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“Falando em aborto legal, o Brasil abandona suas mulheres à própria sorte”

O ginecologista Jefferson Drezett é uma referência no procedimento no Brasil. Ele comenta o descumprimento sistemático da lei no país

Por Isabella Marinelli Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 18 ago 2020, 14h57 - Publicado em 18 ago 2020, 12h37
Jefferson Drezett
O ginecologista Jefferson Drezett formulou um modelo de atendimento a vítimas de estupro (Julia Rodrigues/CLAUDIA)
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Uma menina foi estuprada pelo tio dos 6 aos 10 anos até que engravidou. Ao procurar o sistema público de saúde do estado do Espírito Santo, teve sua solicitação de interrupção da gravidez enviada à decisão de um juiz. Ainda após a autorização dele, os médicos se recusaram a cumprir o procedimento, alegando não haver respaldo para um aborto com 22 semanas e quatro dias de gestação. Ela foi levada ao estado de Pernambuco, onde realizou o procedimento mediante internação e com a segurança necessária. Apesar do desfecho fundamental, a série de violências que ela sofreu no périplo para conseguir desfrutar de seus direitos como cidadã são irreparáveis e inadmissíveis.

No Brasil, é lei: o aborto é garantido às mulheres que assim o desejarem quando o feto é fruto de violência sexual. O agravante dela é que, além de tudo, se enquadra no crime de estupro de vulnerável em razão da idade. Ela não é a única, infelizmente. De acordo com dados do Sistema Único de Saúde obtidos pelo site Universa, crianças de até 11 anos de idade são as principais vítimas. Em 2018, ano de recorde nos casos de violência sexual denunciados no país, 53,85% das vítimas tinham até 13 anos de idade.

A via crúcis para conseguir o aborto legal também não é novidade. “O sistema não funciona para as mulheres. Eu verifico pessoalmente essa realidade há 30 anos”, afirma o obstetra Jefferson Drezett. Ele implementou e chefiou por 24 anos o serviço de atendimento à violência sexual e efetivação do aborto legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, referência nesse tipo de caso. Também participou da composição das normas técnicas brasileiras para realização do procedimento seguindo a forma da lei. Em 2019, ganhou o Prêmio CLAUDIA na categoria Eles por Elas pelo empenho na defesa dos direitos femininos. Ele fala a CLAUDIA sobre o caso que nos assombrou nos últimos dias, a responsabilidade do sistema de saúde para com as mulheres e a realidade do aborto legal no Brasil.

O que significa e qual é a repercussão de uma gestação aos 10 anos?
Significa algo absolutamente injustificável. Não é algo que se admita em qualquer circunstância. Nenhuma menina deveria estar grávida aos 10 anos nem deveria ser submetida a relações sexuais. Em primeiro lugar, devemos considerar que a maioria das meninas no Brasil tem a primeira menstruação aos 12 anos. Não quer dizer que aos 14 ou aos 10 esteja errado, pode acontecer. Pelo fato do corpo ainda estar em desenvolvimento, uma gestação nesta faixa etária pode ter repercussões de saúde sérias, porque o corpo é frágil.

A família procurou uma unidade de saúde para realização de um aborto, mas ainda assim o caso foi parar na Justiça. Isso era mesmo necessário?
Não cabe solicitar autorização de juiz neste caso. Não é uma situação para que um serviço de saúde requeira autorização. Estamos falando de estupro de vulnerável posto desde 2008 no Código Penal e de uma gravidez que dele recorre. Manter relações sexuais com menores de 14 anos é estupro de vulnerável. Não possível que após 80 anos da regulamentação do aborto em caso de violência sexual ou risco materno o sistema de saúde e a gestão pública não se atentem a esse mecanismo, ainda que com farta legislação a respeito. Não se pune a equipe médica caso a gravidez seja interrompida para salvar a gestante ou após abuso. Perguntar para um juiz me parece no mínimo patético. Nada contra a decisão dele, que é, inclusive, bem escrita e favorável, mas gasta-se um um tempo muito precioso nesse atendimento, uma vez que as complicações sempre são associadas ao tempo gestacional. Quanto mais cedo se faz a interrupção, mais segura ela é. O que se cria, na verdade, por desconhecimento e uma gestão incapaz de dar a resposta que a lei pede, é a solicitação de caminhos que se tornam apenas obstáculos. Não há exigência desse alvará, porque ela tinha não uma, mas logo duas razões para abortar, já dispostas no código brasileiro.

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É necessário que um hospital tenha um protocolo específico para interrupção de gestação ou interrupção de gestação nesta faixa etária?
Ele não precisa ter um protocolo, porque o país já tem uma normativa técnica para isso desde 1999 que é muito confiável e reconhecida por outros países, já inspirou outras nações, inclusive. Os serviços e os gestores de saúde têm acesso a todo esse conteúdo a um clique. Não há como imaginar por qual motivo um hospital deveria reescrever uma norma técnica própria. O que se revela no caso dessa menina é semelhante a milhares de caso: após 80 anos do código penal brasileiro deixar absolutamente claro o direito dessa mulher, o sistema de saúde tem solenemente negado o acesso a lei. Observamos o descumprimento do desejo da mulher sem que nenhuma repercussão exista para essas entidades. As mulheres são ignoradas, submetidas a um processo completamente distorcido, distante do que é recomendado pelas normas para que, no final, ainda tenha esse procedimento recusado. A Secretaria de Saúde do Espírito Santo não conseguiu dar uma solução para aquela menina mesmo tendo tido 80 anos para pensar numa resposta para ela. Outros 20 anos desde a norma técnica. É mais fácil dizer que nenhum médico quer fazer, como se não houvesse outro caminho para ela. Não é possível que naquele estado não tenha um médico com empatia e profissionalismo para isso. Mandá-la a outro estado significa anos de lei descumprida sem qualquer retaliação. Isso tem sido feito às mulheres há décadas sem que ninguém conteste ou constranja os responsáveis de qualquer maneira.

Ela foi atendida por um serviço dedicado às vítimas de violência sexual. Ainda assim, o procedimento foi recusado mediante autorização judicial…
Isso torna ainda mais grave. É bonito dizer que existe um serviço, mas ele não funciona. É desonesto negar atendimento quando é necessário. Os médicos se recusarem a fazer o aborto não tira a obrigação do hospital de fazê-lo. As entidades responsáveis deveriam pedir desculpas e pedir um empréstimo de algum médico de outro estado que pudesse viajar, mas não “despachar” o problema para outra unidade da federação.

Existe algum protocolo específico relacionado à idade?
O protocolo para aborto não é associado à idade das pessoas. No caso dela, de aborto do segundo trimestre, requer que seja em regime de internação. Nenhum protocolo, nem internacional, se refere à idade, mas ao volume uterino ou idade gestacional. Considera-se o estado geral de saúde, claro, mas sem diferença de tratamento. No caso dela, aos 10 anos, poderiam ser praticadas doses menores por uma questão de precaução, mas nada fora do que se espera. Estamos falando de um aborto muito seguro. Feito corretamente, o risco de morte para essa menina é de 3,5 casos a cada 100 mil procedimentos. Numa gravidez até o final, a taxa de morte materna é de 64 a cada 100 mil procedimentos. Além disso, em caso de dúvidas, nenhum colega com experiência se recusaria a dar apoio técnico. Eu viraria a noite no telefone, se fosse preciso. Para a lei brasileira, aborto é interromper a gravidez em qualquer momento com objetivo de morte fetal. Não é verdadeiro dizer que não existe respaldo. Precisamos fazer uma diferenciação do que é tecnicamente chamado de aborto. Para os médicos, não é o conceito legal. É o conceito da Organização Mundial de Saúde vinculado à viabilidade ou não fetal. Isto é, quando não tem vida separado do corpo da mãe, a gente chama de aborto. Como isso pode ser variável, porque medicina não é matemática, o critério da OMS para definir do ponto de vista da saúde é a interrupção de 20 a 22 semanas a depender a estimativa e do peso fetal de até 500g. Isso significa que não dá para fazer depois disso? Não. Não há nenhuma implicação legal, represália, consequência de ordem jurídica para o médico, porque ele não fez nada que discordasse da lei, já que ela diz que pode ser em a qualquer momento.

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Os problemas no atendimento de saúde da menina do Espírito Santo é uma exceção?
Essa é uma situação recorrente que eu verifico cotidianamente há 30 anos, em diferentes circunstâncias na sociedade brasileira. Não é o primeiro caso que vejo de gravidez por abuso sexual aos 10 anos de idade, apesar deste ter ganhado grande repercussão pública. Essa é a realidade que a maioria das mulheres enfrenta para receber atendimento nessas circunstâncias.

Qual é o cenário do aborto legal no Brasil?
O Brasil, do ponto de vista do aborto legal, tem abandonado as mulheres à própria sorte. Uma mulher ou menina em situação semelhante poderia recorrer ao aborto inseguro. Isso é injustificável. Não existe o argumento de que não há norma. Eu tive a satisfação de escrevê-la, inclusive o capítulo de aborto. Para a lei brasileira, aborto é interromper a gravidez em qualquer momento com objetivo de morte fetal. Não é verdadeiro afirmar que não existe respaldo legal.

Um médico pode recusar atendimento mesmo após decisão judicial?
O código de ética médica não pode divergir da lei brasileira. É uma orientação de exercício profissional e não pode conflitar com a lei. Não temos um precedente recente desse tipo de conflito. O que precisamos dizer, que está lá contido, é que todo médico tem direito de exercer a medicina livremente e não está obrigado a fazer procedimentos que venham a conflitar com seus ditames de consciência. A objeção de consciência não é um desejo absoluto. Ele perde o direito se não existe outro médico para fazer o atendimento, porque o direito do paciente é prevalente e prioritário. Perde também se da negativa decorrer um dano importante para a saúde física ou mental para a pessoa. E, em terceiro, se a negativa envolve urgência ou emergência. Atendimento em violência sexual não cabe objeção de consciência, mas o aborto legal não é algo que precisa ser imediatamente feito, exceto por risco de vida. Entretanto, um hospital inteiro não pode alegar objeção de consciência. Em outros países, por exemplo, você não pode fazer essa alegação no serviço público. Você pode se negar a fazer um aborto, é claro, mas não pode trabalhar numa instituição do Estado. Eu acredito que se ela é verdadeira, por forte convicção religiosa, por exemplo, o profissional deve ser poupado. Mas isso não dá ao gestor de saúde o direito de dizer que ele não pode fazer nada sobre isso. Ele pode, sim. A gestão em saúde não pode não dar resposta a esse tipo de caso. Caberia ao chefe da obstetrícia realizar o procedimento, ou ao diretor do hospital ou à administração convidar alguém de fora. Isso não quer dizer que eles possam ir para casa, colocar a cabeça no travesseiro e não sentir o peso do que fizeram, ainda que eles tenham o respaldo da lei. Não podemos colocar nas costas de uma categoria a construção de um serviço e atendimento de saúde, mas essa é uma situação inexplicável. Como é possível abandonar uma criança depois de tudo o que ela passou? Como dormem depois? Essa criança não tem nome para a gente que não a conhece, mas não importa. Ela é nossa filha, nossa irmã, nossa sobrinha. Todos nós somos responsáveis por ela.

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