com todo este pesadelo que eu vivia, optei por ficar com ela. Às vezes, eu saía da escola pensando que ela estava me esperando e era ele. Eu perguntava para ele onde estava minha mãe, ele dizia que tinha ido para casa da minha avó. Eu sabia que quando chegássemos em casa ele me colocaria na cama e me acariciaria. Eu tremia e sentia ânsia só de pensar, e ficava imensamente triste.

Chorava escondido e me sentia a menina mais triste do mundo, me sentia injustiçada e revoltada de todos terem pais legais, e só eu ter um padrasto assim. Quando eu fiz 12 anos, já estava quase mocinha, e ele fez vasectomia. Hoje, relembrando, acho que ele tinha a intenção de ter relações sexuais comigo, e não me engravidar.

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Eu comecei a ter um comportamento de rejeição. Sentia ânsia de vômito quando ele chegava perto de mim, me afastava quando se sentava no sofá ao meu lado. E tinha vergonha dele. Minha mãe vinha conversar comigo, brava, questionando minha ingratidão. Eu dizia que não gostava que ele tocasse na minha perna, ou insistisse em beijar o canto da minha boca.

Ela não via maldade, achava que ele era amoroso apenas. E eu não queria falar a verdade. Sentia medo que ela sofresse e me enviasse para morar com minha avó assim como fez com meu irmão mais novo, já que o padrasto estava fazendo diferença do filho dele com o filho caçula dela.

Comecei a repudiar sua aproximação cada dia mais. Não deixava ele tocar em meus seios e colocava toalhas nas fechaduras das portas com medo de sua espionagem. Uma das últimas vezes que ele veio no meu quarto eu comecei a chorar alto e ele se assustou.

Eu estava farta de tantos carinhos profundos e suas palavras obscenas e masturbações na minha frente. Eu não entendia direito o que era, mas algo me dizia que aquilo não era correto. Lembro que em duas vezes ele me forçou a fazer sexo anal. Fui para escola com minha calcinha suja de sangue e fezes.

Aquilo me fez muito mal. Esta foi a parte pior da minha infância e acredito que ele não só violentou meu corpo, mas também meu psicológico. Eu me senti roubada, enganada, traída, usada. E este sentimento de revolta tomou conta de mim. E demorou para me abandonar.

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Consegui o afastar de meu corpo e de seus abusos, finalmente. Tive uma infância complicada, era gaga na escola, introvertida, complexada e me sentia a pior das meninas por ter vivido este inferno dentro de casa. Demorou para eu conseguir trazer namorado em casa e todos ele botava defeito e minha mãe concordava. Mas com 17 anos eu fui firme e disse que ia namorar e pronto!

Comecei a namorar e sempre percebia que ele ficava de olho, sempre reclamando com minha mãe dos rapazes. Eu não ligava. Mas eu tinha muito bloqueio nas relações. Não deixava os rapazes tocarem meu corpo e quando as coisas iam avançando eu terminava o namoro. Era sempre igual!

Fui trabalhar, queria ter minhas roupas, uma vida melhor e também sair de casa, conhecer o mundo, fazer faculdade, ter cultura! Só fui me libertar quando fiz 21 anos, e acabei tomando a decisão de ter minha primeira relação sexual, perder a virgindade.

Eu já trabalhava, fazia faculdade e tinha minhas contas. Como ainda era traumatizada, achei horrível a primeira vez, pois eu era virgem. Senti dor, não prazer. E senti muita raiva deste rapaz que era meu noivo. Apesar de boa pessoa, era ciumento. Queria se casar comigo e que eu trancasse a faculdade.
Terminei o noivado, para a felicidade de minha mãe, que nunca gostou dele, e continuei os estudos e trabalhos.

Com 23 anos, conheci meu ex-marido, fiquei totalmente apaixonada e me envolvi. Neste período, aconteceram muitas coisas na minha família. Minha mãe descobriu que meus irmãos mais novos usavam drogas, uma decepção imensa para ela, e o mais velho saiu de casa. Em seguida, seu companheiro a deixou na chácara cuidando de tudo e trouxe a caseira de 17 anos para morar conosco.

Aquilo me revoltou muito, porque minha mãe ficava sozinha no mato, sem telefone, sem vizinhos e a moça jovem em casa. Tentei interceder, mas ele foi enfático: não se meta em nossa vida. Um dia, minha mãe descobriu que ele estava tendo caso com a caseira.

Fora isso, tivemos duas empregadas em casa que fugiram misteriosamente, de madrugada, e com o tempo ligamos as coisas, e tivemos a certeza que ele também as molestou. Bem, desta vez minha mãe entrou em choque. Estava na menopausa, com os filhos com problemas de drogas, tinha tirado o útero, sua autoestima estava baixa. Ele confessou que estava apaixonado e queria se separar.

Eu dei total apoio, falei para ela pegar pensão, afinal ela não trabalhou por culpa dele, e nós a manteríamos em casa. Eu estava quase formada. Contei para minha mãe parte dos abusos que sofri. Ela começou a gritar e perguntou: ‘Você perdeu a virgindade com ele?’.

Eu não conseguia falar. Só neguei e disse que ele não tinha me respeitado. Não tive coragem de falar do sexo anal. Nem eu queria lembrar! Ela decidiu viajar para casa da minha avó e pensar o que fazer. Eu fiquei estes dias na casa do meu namorado e nunca mais consegui chamar meu padrasto de pai. Finalmente, eu tinha assumido o que ele era, e não ia mais fingir para ninguém.

Quando ela voltou, me chamou e disse: ‘Filha, você está se formando, terá profissão e vai se casar, eu não tenho profissão e não pude trabalhar, porque ele, nunca deixou”. Então ela decidiu perdoar seu companheiro, não por amor, mas pelo comodismo da vida que tinha. Duas casas, filhos crescendo. Como ela ajudou muito ele a conquistar tudo e foi aconselhada pela minha avó, eu respeitei e segui em frente.

Ela vendeu a chácara e se mudou para o litoral. Eu me formei, casei e fui ter minha vida. Ela sempre confidenciava para mim que não era feliz. Perdeu outras três empregadas, a última o noivo chegou a ligar para meu padrasto o ameaçando de morte, porque ele tentou seduzir a moça a ter relações com ele antes de se casar, mesmo sendo virgem e evangélica.

Mamãe estava realmente cansada, mas não sabia como separar. Neste período, eu me tornei mãe, estava feliz no casamento, morando em uma linda chácara. O boato do abuso que vivi já havia sido comentado por todos na família.

Tive tios que ficaram revoltados e nunca mais quiseram falar com ele. Minha madrinha falava mas não tinha mais respeito e só uma tia que manteve amizade assídua. Decidi contar minha história para uma revista. Alterei nomes, número de irmãos e fatos, para ninguém me reconhecer. Ainda assim, uma prima que sabia de tudo levou a publicação para minha mãe.

Minha mãe me ligou com a voz embargada perguntando se era verdade. Eu não consegui mentir e admiti, disse que precisava tirar de dentro de mim. Ela avisou que iria sair de casa. Mas eu a ameacei, disse que ele quem deveria sair. Se ela saísse da casa dela, eu iria para o litoral e abriria um boletim de ocorrência contra ele. Ele e meu meio-irmão saíram de casa e essa residência foi vendida.

Só anos depois, após uma sessão num centro kardecista, contei o resto. Relatei os abusos anais, as palavras, ameaças e chantagens. Ela ficou em choque e entrou em depressão. Apesar da separação, ela ainda falava com ele socialmente, porque não sabia destes detalhes. Foi difícil eu desenterrar o passado.

Ela se sentiu culpada por não me proteger, mas eu respondi que não tinha como ela saber. Ainda mais unidas, resolvemos deixar o tempo enterrar esse assunto pesado e triste. Fiz terapias, mas minha libertação veio com a pós-gradução que fiz sobre violência sexual na infância. Foi muito importante saber sobre o ciclo do silêncio, que todos faziam chantagens, que a sociedade sempre culpava a vítima, que as vítimas se sentiam culpadas porque era um conceito machista e cultural.

Enfim, eu deixei de ser vítima para ser sobrevivente. E descobri minha libertação pela comunicação. Compreendi que só quando nos libertamos de um trauma, mostrando ao mundo, conseguimos vencer nosso opressor. Venci meu padrasto a ponto de enviar através de minha mãe um recado que eu havia o perdoado. Ele foi tão grosseiro que mandou dizer que ele nunca ia me perdoar, porque eu acabei com a vida dele.

Moralmente ele ficou muito mal perante a todos, mesmo a minoria duvidando de minha versão. Eu era uma criança. Ele dizer que eu o seduzi era absurdo. Como uma criança seduz um homem com mais de 30 anos? O mínimo que um homem decente e com caráter deve fazer é avisar a mãe que sua filha está com comportamento inadequado.

Tenho uma filha formada e totalmente independente. Por causa do meu passado, hoje ela é voluntária de uma ONG de crianças vítimas de violência sexual. Eu estou elaborando um livro com vários depoimentos de pessoas que passaram pelo que eu passei. Estamos firmes, fortes, somos vencedoras. Logo vou publicar.

Estou no segundo casamento, sou jornalista e ainda vou trabalhar com crianças vítimas de violência, estou aguardando passar esta pandemia. Peri minha mãe há seis anos por causa de um câncer agressivo. Acho que foi de desgosto. Sinto muitas saudades e sei que o amor dela me salvou de uma ruína; das drogas, da prostituição, da revolta.

Por ela eu lutei, estudei, venci e sei que mesmo ela não estando mais aqui, nosso elo e ligação é para sempre. E aprendi que com o amor superamos tudo. Até os traumas. Por estas meninas eu quero lutar,  pedir que a justiça seja feita. Que pedófilos sejam punidos com mais rigor, sejam presos e paguem por seus crimes. Chega de silêncio, de tabu e de vergonha. Temos que abrir nossas histórias para o mundo e nos libertar de nossos opressores.

Somos mulheres e toda mulher merece respeito e dignidade desde seu nascimento. E vou lutar agora com o apoio de minha filha, que também diz se orgulhar da mãe e mulher que me tornei.”

A partir de agora, CLAUDIA mantém esse canal aberto e oferece acolhimento para quem quiser libertar as palavras e as dores que elas carregam. Fale com CLAUDIA em falecomclaudia@abril.com.br.

*Nome trocado a pedido da personagem

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