Ao pensar em filmes brasileiros que merecem a ida ao cinema, não há como esquecer da grande estreia da última quinta-feira (29): ‘Bacurau‘, dos diretores Kleber Mendonça Filho (‘Aquarius’) e Juliano Dornelles. O longa, que estava como um dos possíveis nomes para o Oscar 2020, conta com grandes atores como Sônia Braga e Silvero Pereira.
Silvero, que ficou conhecido recentemente por dar vida à travesti Elis Miranda na novela ‘A Força do Querer’, da Rede Globo, dessa vez interpreta Lunga, um morador da cidade fictícia Bacurau. O personagem extremamente agressivo é assim reconhecido pelo público quando o vilarejo do interior do sertão nordestino é invadido por um grupo sádico de forasteiros, mudando completamente a rotina do local até então pacato.
Para entender como foi a construção desse personagem tão intenso, o MdeMulher bateu um papo com o ator. Logo de início, questionamos como foi interpretar uma figura tão agressiva.
“[A ideia] é de que isso aconteça apenas no espaço artístico. Eu, Silvero, pessoa física, não sou a favor da violência como o único lugar de resistência. Nós temos que trabalhar mais o lugar da afetividade, da amizade, do amor. E o Lunga é uma pessoa que não tem isso, ele só conhece a violência”, esclarece o artista.
Junto com a agressividade do personagem, o que também chama a atenção é o visual dele: unhas pretas, o cabelo comprido, o lápis abaixo dos olhos dando ainda mais destaque para eles e muitos acessórios por todo o corpo. Com essa imagem chamativa e forte, uma discussão sobre a possível sexualidade fluida de Lunga começou a rondá-lo. Porém, Silvero explica que o foco de ‘Bacurau’ não é esse.
“Desde a primeira conversa que eu tive com o Kleber e com o Juliano, a gente já discutia sobre isso: que essa não deveria ser a primeira imagem impressa sobre o Lunga. Porque Bacurau é uma cidade onde as diferenças, as diversidades, são extremamente respeitadas e aceitas. Essa não é uma questão para ninguém naquela cidade. Pelo contrário, a grande questão ali é o sistema – de como elas são tratadas, violentadas na educação, na arte, e na religião”.
Nascido em Mombaça, no sertão nordestino, Silvero entende exatamente como é isso. Com muita sinceridade, o ator pontua por que saiu da pequena cidade no Ceará e como Lunga traz todas as lembranças de volta.
“Tem um momento em que o Lunga fala: ‘é muito difícil voltar pra cá!’, eu também saí da minha cidade muito cedo por não concordar com o sistema político daquele lugar, do coronelismo brutal que existe no interior do estado do Ceará e do Brasil. Mas saí para estudar, para lutar, para tentar vencer na vida. E toda vez que eu retorno para a minha cidade, eu retorno como um certo tipo de herói. As crianças olham para mim com um olhar de esperança, de alguém que veio de um lugar muito pobre, mas conseguiu sobreviver e vencer”.
Nordeste: presente!
Por ser esse símbolo de força, mas ter a consciência de que a invisibilidade ronda os nordestinos, Silvero tem escolhido se montar como drag queen em algumas pré-estreias do longa. No Festival de Cannes 2019, por exemplo, o ator surgiu no tapete vermelho com um cropped e uma saia que mesclavam tons claros de azul e rosa. E existe um motivo especial para ter escolhido aparecer assim.
“Eu sempre tive interesse de apresentar junto comigo pessoas que eu admiro e sejam da minha cidade, ou da minha região. Então, sempre fiz questão de usar coisas que são de designers e estilistas cearenses ou nordestinos. […] Ao atravessar o tapete vermelho da maneira como eu estava, as pessoas se interessaram por quem era aquela figura. E ao ir atrás dela, perceberam que essa figura tinha um discurso a dizer: de sexualidade, de diversidade, de não à violência. Foi muito maior do que atravessar como uma pessoa comum”.
Além de atrair os olhares em eventos como o Festival de Cannes, Silvero também chama a atenção por não ter medo de se posicionar politicamente nas redes sociais, mesmo com os ataques ainda mais fortes após a eleição do presidente Jair Bolsonaro. O objetivo do ator é construir um cenário menos hostil comparado ao que ele viveu.
“Eu venho de uma cultura muito silenciada. A minha formação enquanto pessoa, artista, é de referências silenciadas, de pessoas que nunca puderam abrir a boca para falar quem elas são de verdade. Ou seja, não tenho grandes referências de figuras que vi públicas na televisão, no cinema, na música. São poucas referências de figuras que eu olho e digo que são parecidas comigo. Hoje, eu tenho a oportunidade de fazer diferente. Isso é muito importante como ato político para que as pessoas saibam que os nossos direitos foram adquiridos e que nós não podemos retroceder. É daqui para frente, é ordem e progresso. Retrocesso não!”.
E exatamente com esse foco em evoluir e não retroceder nos passos de conquistas sociais, Silvero explica que o pensamento foi esse quando interpretou a personagem Elis, durante a novela ‘A Força do Querer’. Só que é preciso ficar atento à ideia da sexualidade ser o fator decisivo na hora de conquistar papéis.
“Enquanto o mercado diz que pessoas LGBT ou trans só podem fazer personagem LGBT ou trans, então, que eles contratem as pessoas para fazer isso. ‘A Força de Querer’ vem em uma virada muito especial, afinal, temos Carol Duarte e a minha pessoa ali presentes, no momento em que essa discussão está começando a crescer. Acho que hoje, essa discussão já evoluiu, a gente já sabe da quantidade de pessoas qualificadas, atrizes incríveis que são trans, lésbicas, gays e que devem ter esse espaço respeitado. Mas o mais importante é que a nossa luta não seja apenas para fazer personagens que tenham a ver com a nossa vida real. É entender que a nossa sexualidade não está a serviço da nossa profissão e que a gente está disposto, e querendo lutar para fazer personagens que são completamente diferentes do que costumam tachar a gente”.
E a não indicação ao Oscar 2020?
Havia a expectativa de que ‘Bacurau’ fosse indicado ao Oscar do próximo ano, mas não foi o que aconteceu. O filme escolhido para representar o Brasil na categoria Melhor Filme Estrangeiro na premiação foi “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz.
“Claro que a gente fica triste, seria uma grande oportunidade de estar lá e ver o nosso filme representado. Mas a gente entende que é uma seleção e como uma pessoa que acredita na democracia – até onde eu sei foram cinco votos contra quatro, então é uma democracia –, outro filme foi escolhido e que bom que foi um filme também muito importante. A gente está bem representado também”, afirma o ator ao lembrar que o diretor de “A Vida Invisível” também é nordestino, e que a produção traz Carol Duarte à frente das câmeras, uma atriz que admira.