Semente: Samela Sateré Mawé é a capa de CLAUDIA em dezembro
Ativista, comunicadora, apresentadora, (quase) bióloga formada, Samela é inspiração para podermos pensar um futuro mais próspero e digno para todos
Se você vive no Brasil — não, melhor: se você vive na Terra, por certo, deve ter visto o rosto de Samela Sateré Mawé pipocar nas redes sociais ou nos jornais, principalmente durante a pandemia de Covid-19. Isso porque a jovem de 26 anos é um dos nomes mais promissores e engajados quando se trata de efetivas ações pela preservação ambiental e luta pelos direitos dos povos indígenas.
No último ano da sua graduação em biologia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), ela é ativista no Fridays For Future Brasil, braço do movimento fundado por Greta Thumberg; apresentadora do Canal Reload, no YouTube; comunicadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade; e coautora do projeto de lei Amazônia de Pé.
Antes de se tornar quem se é, porém, uma história a trouxe até aqui. Filha e neta de lideranças femininas importantes, Samela cresceu rodeada de mulheres ativistas, membras da Associação Sateré Mawé, fundada por sua avó em 1992, quatro anos antes de seu nascimento. “Minha memória de infância se remonta com papel e caneta azul embaixo da cadeira de minha mãe durante as reuniões. Ela me deixava ali desenhando, enquanto aconteciam as discussões em grupo”, conta sobre a sua presença, que também incluía a venda de artesanato na porta de outros encontros, daí em outra fase, já um pouco mais velha. “Ali, tinha o meu lugar de escuta.”
Essa ancestralidade feminina foi essencial para moldar o seu pensamento frente às questões que nos atravessam enquanto sociedade. Um cenário que só foi possível por um infeliz acontecimento. Nos anos 1970, após o falecimento de seu bisavô, a matriarca da família passou a ter dificuldades para cuidar das sete filhas. Todas, então, foram transferidas para Manaus pelo SPI (Serviço de Proteção aos Índios) — atual Funai (Fundação Nacional do Índio) —, mas sem qualquer auxílio ou respaldo do governo. Isso fez com que elas sofressem violências, tais quais o racismo, e um apagamento histórico e cultural. Por isso a necessidade delas se organizarem nessa associação, agregando outras mulheres.
“Elas trazem para o movimento nacional a analogia da mulher-território, da mãe-terra, da Amazônia, que, no fundo, são sinônimos do feminino. Nós nos sentimos parte do território enquanto mulheres-terra, água… Cada geração dos nossos povos forma o que seria uma árvore: as raízes são os anciões; os troncos são as lideranças (os caciques, por exemplo); e os frutos e sementes são a juventude”, explica ela, que faz parte dessa etapa capaz de espalhar a mensagem ancestral para o resto do Brasil e, agora, do mundo.
Estamos em um momento de transição. Nada está ganho, mas temos a chance de dialogar e cobrar efetivamente por mudanças
Presença marcada tanto na COP26 quanto na COP27 (siglas para Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), esta última em novembro, no Egito, Samela foi capaz de transformar em fala um lugar que antes era apenas de escuta. “É essencial que a gente esteja presente nesses espaços que debatem a justiça climática e ambiental, e quais são os efeitos dessas mudanças na vida de jovens e de populações periféricas e quilombolas”, comenta. “Antes, isso só era feito por poucos líderes mundiais — mas não queremos mais um intercessor. Aqui, defendemos o território com a vida. Nossa presença garante o lugar de fala de cada um. Sou muito grata ao espaço e às perspectivas que ali foram apresentadas.”
E se no encontro de 2021 o tom era de denúncia às atrocidades que estavam sendo feitas na Amazônia, incluindo o aumento do desmatamento e dos assassinatos de indígenas — “o que a gente viveu foi desumano” —, a COP27 trouxe para Samela uma sensação de esperança. “É um lugar de transição. Nada está ganho, mas, pelo menos, agora temos a chance de dialogar e de cobrar efetivamente por mudanças. O Brasil vai voltar para a pauta climática, e com seriedade.”
Pelo risco iminente, que já tratamos em reportagens na CLAUDIA, a principal questão a ser resolvida é a demarcação de terras indígenas. “Nunca tivemos as nossas vidas tão ameaçadas quanto nesses últimos quatro anos. Foram muitas perdas e violações de direitos e, ainda assim, precisávamos nos levantar e responder a tudo isso”, defende, citando Sônia Guajajara e sua ideia de que “a preservação da mãe-terra é a maior de todas as lutas”. Aliás, são presenças como a dela, eleita Deputada Federal pelo Estado de São Paulo, que farão a diferença, já que o assunto também tramita em termos legais. “É importantíssimo termos representações femininas nesses espaços de poder e tomadas de decisões. As coisas só vão acontecer de fato se estivermos dentro do Congresso. É sobre descolonizar o sistema.”
Tal ocupação acontece, inclusive, nas redes sociais, onde Samela tem uma atuação bem organizada. No seu perfil do Instagram, @sam_sateremawe, são quase 90 mil seguidores que acompanham seus conteúdos elucidativos e descomplicados sobre as notícias acerca do meio ambiente e da política ambiental, além de mulheres, juventude e bioeconomia. “Uso as redes para mostrar que as pautas indígena e ambiental são coletivas. Não é só trabalho dos amazônidas defender o bioma, seja ele o Cerrado, os Pampas, a Caatinga, o Pantanal ou a Floresta Amazônica.” De fato: enquanto não houver mobilizações sociais, fica difícil fazer acontecer transformações. “As pessoas não-indígenas não se entendem pertencentes ao corpo-território que é o país. Isso decorre da colonização, da falta de entendimento de onde se veio, de um ‘não-lugar’. Por conta disso, toda vez que falo, tento fazer com que entendam a relevância de trazer para dentro dos nossos corpos a ideia de que somos terra. A partir do momento que nos entendemos terra, lutamos pelo planeta.”
A naturalidade e a desenvoltura foram conquistadas ao longo dos anos. Não à toa, se tornou referência para outros jovens indígenas que, assim como ela, clamam por melhorias. “Esses dias, recebi uma mensagem de uma pessoa dizendo que me citou na sua redação do Enem [o tema de 2022 era ‘Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil’]”, diz, agradecida.
O amor também veio de espaços militantes, em 2021, quando ela conheceu Tukumã Pataxó, durante uma mobilização em Brasília. “Somos de povos e biomas diferentes, mas temos uma atuação comum”, diz sobre o companheiro, ativo nas redes, onde compartilha, entre outras coisas, curiosidades sobre culinária indígena. “Nos complementamos em várias frentes, e assim levamos o nosso relacionamento.”
Tanta responsabilidade com tão pouca ida – de traz também a necessidade de um cuidado maior consigo mesma. “Em 2020, por conta da pandemia, tive um ápice de atuação: topava tudo, e esquecia de mim. De um tempo para cá, filtro mais o que chega, para conseguir administrar o meu trabalho e me priorizar.” A atividade que a faz cuidar da saúde mental e lhe traz enorme prazer é um banho no rio. Afinal, é com a água que a semente floresce.
FOTOS: Jonathan Wolpert
BELEZA E CONCEPÇÃO VISUAL: Alma Negrot
STYLING: Aneco Oblangata
SET DESIGN: Ricardo Ishihama
DIREÇÃO DE ARTE: Kareen Sayuri
CENOGRAFIA: Roberta Uiop