Agricultura urbana é recomeço para estas mulheres em vulnerabilidade
Três alunas da Horta Social Urbana, projeto da Arcah, falam sobre suas trajetórias, sonhos e o que aprenderam além da agricultura urbana
Resiliência. Essa foi a palavra repetida por Cimair Andrade, 36 anos, Paula Soares de Passos, 61, e Eliane Kienen, 63. Essas três mulheres, com trajetórias pessoais de perdas, mas também de muita luta, sabem bem o que é resiliência. Elas, que se encontram em situação de vulnerabilidade social, vivendo em abrigos por não terem uma casa para chamar de lar, se formaram no dia 2 de dezembro em agricultura urbana pela Horta Social Urbana.
Projeto criado pela Arcah, organização não governamental que promove a reintegração de pessoas em situação de rua na sociedade, a Horta Social Urbana promove, por meio da agricultura, o resgate da autonomia da população vulnerável, com um programa pedagógico de fortalecimento.
Em setembro deste ano, a 11ª turma, formada majoritariamente por mulheres entre 25 e 60 anos, iniciou um processo de aprendizado que perpassava pela agricultura – aprendendo a mexer com a terra, a fazer canteiro e composto, além de plantações de alface, couve, repolho e flores como girassol –, mas também por questões sociais e humanitárias.
“Na parte da manhã, aprendíamos sobre a horta orgânica. Na parte da tarde, tínhamos aulas com a psicóloga e a pedagoga e aprendemos muita coisa boa, como a resiliência e a história por trás do Dia da Consciência Negra“, relata Eliane a CLAUDIA, durante conversa por vídeo-chamada. “Foi muito além da horta. Aprendemos sobre empatia”, completa.
Cimair, que, durante o nosso papo, mantinha um sorriso no rosto que cativava qualquer pessoa que estivesse por perto, concorda com Eliane. “Aprendi sobre ter amor ao próximo, me colocar na dificuldade do outro e aprender que existem pessoas boas no mundo”, afirmou.
Ser resiliente
Cada uma dessas mulheres tem uma história por trás da situação em que elas se encontram. Também compartilham paixões, desejos e sonhos para o futuro. Eliane, por exemplo, é cantora e compositora. Nasceu no Rio de Janeiro e foi morar em São Paulo ao lado da mãe e do marido. Após o falecimento da genitora, foi para o litoral, onde seu irmão e, posteriormente, seu marido faleceram.
Sozinha, com dificuldades e obstáculos enfrentados na vida, ela passou a viver em centros de acolhimento para pessoas em vulnerabilidade social. Mas com um talento nato de compositora e cantora, ela seguiu atrás de seus sonhos. Um pouco antes da pandemia da Covid-19, se juntou a um grupo musical que tocava em shopping centers. Com a chegada do coronavírus, as apresentações foram suspensas. Mas ela não desistiu do sonho de vender suas composições para artistas consagrados.
“Eu conheci a Eliana Pittman, uma das cantoras que eu admiro muito. Eu escrevi uma cartinha falando que eu sou compositora e perguntando se eu podia passar uma das minhas letras para ela”, relatou. “Quando eu estava no abrigo, ela me ligou. Mas lá não podemos falar no telefone, então ela deixou um recado avisando que ia me ligar no dia seguinte no celular, que pifou. Eu acabei perdendo o contato, mas tenho a maior vontade de falar com ela novamente e mostrar as minhas músicas”, contou. “O negócio é seguir sempre em frente, porque quando a pessoa para de sonhar, ela para de viver.”
Já Paula nasceu em Guaíba, no Rio Grande do Sul. Trabalhou por dez anos com reciclagem e depois foi para São Paulo para morar com a filha. “Não deu certo e acabei indo para o abrigo”, conta. “Estamos sem conversar, mas eu acho que com o tempo, vamos voltar a nos falar”, diz esperançosa.
Com a experiência em trabalho físico, Paula não deixava trabalho pela metade durante o curso de agricultura urbana. “Eu gosto de trabalhar e eu sou muito rápida, porque na época da reciclagem, quanto mais eu trabalhava, mais eu ganhava”, conta. Além do trabalho, ela sempre se identificou muito com a leitura, desde obras literárias até jornais e revistas. “Eu lia CLAUDIA, inclusive”, conta sorrindo.
Sobre o curso, Paula só tem elogios. “Eu aprendi muito, em todos os sentidos. É tão inspirador que não tem palavras!”, declarou. O que ela mais gostou de fazer foi ver as sementes que ela plantou se transformarem em plantas. “Eu queria ver as plantinhas nascerem, era o que eu estava mais curiosa. E elas nasceram muito lindas!”
Cimair, a mais nova entre as três entrevistadas desta reportagem, ainda tem muitos sonhos para realizar. “Eu quero ser psicóloga. A Sofia [psicóloga da Arcah] é uma grande inspiração e uma grande amiga. Ela me ajudou a sair da depressão e decidi que quero me formar em Psicologia, porque para Deus nada é impossível, não é? Eu estou morando em um abrigo, não tenho família porque fui abandonada, não tenho com quem contar, mas tenho meus sonhos”, afirma.
Recém formada no Ensino Médio, Cimair agora pretende continuar seus estudos para conseguir entrar numa faculdade, se formar, ter uma estabilidade e sua casa própria. “Quero colocar em prática tudo o que eu aprendi, a empatia, a resiliência e não vou desistir, por mais difícil que seja. A minha fé em Deus vai fazer eu conseguir tudo o que eu quiser”, finaliza.
Sobre o projeto
A Horta Social Urbana funciona a partir de um trabalho em rede, junto com serviços da assistência social. Por meio de visitas em centros de acolhimento perto da região do Jabaquara, zona sul de São Paulo, onde o projeto é localizado, a psicóloga do centro faz entrevistas com moradores dos abrigos que estariam interessados em participar do curso de agricultura urbana.
“A psicóloga apresenta o projeto, explica o que é o curso e a equipe técnica do centro passa alguns nomes que têm o nosso perfil. Depois disso, essas pessoas são entrevistadas para entenderem se é isso mesmo o que elas querem”, explica Lucas Machado, gestor do programa da Horta Social Urbana.
O objetivo central do projeto, segundo Machado, é a promoção da autonomia e a preservação da integridade das pessoas em situação de rua. Para isso, além da escola de agricultura, há três grandes pilares: psicologia, com trabalho socioemocional e oficinas sobre empregabilidade; os ciclos de estudo, relacionados a pedagogia e incentivo ao retorno à escola por meio da Educação de Jovens Adultos; e a parte técnica, as hortas urbanas agroecológicas. “São questões importantes para a pessoa ter repertório e outras fontes de prazer”, explica Machado.
Além disso, o projeto também tem um compromisso ambiental. As hortas ocupam espaços ociosos de São Paulo, que não estão cumprindo a função social determinada por lei – de acordo com o inciso XXIII do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, toda propriedade deverá atender a uma função social. “Damos ao lugar duas funções: a social e a ambiental, porque se eu tenho uma horta, eu tenho biodiversidade e também passa a ter uma função de aprendizagem e alimentação”, explica.
Depois de formados, os alunos da Horta Social Urbana que conseguiram empregos – cerca de 33% dos educandos, segundo Machado – são acompanhados pela equipe psicológica do projeto por até 6 meses.