Seu nome ainda é Gal
Trajetória da cantora Gal Costa é revisitada em livro que reúne mais de 100 fotografias e constrói um mapa das suas atitudes empoderadas desde os anos 1960
Em uma entrevista ao jornalista e produtor Ronaldo Bôscoli, em maio de 1977, Gal Costa, com 31 anos, pede licença para ser feminista – na época, talvez fosse necessário – e afirma que considera a mulher um ser superior aos representantes do sexo masculino. “O homem ser mais forte, poder mais que a mulher, é uma coisa transferida a ele pela sociedade. E, muitas vezes, isso o faz mais fraco”, disse. “Eles não têm muito pelo que lutar e eu desconfio dos que conquistam as coisas sem luta”, completou a cantora nas páginas da revista Manchete.
Lembrada de tal declaração, incluída entre as reportagens reproduzidas na recém-lançada fotobiografia Gal Costa (Editora Bei, 264págs., R$ 145), a estrela assina embaixo das palavras publicadas em um tempo em que o Brasil vivia sob uma ditadura militar. “Nossa, é exatamente isso. Acho que faço parte da primeira geração de mulheres que conquistou o direito de existir, de manifestar as próprias ideias, porque antes todas vinham de uma educação castradora, eram humilhadas”, comenta, aos 76 anos, na tentativa de compreender o seu papel em um mapa redesenhado a partir da década de 1960. “Talvez essa mudança tenha acontecido porque nós, que nos tornamos adultas nessa fase, já chegamos com aspirações de liberdade, de trabalhar e cuidar da nossa vida.”
O livro, organizado pelo jornalista Leonardo Lichote, o produtor Marcus Preto e o poeta Omar Salomão, sob coordenação de Ana Basbaum, refaz em mais de uma centena de imagens o percurso artístico, comportamental e, dentro do possível, íntimo da musa incontestável da MPB. Grande parte delas é inédita, recuperadas em arquivos de amigos e fotógrafos, que comprovam o empoderamento crescente e o amadurecimento de uma profissional em quase seis décadas de carreira. São sutilezas que hoje passariam batidas, como posar de pernas abertas, usar pequenos biquínis ou se apresentar com a barriga de fora, mas que causavam furor e serviam de modelo, mesmo sem ela se esforçar, para uma geração libertária.
Nada, nem um retrato, veio do baú de Gal. Aliás, esse baú nem existe. “Nunca me preocupei em guardar essas coisas e até me arrependo de não ter contratado alguém para cuidar de um acervo meu”, confessa. O pouco interesse na preservação do passado não deixa de ser coerente com uma artista que rejeita o saudosismo e descarta, inclusive, a possibilidade de escrever uma biografia mais aprofundada. “Fui delineando minha carreira na emoção da juventude, na vontade fazer as coisas e sem a noção de que o meu trabalho poderia ser eterno, por isso fico comovida de ver que essa história já está registrada”, justifica.
Muitas destas imagens falam por si, mas saltam em relevância diante da costura de ensaios inéditos assinados pelos três organizadores e pelos pesquisadores da cultura brasileira Antonio Risério, Júlio Diniz, Pedro Duarte e Renato Vieira. Os textos estruturam de forma analítica a carreira de Gal e abrem espaço para histórias de bastidores, como o duelo de vaidades travado entre ela e o cantor Tim Maia até chegar ao resultado da gravação da música “Um Dia de Domingo”, em 1985.
“Fui delineando minha carreira na emoção da juventude, sem a noção de que o meu trabalho poderia ser eterno, por isso fico comovida de ver que essa história já está registrada”
Uma fresta para vida pessoal é aberta pelas reportagens, a exemplo de uma em que a artista fala da ligação com a psicanálise – “A análise foi uma busca para não perder a minha identidade e não me confundir com o mito” – ou uma entrevista, em 1974, que a juntou a Maria Bethânia. “Ela era a mais quietinha do grupo, desprotegida. Era muito bobinha e ficava sempre calada, encolhida pelos cantos. Depois, aqui no Rio, mudou um pouco”, entrega a colega e amiga desde o fim da adolescência. Textos do compositor Caetano Veloso, falando sobre o processo do álbum Recanto (2011), e do jornalista José Simão, que trata do agito em torno das míticas Dunas da Gal, na Praia de Ipanema, completam a coletânea.
Ao folhear as páginas, porém, a artista reconhece que suas transgressões significavam emancipação e uma boa parte dessa herança é creditada a sua mãe, Dona Mariah, que morreu em 1993. “Tenho um orgulho enorme de minha mãe porque ela sofreu muito para criar uma filha sozinha e sempre me deu bastante liberdade, algo incomum naquela Bahia em que vivíamos”, diz, citando que os pais se separaram antes de seu nascimento e ela cresceu longe de uma presença masculina. Vem de Mariah a capacidade que Gal reconhece ter para não dar ouvidos ao que as pessoas falam ao seu respeito – ainda mais na era das redes sociais – e boa parte do espelho para a educação de Gabriel, seu filho, de 16 anos. “Até para, em certos casos fazer o oposto, porque minha mãe, por excesso de amor, talvez não tenha posto algumas coisas na balança durante a minha criação.”
Uma felicidade para Gal é ter a intuição de que essa história está longe do fim. “Eu me vejo aos 90 anos cantando e fazendo as coisas que gosto, talvez em espetáculos intimistas, gravações esporádicas, mas trabalhando”, aposta. E, no livro, ela se mostra boa de premonições. Lá pelos 12 anos, em Salvador, percebeu muita gente na rua correndo atrás de um cantor em busca de um autógrafo. Achou aquilo uma tolice. Ao mesmo tempo, contudo, se enxergou, adulta, em uma situação semelhante, assinando pedaços de papel para fãs. Décadas mais tarde, consagrada, recorda o dia em que o empresário Guilherme Araújo ventilou ideias sobre o show Gal Tropical (1979), um dos ápices de sua carreira, e veio a intuição de que ficaria um ano em cartaz. Foi um ano e dois meses só no Rio de Janeiro, antes de seguir para São Paulo, correr o Brasil e chegar até ao Japão.
O isolamento da pandemia renovou o entusiasmo pelo palco. “Foi assustador tudo o que vivemos, quer dizer, ainda estamos vivendo. Senti muita falta do contato com o público”, lamenta. E, concomitante, o descaso com a cultura, a saúde e a ecologia evidenciado pelo presidente Jair Bolsonaro trouxeram à tona uma Gal militante-política, como raras vezes se fez explícita. O show As Várias Pontas de uma Estrela, que estreou em outubro do ano passado, apresenta perto do fim o samba-rock “Brasil”. A letra de Cazuza, presente em diferentes fases da carreira da intérprete, retorna atual e com renovados significados.
Em 1988, a gravação foi tema de abertura da novela Vale Tudo e, durante o show O Sorriso do Gato de Alice, dirigido por Gerald Thomas, em 1994, a artista mostrava os seios enquanto vociferava o refrão em uma imagem tão emblemática quanto polêmica. Desta vez, “Brasil” pode ser ouvida como um descarrego da plateia, que forma um coro seguido dos gritos de “Fora, Bolsonaro!”. “Eu acho esse governo uma coisa horrorosa, que faz de tudo para sabotar a arte, o povo, então só me resta levar essa indignação ao palco, que sempre foi o meu palanque”, justifica. “Lutamos tanto por um país melhor, mais democrático, que nunca pensei que, depois de tantas conquistas, veria essa desigualdade e retrocesso.”
O espetáculo será gravado no meio do ano, provavelmente em Belo Horizonte, para gerar um álbum ao vivo e uma versão audiovisual. Desta forma, as energias da intérprete ficarão concentradas na turnê, pelo menos, até dezembro, quando deve cumprir uma agenda pela Europa. “Não tenho a menor pressa de fazer um álbum de estúdio e vou pensar nisso só no ano que vem.”
Será também em 2023 que Gal, depois de virar livro, entrará em cartaz nas telas dos cinemas. Protagonizado por Sophie Charlotte, o filme Meu Nome é Gal, dirigido por Dandara Ferreira e Lô Politi, enfoca sua fase inicial, entre a saída da Bahia, a explosão do tropicalismo e o exílio de Caetano e Gilberto Gil em Londres. A artista garante que não leu nada além de um esboço do roteiro e achou que, se visitasse o set, inibiria a equipe. “Confio plenamente nas diretoras”, diz.
O contato com Sophie, porém, tornou-se estreito e carinhoso. As duas se encontraram mais de uma vez no apartamento da cantora, em São Paulo, saíram para jantar e, com o início das filmagens, trocam mensagens pelo WhatsApp. “Nós ouvimos juntas algumas gravações, falei das minhas intenções, sobre o que quis revelar com aquelas músicas e o que senti em cada momento”, afirma. “Gosto muito da Sophie, mas a minha curiosidade é ver se ela conseguiu captar minha essência, se me sentirei projetada neste filme.” A nossa também!