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“Meu dever é dar subjetividade a papéis estereotipados”, diz Mariana Nunes

A atriz, que esteve na novela "Amor de Mãe", fala sobre interpretar Penha em "Um Dia Qualquer", série com estreia marcada para a próxima semana

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
12 ago 2020, 10h00
 (Wendy Andrade/Divulgação)
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No dia em que Mariana Nunes me atendeu por videochamada, nós duas já tínhamos perdido a noção do tempo que estávamos em isolamento. A última vez que eu tinha “visto” Mariana foi nos derradeiros capítulos de Amor de Mãe, novela das 9 da TV Globo cujas gravações foram interrompidas em março pela pandemia. Na tela à minha frente, ela em nada se parecia com Rita, sua personagem na trama. Mariana estava falante e tentava conter sua cachorrinha, Pecola, uma que queria aparecer o tempo todo na câmera.

Nossa conversa era por causa de Penha, a mãe solo que busca justiça para seu filho desaparecido na nova série Um Dia Qualquer, com estreia marcada para dia 17 no Canal Space. A trama toda se passa em um único dia e os flashes do passado ajudam a entender quem é Penha. A mulher religiosa já foi casada com um traficante e viu nos filhos a possibilidade de redenção, de renovação. O sonho é interrompido pela milícia que toma conta da comunidade, consequência de um Estado omisso. “Tem muitas situações de racismo implícito, acho que as pessoas vão se identificar”, comenta. É uma ficção absolutamente inspirada em fatos reais, assim como muitos outros papéis de Mariana.

A brasiliense de 39 anos interpretou Gislaine, a mãe que se prostituía em casa para sustentar o filho pequeno na série Segunda Chamada, também da TV Globo. Frequentava aulas para jovens e adultos porque desejava em ser médica, mas abandonou a escola após sofrer preconceito. Em Carcereiros, no mesmo canal, era Janaina, professora casada com o protagonista Rodrigo Lombardi, cuja profissão causava tensão constante na vida do casal. Apaixonada por teatro, também rodou o país se apresentando nos palcos.

Mais recentemente, tinha acumulado trabalhos no cinema. Aguarda o fim do isolamento para estrear M8 – Quando a Morte Socorre a Vida, longa aplaudido no Festival do Rio deste ano. Em janeiro, lançou no Festival Internacional de Cinema de Rotterdam A Morte Habita à Noite. Mas tudo nessa seara também está em suspenso até a pandemia passar e os cinemas reabrirem. “Eu tinha trabalhos engatilhados, a vida toda bonitinha. Fiquei assustada à princípio, mas depois entendi que não depende da gente. Tem que esperar. Talvez a gente só retome as atividades no ano que vem”, disse durante a nossa conversa, que passou pela Penha e foi muito além. O papo com Mariana pode continuar no perfil de Instagram dela, @marianasousanunes, onde tem feito lives, apresentações artísticas com dança e proposto boas trocas sobre temas atuais diversos.

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Penha reflete, com exceção de alguns detalhes essenciais para a dramaturgia, a realidade de muitas mulheres periféricas. A discussão sobre representatividade em telas tem gerado embates. De um lado, aprovam o aumento de personagens com esse perfil. De outro, há uma crítica pelo abuso de estereótipos. Como você enxerga a situação? 

Acho que ainda há muitas representações estereotipadas, até mesmo a Penha, que é uma mulher evangélica que foi casada com um homem do tráfico. Mas aí entra o meu trabalho que é dar subjetividade a ela e a história vai além desse perfil. A Penha é, antes de tudo, uma mulher que quer encontrar seu filho, saber o que houve com ele. Esse drama, a relação de mãe e filho, a busca por justiça para o filho independe de classe social ou da profissão. Eu acredito que temos muitos personagens periféricos, favelados e negros estereotipados, assim como da madame rica, da mocinha. O importante é não deixar isso ser oco, ficar só no estereótipo. Tem muitas pessoas, como diretores e atores, preocupados em dar mais camadas a esses perfis. A construção da dramaturgia é essencial para isso, você vai acrescentando detalhes, informações ao papel para além do que está no roteiro.

Como foi a preparação para garantir que a Penha fosse complexa? 

O grande desafio era a passagem do tempo. A Penha foi mãe muito nova e ela aparece em dois momentos. Eu não tenho uma diferença de idade tão grande para os atores que fazem meus filhos adultos, por isso achava que essa diferença de dez anos da história tinha que ser bem marcada. Foi um trabalho maravilhoso de caracterização. Eu sempre me emociono na troca de figurino. A Penha do passado tem um pingente com um P, usa saltão, tem cabelão. A Penha do presente murcha, mingua. Eu adoro essa ideia de tudo se passar num dia só porque a roupa vira quase um uniforme. Colocamos extensões no meu cabelo e mantive mesmo para a fase de Penha mais recatada, com o cabelo preso. Eu achei que ela não se desfaria do cabelão.

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(Rogério Von Kruger/Divulgação)

E como foi balancear essas duas Penhas tão distintas para que as características não se misturassem?

A preparação foi com o Sérgio Penna. Tinha feito com ele meu primeiro filme, O Homem Mau Dorme Bem (2010). Ele tem um jeito de transportar você para o universo da personagem e as vivências duram manhãs ou tardes inteiras. Eu criei alguns gatilhos para fazer transições rapidamente entre elas. Meu ápice foi numa cena decisiva, quando ela decide se vingar e volta para a boca. É um plano-sequência enquanto ela caminha pelas vielas de um bairro no Rio. Eu ia andando e o operador ia na minha frente, caminhando de costas. Eu estava sentindo uma emoção fortíssima, com sangue nos olhos. Fizemos muitas vezes a cena. Aí, no auge, paramos para jantar (risos). Depois, filmei o restante da cena, corri para a base, me troquei, fiz babyliss, coloquei unhas postiças e voltei para a locação para filmar a cena que acontecia ali dez anos antes. Tem uma mágica que acontece na filmagem, aquilo às vezes vem e toma você.

Além desse lançamento, você tinha muitos outros projetos engatilhados para esses meses que ficamos em isolamento. Como vê o impacto dessa fase na cultura nacional e, especialmente, nos artistas? 

Eu estava bem linda em Amsterdã, com um cabelão loiro, tomando café na rua quando me chamaram para interpretar a Rita, em Amor de Mãe. Tinha viajado para lançar A Morte Habita à Noite no Festival Internacional de Rotterdam. Eu era fã da novela, fiquei super feliz. E já tinha outros dois trabalhos engatilhados. Do nada, acabou tudo. Com o tempo, vi que não depende da gente. É uma coisa maior. A gente tem que esperar. É lamentável a situação que as pessoas do audiovisual estão passando. Estou me sentindo como estudante de artes cênicas, quando você tem que colocar a criatividade para funcionar sem muitos recursos financeiros. Estou fazendo os vídeos para o Instagram, vendo filmes. Não sei o que vai acontecer, mas talvez a vida só volte totalmente no ano que vem.

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Você costuma interpretar personagens muito intensas, com vidas atribuladas. Como se sente ao explorar essas forças femininas potentes? 

É muito louco, porque só faço essa análise muito tempo depois. Na hora eu não penso no todo, penso no drama daquela personagem. Eu sou uma mulher negra, então é normal que tenha personagens de mulheres negras, e acaba entrando bastante a questão racial. Depois, eu entendo em que perfil as pessoas acabam me encaixando. Todo ator passa por isso de ser ligado a um tipo de personagem, tem a ver com a energia também. Mas quando assisti Um Dia Qualquer, senti um pouco esse peso. Queria uma coisa mais simples, de menos intensidade. Encontrei na produtora mesmo, no dia que fui assistir a série pronta, um diretor que estava na pré-produção de uma comédia e pedi uma ponta mais leve (risos). A verdade é que ator gosta de complexidade, de personagem com conflito para poder trabalhar bastante nisso.

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(Rogério Von Kruger/Divulgação)

Você postou algumas performances digitais no Instagram nesse período da quarentena. Como bolou essa proposta diferente? 

Acho que parece diferente porque as pessoas não estão acostumadas a ver esses processos, mas eu fiz balé clássico por anos, me formei em teatro. E tem algumas matérias na faculdade, como performance, que você tem que se virar para apresentar. Ou as disciplinas de figurino, máscaras. Eu não tinha essas habilidades, mas precisei aprender para passar por elas todas. E sempre tive um trabalho intenso de corpo, mas acabo exercitando pouco esses aprendizados no dia a dia do mercado de trabalho. Não tem espaço para trabalhos muito lúdicos ou subjetivos. Eu queria fazer algo autoral. Li um texto da bell hooks que adoro, Vivendo de Amor. Comecei a dançar, interpretar, fazer umas pirações. É uma coisa sem prazo, sem compromisso com engajamento. Também entrevistei profissionais para falar sobre saúde mental, que é um tema tabu, mas é tão importante de ser discutido.

Vi muitas entrevistas incômodas em que as pessoas perguntam sobre você querer ser mãe ou do seu cabelo curto, raspado. Como você reage quando recebe essas perguntas? 

Eu mudo muito meu cabelo pelos personagens. Já tive black power, aí cortei. Fui para a África do Sul com os fios longos, meio loiros. Eu fiquei muito mexida com essa viagem. A ideia era chegar lá e fazer tranças, mas não rolou. Já coloquei aplique para filmes. A gente vive numa sociedade machista mesmo. Eu noto a diferença dos olhares quando estou com tranças ou cabelão. Sobre ser mãe, acho que tem algumas perguntas que fazemos automaticamente. Se a mulher aparece com uma criança, falamos ‘Só tem esse?’. Quando é casada, perguntamos se vai ter filho. Eu estou aprendendo que isso é invasivo, que não precisa ser pauta. Se me perguntassem onde eu me via antes, eu achava que seria casada, teria filhos, cachorro. Só tenho a cachorra e está tudo lindo. Não é uma preocupação. Já fiquei tensa com a história do relógio biológico, mas entendi que ser mãe não é o que torna você mulher. A gente aprende que o feminino tem a ver com o natural, o biológico, e depois vamos descobrindo nossas necessidades reais e vemos o que é cobrança externa. Essas ‘exigências’ vêm de fora pra dentro.

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