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“Vai malandra”: retrato ou objetificação?

O clipe da Anitta traz o contexto das favelas e periferias de modo verossímil: mulheres que se bronzeiam na laje e celebram seus corpos

Por JULIANA BORGES
Atualizado em 20 dez 2017, 18h15 - Publicado em 20 dez 2017, 16h45
 (Divulgação/Divulgação)
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De que nos serve a crítica cultural? Segundo estudiosos, e um campo que se articula na análise sobre a crítica e a indústria cultural, discute-se alguns dos pressupostos básicos para tal: a esfera pública, como o campo em que se é possível observar e analisar um fenômeno ou expressão cultural; uma ideia de mediação entre artista e público; e uma abordagem racional sobre processos. Neste último caso, coloca-se como premissa a consideração da conjuntura histórica em que a obra a ser objeto da crítica se posiciona; a apresentação das diversas perspectivas sobre a obra; e, por fim, mas não menos importante, a contextualização político-social da obra sendo analisada, compreendendo, com isso, a arte não como descritiva da realidade, mas com a “verossimilhança”, levando a termos literários, como um ponto central para relacionar todos os elementos constitutivos do que se vai criticar.

O que temos visto no decurso histórico, infelizmente, é uma crítica cultural manca, que descarta premissas para a sua produção e tem servido, sobremaneira, como instrumento de hierarquização e validação sobre o que deve ou não ser considerada cultura, qualificando e desqualificando produções entre erudito e popular por hora, elevado e chulo por outra e, pudera!, demarcando, no fundo, uma ideologia burguesa que se impõe hegemônica.

No dia 19 de dezembro foi lançado o novo single de Anitta, “Vai malandra”, e a polêmica já está grande, como tudo que envolve a artista nos últimos tempos. As principais críticas têm sido em torno da objetificação do corpo da mulher brasileira; apropriação cultural; e a direção do clipe, que foi realizada pelo fotógrafo norte-americano Terry Richardson.

No primeiro caso, há uma forte crítica em relação a objetificação do corpo das mulheres. Eu, sinceramente, tinha certa esperança de que, em pleno 2017, nós já tivéssemos superado que: a categoria mulher não é universal. O que quero dizer com isso? Quero dizer que os processos de formação, compreensão de mundo, vivências, obstáculos, garantia de direitos, conquistas e opressões são absolutamente diversos entre as mulheres. E não são diversos por um mero detalhe, são diversos porque as opressões estruturais, ou seja, de classe, raça, são vividas pelas mulheres de modo diferente, posto que a diferença tratada como desigualdade é o que garante o pleno funcionamento de um sistema baseado em hierarquias raciais, de gênero e de classe.

O que diferencia e potencializa mulheres jovens brancas que saem sem camisa e sutiã nas ruas de mulheres funkeiras, ou passistas de escola de samba, celebrando o próprio corpo? Por que umas são mais legitimadas do que outras? Quais são os graus de premissa, ideologia e gosto, para usar termos bourdieusianos, que determinam e diferenciam o que pode ser considerado celebração do corpo e discurso de liberdade sexual e objetificação? E para onde vai a potencialidade de subversão dessas mulheres? Para onde vão as subjetividades e individualidades das pessoas periféricas?

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A meu ver, essas são perguntas fundamentais para se iniciar qualquer discussão que se queira fazer sobre retornarmos a análises que desqualificam o modo como mulheres faveladas e periféricas, majoritariamente negras, vivem seus corpos. É preciso descolonizar o olhar, desmantelar premissas que não são universais.

Nem todas sempre fomos prisioneiras na vivência da sexualidade. No caso de mulheres periféricas, negras, essa sexualidade, inclusive, foi experimentada de forma violenta, e ainda o é hoje. Disso, não discordamos. Contudo, discordamos sobre a intenção de ditar como estas mulheres devem lutar e combater uma objetificação que, repito, é sistêmica.

A resposta principal tem sido a de subverter esse olhar imputado pelo outro. É sabido, e há inclusive estudos, a diferença de compreensão do corpo entre classes populares e médias. Na última, são corpos mais esguios, seguindo os padrões da moda hegemônica; ao passo que entre as classes populares os corpos mais untuosos são considerados mais atrativos, sendo que no último período há, inclusive, maior diversidade na celebração de corpos gordos.

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O clipe da Anitta traz o contexto das favelas e periferias de modo verossímil: mulheres que se bronzeiam na laje, com um comércio sobre isso em emergência; celebram seus corpos e se preparam para ir ao pancadão no fim do dia. Se isso é uma objetificação, então estamos dizendo que a subversão não é possível e estamos colocando as mulheres periféricas, mais uma vez, em um lugar de passividade. É isso mesmo?

Não falarei muito sobre o segundo elemento: a crítica em relação a apropriação cultural. Compreendo que esta é mais uma das questões que a todo tempo retornamos de modo enviesado. Apropriação cultural é algo realizado de modo sistêmico, quando o capital sequestra um elemento cultural para lucrar sobre isso de modo descontextualizado. Me pergunto: até que ponto Anitta, sendo uma cria da Furacão 2000, da baixada fluminense, está se apropriando de elementos da favela, um local de onde ela saiu? Sobre a estética afro, das tranças box braid no cabelo, volto ao elemento estrutural que deve ser demarcado na análise sobre a apropriação cultural saindo do campo da individualização do debate. Confesso que não me agrada. Anitta poderia estar com sua cabeleira chapada dos tempos de Furacão e ainda sim apresentaria o contexto das favelas e batidões cariocas? Basta observarmos um baile funk que veríamos que sim.

Por fim, a direção do clipe sendo realizada por Terry Richardson. O fotógrafo norte-americano tem sido colocado no ostracismo nos EUA após várias denúncias de assédio e abuso sexuais. Alguns colocarão que Anitta, ou sua representação, podem ter feito a escolha focando em uma entrada no cenário internacional. Mas fico refletindo que a artista já tem conseguido essa entrada e poderia ter lançado mão de outros diretores, que apresentariam a estética periférico-favelada tão bem quanto, inclusive conseguindo garantir maior intersecção de raça no clipe, algo que ficou bastante a desejar.

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Além disso, quando estamos vivenciando um momento tão importante de vozes de mulheres se levantando contra abusos, assédios e violências sexistas na indústria cultural, que me parece, no mínimo, desnecessário ressuscitar nomes que precisam, na verdade, contar com o nosso reforço e pressão para que as denúncias sejam investigadas e os crimes que cometeram sejam penalizados. Até que isso ocorra, o mínimo que deveríamos fazer é garantir o ostracismo a abusadores. E acho que, nisso, devemos estabelecer um debate sincero com a cantora.

O debate e a crítica são fundamentais, compreendendo diversidade sem premissas universais e chamando a responsabilidade sobre o que, ao menos a meu ver, é o grande problema disso: desenterrar abusadores. Sobre objetificação de corpos, relembramos que não somos universais e que as mulheres periféricas-faveladas são indivíduos com subjetividades e que travam lutas de subversão cotidianas para enfrentar a violência a quem são subjulgadas. Protagonismo é compreender que todas somos sujeitas de nossas histórias. Todas.

JULIANA BORGES é pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde estuda Sociologia e Política. Foi Secretária-Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013).

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