Netinho fala sobre fé e superação
Foto: TV Globo/Divulgação
Como você reagiria se acordasse em um hospital entubado, sem poder se mover, sem lembrar do que aconteceu? E se nos quatro meses seguintes passasse por exames exaustivos, três cirurgias no cérebro, uma abdominal, fosse obrigado a ficar duas semanas amarrado na cama, dois meses sem comer nem beber, tivesse que reaprender a enxergar, falar, sentar, andar e escrever? Situações que levariam qualquer ser humano à revolta, ao pânico e ao desespero foram encaradas de abril a agosto de 2013 com total entrega pelo cantor Netinho, de 47 anos. “Não havia o que fazer a não ser aceitar. Resolvi enfrentar”, conta o artista em entrevista exclusiva à TITITI.
E foi durante esse pesadelo que o ídolo do axé descobriu que todos os seus problemas hemorragia durante uma biópsia realizada no fígado, infecção generalizada, três AVCs, trombose no braço e na perna esquerdos foram consequência do uso de anabolizantes. Quem usa esse tipo de produto (para aumento e definição de músculos) nem sempre tem a preocupação de se informar sobre eventuais efeitos colaterais. “Enquanto anabolizantes forem tratados como tabu, continuarão a ser usados indiscriminadamente”, acredita o cantor.
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O fato é que Netinho lutou bravamente por sua vida. E hoje é símbolo de superação. No 5 de abril, o músico subirá ao palco do Citibank Hall, no Rio, para o show que marcará a retomada de sua carreira e no qual lançará o CD Beats, Baladas & Balanços Manual para Baladas.
Hoje o dono de sucessos inesquecíveis como Mila é um homem totalmente transformado. Nesta nossa conversa profunda, que aconteceu em meio à natureza exuberante do Jardim Botânico, no Rio, ele revela que a doença o fez descobrir uma força poderosa à qual credita sua cura, que nem os médicos conseguiram explicar: a fé! Nele mesmo, em Deus e nas inúmeras pessoas que torceram e oraram por ele.
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Como está o novo álbum?
Netinho Gravei esse CD em 2013, um pouquinho antes de ficar doente em abril. Sempre viajo depois do Carnaval, são minhas férias anuais. No ano passado, não quis viajar e entrei logo em estúdio, deixando o CD pronto. Não teve motivo para isso, mas ainda bem que fiz isso. Tem influência do Rio, pois moro na cidade desde agosto de 2012.
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Por que se mudou da Bahia?
Já me sentia parte carioca. Tinha morado no Rio antes, durante dez anos. Vivia na ponte aérea. Também não reconheço mais o Carnaval de Salvador. Houve uma degeneração grande da música da Bahia, que passou a ter letras de duplo sentido. Sempre mantive minha música com qualidade, letras bacanas e positividade para as pessoas. Desde que comecei a cantar, minha meta era disseminar a alegria. Quando falo nos shows “tira o pé do chão!”, o sentido maior é fazer as pessoas elevarem-se. É o desligamento que a alegria provoca! E isso é fundamental! Às vezes, num momento daquele você tem um insight para sua vida que antes, com a pressão dos problemas, não estava conseguindo perceber. Outro fato que me fez optar pelo Rio é que sempre fui um artista que fez muita TV. Morando em Salvador, ficava difícil. Às vezes não achava voo. Hoje tenho duas bandas, uma em Salvador e outra no Rio.
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Você ainda vai muito a Salvador?
Ah, fico lá e cá, porque minha filha, Bruna, de 15 anos, está lá. Ela adora o Rio, vem nas férias, nos fins de semana, mas mora com a mãe. Sou divorciado dela (Mariana Trindade, jornalista) e temos uma relação ótima. Quando a Bruna fizer 18 anos, decidirá se quer continuar na Bahia ou vir ficar no Rio comigo.
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Sua música é influenciada pelas experiências cariocas?
Sem dúvida. Ao chegar aqui fui a bailes funk, ensaios de escolas de samba, fui a uma festa incrível no Morro do Vidigal! O novo disco tem elementos de funk e samba, misturado com tamborim, substituindo o repique, que é típico do Carnaval de Salvador.
Netinho levantando a galera
Foto: TV Globo/Divulgação
Então você está retomando a carreira com tudo?
Gostaria de fazer dois shows por dia no Carnaval, mas meu médico, Dr. Kalil (Roberto Kalil Filho, diretor do Centro de Cardiologia do Hospital Sírio- Libanês, de SP), recomendou recomeçar com calma, pois estou me recuperando. Tive alta, mas ainda sinto tontura e desequilíbrio.
Isso porque ficou muito tempo deitado?
Sim. Durante a internação, quando sentei pela primeira vez, o quarto rodava. Foi uma labuta conseguir sentar, andar. Por ficarem muito tempo paradas, as pernas perderam massa muscular.
Sentou pela primeira vez depois de quanto tempo?
Nossa, dois meses! A sensação inicial é terrível, tudo à sua volta roda. A vontade de deitar é grande. Mas nessa minha fase atual de recuperação, quanto menos eu sentar e deitar, melhor, porque o cérebro vai entendendo que vou viver é em pé. É maravilhoso ir percebendo o cérebro lhe devolvendo os movimentos aos poucos. Cheguei a perder a escrita, não sabia mais como escrever, como era minha letra. Também não lembrava da doença. Meu médico me explicou que, para proteger o organismo, o cérebro apaga a fase da doença, evitando que você fique se martirizando. E vai devolvendo aos poucos.
Teve medo de não recuperar a memória e todas essas outras capacidades?
Tive. Achei que não conseguiria mais escrever. Mas isso voltou de uma hora pra outra. Um dia, meu contador chegou com um documento para eu assinar. Peguei a caneta e consegui. E voltou tudo. Minha assinatura, minha letra…
Que outra dificuldade teve?
Após um dos AVCs, quando operei a cabeça, fiquei com visão dupla, enxergava tudo dobrado. Via dois degraus, duas cadeiras… Com o tempo, as imagens foram se juntando, até que voltei a enxergar normalmente. Mas estar numa cama de hospital, impotente, traz um aprendizado para a gente.
Netinho no hospital
Foto: Reprodução/Instagram
Que tipo de aprendizado?
Primeiro, foi em nível de fé e crença. Sempre fui um cara desconfiado, questionava o Deus católico. No hospital, duas vezes fui desenganado e os médicos chamaram minha família para se despedir. Mas me recuperei pouco a pouco, dia após dia. Dr. Kalil me disse: Não tenho como lhe explicar como eu lhe recuperei.
Se nem os médicos sabem, atribuiu sua cura a quê?
Devo minha cura a Deus e às orações das pessoas. Recebi muita corrente de fé, dentro e fora do Brasil. Não imaginava que era tão querido. Devo minha recuperação a essas pessoas, à equipe médica, aos enfermeiros, aos faxineiros do hospital. Todos oraram por mim. Minha cura é uma vitória deles e da medicina. O meu foi um caso novo, isolado. Tive infecção e não tinha febre.
O que você teve, afinal?
Os três AVCs, segundo Dr. Kalil, foram consequência de uma predisposição genética, e poderiam até não ter acontecido. Mas o médico acha que havia em alguns órgãos do meu corpo resquícios de anabolizante que tomei nos verões de 2009 e 2010 e que provocaram tudo o que tive.
Tomou por conta própria?
Em dezembro de 2008, fui a São Paulo procurar um endocrinologista, o melhor da cidade na época, para fazer reposição hormonal. Ele me deu uma receita de dois anabolizantes, que ele mesmo me vendeu. Tenho até hoje as receitas guardadas. Tem gente que duvida que um médico me receitou e vendeu anabolizantes. Então, dou um alerta para as pessoas que tomam: cada um de nós tem uma genética própria, que vem da família, dos ancestrais. Em toda academia os jovens tomam anabolizantes sem controle. Então, o assunto tem de ser discutido. Eu tomei em 2009 e 2010, por dois meses, dois verões, mas só fui sentir o problema em 2013.
Como foi?
Senti uma dor forte na perna durante um ensaio. Pela primeira vez fui internado e, durante os exames para identificar o que tinha, sofri uma hemorragia no fígado devido ao uso dos anabolizantes.
O médico não conseguiria prever que seu organismo iria ter essa reação?
Não o culpo, não culpo ninguém. Eu tomei porque quis. Sabia que era anabolizante.
Não pensou em processá-lo?
Nunca. Ele não me obrigou a usar. Assumo toda a responsabilidade. Aceitei a doença, isso me ajudou. Quando acordei no hospital, já estava sem movimento dos braços e pernas. Só mexia a cabeça. Vi que se ficasse nervoso só iria me prejudicar. Preferi aceitar. E nunca pensei em morrer. Por incrível que pareça, o ambiente do hospital sempre foi tranquilo. Eu não podia falar também. Tentava e só saía ar. Era chato, mas o que me restava era viver aquilo com intensidade. Mas eu disse: vou viver isso e foi o que fiz.
De onde tirou essa força?
Não sei. Aconteceu. Minha família é toda de médiuns, irmãs, tias… Uma vez disseram que recebi um espírito também. Mas não me lembro. Nunca quis desenvolver porque minha mãe, Ivanise de Souza Andrade, é muito católica. Ela às vezes vê e sonha com coisas que acabam acontecendo. Já tentamos levá-la num centro espírita, mas ela tem medo. Reza o dia inteiro. É uma mulher muito forte. Não quis ir ao hospital e dizia para ninguém se preocupar que eu iria sair de lá. Quando me vi no hospital, eu já envolto no espírito de minha família, decidi que, já que era para passar por aquilo, eu passaria. E os médicos, enfermeiros, técnicos me ajudaram. Todos alegres, para cima. Tive a sorte e a possibilidade de ficar num hospital que é um dos melhores do mundo, o Sírio-Libanês. Se eu dependesse do sistema público, teria morrido. Ou mesmo do plano de saúde… No hospital, eu vivia gargalhando. Só quando acordava e estava sozinho no quarto me dava vontade de dormir de novo para não lembrar que estava ali. Mas tudo passou.
Teve algum momento em que pensou em desistir?
Sim, quando fiz um exame muito complexo chamado PET (Tomografia por Emissão de Pósitrons), em que você fica 44 minutos dentro de uma máquina parecida com a da ressonância magnética, mas que fecha muito próximo ao rosto. Eu não quis fazer de jeito nenhum. Naquele dia pensei em me entregar, estava cansado de tudo. Mas meus médicos me enrolaram dizendo que iam me dar um remédio para dormir. Acabei não dormindo e fiz o exame. Quando voltei para o quarto, comecei a ouvir uma voz em minha cabeça: “Você está pensando que isso vai durar a vida inteira, não vai. Tenha calma, tenha paciência”. Quando ficava só com meus pensamentos, vinha essa voz para me dizer essa mesma coisa. Acredito que isso me deu forças para ir até o final.
Ao todo foram quatro meses de hospital, é isso?
Sim… Eu tinha duas sondas no nariz e certa noite arranquei uma delas durante o sono, sem notar. No dia seguinte, recolocaram a sonda, sem anestesia, do nariz até o estômago, e me amarraram. Foi horrível, fiquei dias amarrado. Eu já falava e pedia para me desamarrar. Minha filha foi me visitar, eu pedi, mas os médicos não deixaram.
Quanto tempo ficou amarrado?
Duas semanas. Foi terrível. Quando cheguei ao Sírio-Libanês estava com infecção generalizada, que peguei no hospital em Salvador. Cheguei com bursite nos braços e nas pernas. Dr. Kalil disse que eu teria de ficar meses só me alimentando por sonda, sem comer nem beber água. Para aplacar a sede, molhavam minha boca com uma gaze com água.
E você sentia fome?
Tinha fome e sede eternos porque não sentia o alimento. Foram dois meses assim. Cheguei com 82 kg e tive que chegar a 50 kg para desinchar a perna e o braço. Fiquei sem carne nenhuma, só pele e osso. Meu médico mandou tapar os espelhos do meu quarto com fita crepe. Mas um dia eu me vi e foi um choque horrível. Ivete Sangalo foi me ver naquela época e chorou o tempo inteiro. Até que me liberaram apenas picolé de limão. Quando chegava eu ficava louco, pegava, não conseguia segurar direito, caia, me davam de novo. Depois de semanas passei a poder comer gelatina de limão. Depois foi pudim, salada de fruta, até que me anunciaram que poderia comer comida pastosa. Tudo batido no liquidificador, até carne. Fui melhorando, passei a comer normal. Quando tive alta e fui para a Bahia, comi acarajé, caruru e vatapá (risos).
E a sensação de voltar a andar?
Na primeira vez, você não consegue. Me tiravam da cama carregado e me levavam na cadeira de rodas até um corredor. Dois médicos me pegavam pelo ombro, me levantavam e me arrastavam. Andar era isso, duas vezes por dia, de manhã e de noite, até minha perna conseguir firmar. Quando isso aconteceu, os médicos ainda me apoiavam para eu não cair. Semanas depois, ficou um só até que, ao conseguir andar sozinho, tive o terceiro AVC. Comecei tudo de novo até ter alta. Ainda não estava andando direito e tive alta. Voltei a andar mesmo em casa. Semana passada, estive no hospital e os médicos me mostraram as fotos do período inteiro em que fiquei no hospital.
Por que quis ver essas fotos?
São imagens da vitória. Claudinha Leitte, Padre Marcelo e Pedro Leonardo também foram me visitar. Pedro, aliás, havia se internado no mesmo quarto que eu quando se acidentou (em abril de 2012). A minha sorte é que os AVCs que tive aconteceram dentro do hospital e pude ser atendido rapidamente. Não tem explicação para eles. Eu não comia sal há anos, porque a família de minha ex-esposa era hipertensa, nunca fumei, bebo só socialmente. Também não tive sequelas.
Como foi o reencontro com sua mãe?
Foi a primeira coisa que fiz ao sair do hospital. Ela ficou dois meses na minha casa em Salvador comigo, me botava para dormir, me acordava. Uma delícia (risos).
Você vai escrever um livro, não é?
Sim. O título será uma tatuagem que fiz há anos: Nada Como Viver.
O que espera para o futuro?
Continuar cantando sempre. Hoje lembro que nunca quis morrer enquanto estava no hospital, embora tenha sido desenganado duas vezes… De tanto pensar em tudo o que vi e vivi, cheguei a uma conclusão: existe um propósito para eu estar vivo e quero descobrir qual é! Estou escrevendo o livro para quem quiser tomar conhecimento do que passei e vou descobrir qual deverá ser minha função além da música. Estou aguardando. Eu vou descobrir!