MASP inaugura mostra crítica sobre Paul Gauguin
"Paul Gauguin: o outro e eu" revisita a carreira do pintor francês problematizando a exotização e a objetificação de corpos em suas telas
Não faz muito tempo que o movimento de revisitar criticamente o passado tomou conta de museus e galerias. Contudo, para além da tentativa falha que acomete as pessoas nas redes sociais, a ideia pode ser conseguir criar um diálogo a respeito de algo que já foi (e teve seu contexto). Tudo isso gira em torno da Paul Gauguin: o outro e eu, em cartaz no MASP até 6 de agosto.
São 40 obras, entre pinturas e gravuras, expostas para discutir a ideia de alteridade e exotização do “outro” a partir do que o pós impressionista entendia disso. “É ingênuo pensar que museus por todo o mundo apenas pararão de exibir sua obra, mas é fundamental pensarmos em como iremos contextualizá-la, como apresentá-la ao público e problematizar à luz da urgência de questionar uma história da arte patriarcal”, comenta Laura Cosendey. A seguir, a curadora assistente elabora sobre as polêmicas e desafios de organizar a exposição:
Essa é uma importante mostra para o MASP em 2023. Quais foram os principais objetivos e desafios da curadoria da exposição?
Paul Gauguin: o outro e eu é a primeira exposição no Brasil a abordar de maneira crítica a vida e a obra do artista francês. A arte, o legado de Paul Gauguin (1848-1903) é complexo e polêmico e vem passando nas últimas décadas por uma série de questionamentos e revisões. Esse movimento é parte de um processo histórico mais amplo (e fundamental) que vem contestando a hegemonia da arte europeia, seus dogmas e artistas – majoritariamente protagonizada e escrita por homens brancos, europeus, ricos e influentes.
Essa, no entanto, é uma reflexão necessária para diversos museus, especialmente aqueles que possuem uma coleção representativa dessa arte europeia canônica – que também é o caso do MASP, considerando parte significativa do acervo formado no contexto da criação do museu ainda nos anos 1940-50. Visto que esse legado também é parte desse momento fundacional do museu, é fundamental retrabalhar essa história da arte, atualizá-la criticamente, e apresentar ao público outras narrativas possíveis. Nosso objetivo aqui é problematizar a obra de Gauguin, à luz da urgência de questionar uma história da arte patriarcal.
O título da exposição já marca um ideal de “eu” e um ideal de “outro” – a partir da visão eurocêntrica-branca-masculina. Como trabalhar em cima dessa temática na linha tênue que ela própria sugere?
Esta exposição no MASP pretende chamar a atenção para o fato de que, para a arte e a história da arte que não fizeram e não fazem parte da tradição dominante, e a depender de quem enuncia a frase, Gauguin, e o europeu, podem ser entendidos como o “outro”. Para o artista francês, essa busca pelo que poderia transcender a si mesmo, seu universo já conhecido e onde ele se sentia confortável (no caso, o meio de arte parisiense), acompanhava um desejo fantasioso pelos “trópicos”.
Movido por projeções de exotismo, de paraísos imaculados pela “civilização”, Gauguin decidiu abandonar Paris, onde vivia, para se estabelecer no Taiti (Polinésia Francesa). Lá, em sua eterna busca por uma arte mais pura e autêntica, ele produziu algumas de suas pinturas mais célebres, as representações da paisagem, seus habitantes, que apresentamos na exposição. Mas a imagem que o artista constrói dessa alteridade é sempre através de seu “filtro”, ou até mesmo descolando-se do que havia diante dele, imagens que nos falam mais sobre seu desejo do que sobre como era o Taiti na última década do século 19.
Conforme lá permanece (e depois retorna), suas obras aludem a um tempo passado, mitológico, nostálgico, que ele alegava ter acessado a partir de seu contato com taitianos e taitianas. Também há esse Gauguin narrador: suas imagens e seus escritos nos dizem muito mais sobre a história que ele gostaria de contar do que o que de fato encontrou. Esse movimento duplo é tão necessário: perceber o modo como o próprio artista performou a si mesmo, especialmente em seus autorretratos, criando uma imagem de um artista que não se enquadrava nas convenções da arte parisiense.
Nos últimos anos, a discussão em torno de alguns movimentos artísticos e artistas específicos levantaram questionamentos sobre apropriação cultural e racismo nas artes. O que essa mostra tem a acrescentar nessa ressignificação de um passado que já foi aclamado por outros motivos?
É fundamental revisitar essas narrativas, o modo como Gauguin foi visto pela história da arte é emblemática: o fato de que ele tenha sido, por tanto tempo, considerado um “herói fundador” de um modernismo primitivista, na verdade, nos fala muito sobre como a narrativa hegemônica é extremamente patriarcal, e não deixa de ser um reflexo e uma forma de violência colonial.
Na pintura, a cor é um elemento central do modo como a imagem de povos racializados foi construída e reproduzida, e também é uma ferramenta ideológica. Para além de uma visão idealizada e estereotipada de povos do Pacífico, Gauguin também se apropriou de referências de outros “outros” (arte egípcia, relevos de templos na Indonésia) criando uma espécie de amálgama dessa alteridade.
É, de certa forma, uma herança do orientalismo na pintura, esse interesse e desejo pelo “exótico”, – entendendo esse termo como tudo o que é diferente/externo a essa cultura europeia – mas o modo como abordou essa cultura visual que circulava amplamente em seu tempo, buscando um vocabulário visual para dar conta da alteridade, misturando também com referências do próprio contexto de arte parisiense, foi bastante radical, e essa mesma crítica de arte parisiense não soube como lidar com isso.
Gauguin também teve uma leva grande de obras que objetificavam o corpo da mulher. Considerando o recorte dessa mostra, como foi para você trabalhar em cima dessa temática? O que mais te surpreendeu (positiva ou negativamente)?
A representação erotizada e exotizada do corpo feminino é um dos aspectos mais problemáticos da obra de Gauguin. Mas, novamente, Gauguin não estava sozinho nisso: desde os primeiros relatos de viagens de europeus às ilhas do Pacífico, ainda no século 18, o Taiti foi referenciado como uma nova Cythera (a ilha onde, segundo a mitologia grega, a deusa Afrodite nasceu), o que é exemplar para a associação do corpo da mulher polinésia com um ideal de beleza e de feminino, como se estes corpos estivessem disponíveis. E muitas outras associações nesse sentido, construídas para a erotização desses corpos racializados, naturalizando a nudez pelo meio.
De certa forma, Gauguin também estava atendendo a um desejo de seu público das imagens que trazia de sua viagem. Essa visão sobre a Polinésia foi amplamente reproduzida (e, na verdade, esse “ideal” ainda hoje está estampado nos cartões-postais da região). E o mais absurdo nisso é que esse uso publicitário e exploratório do corpo feminino ainda hoje figura na maior parte das imagens publicitárias que circulam sobre regiões do Pacífico.
Hoje em dia, por conta das redes sociais, é muito comum as pessoas “problematizarem” qualquer coisa com a ideia de cancelamento pelo cancelamento. A proposta dessa exposição vai na contramão desse movimento bastante superficial da sociedade. Enquanto curadora e pesquisadora, como você enxerga esse movimento? Como não cair nessas armadilhas vazias de sentido?
É ingênuo pensar que museus por todo o mundo apenas pararão de exibir sua obra, mas é fundamental pensarmos em como iremos contextualizá-la, como apresentá-la ao público e problematizar a própria ideia de história da arte que estavam tão acostumados a ouvir.
A pergunta é o quanto devemos (e se é que devemos) separar a autoria (tanto a figura histórica/biográfica como sua imagem pública) da obra em si. A questão é que essa crítica rasa acaba passando por cima de diversos fatores: a saída pelo “cancelamento” cai em uma série de leituras anacrônicas, Gauguin não deixa de ser parte de seu tempo, simboliza em si tantas práticas de uma sociedade e cultura europeia patriarcal, não deve ser considerado como o único “culpado”. Não é uma questão de resolver apenas, mas de compreender criticamente com essas contradições.
Gauguin era, por exemplo, neto de Flora Tristán, uma ativista feminista que tinha ideias – o que não deve ser reduzido a dizer que Gauguin era feminista, mas entender que o caldo cultural ao qual ele era exposto era bem mais complexo do que podemos imaginar. Também não significa apaziguar o papel que ele assumiu e atitudes, muitas moralmente condenáveis, naturalizar o fato de que teve relações com menores de idade. No entanto, a opção por apenas “cancelar” também é perder a oportunidade de levantar um debate crítico fundamental, que permeia tantos outros exemplos da arte e da cultura visual de forma mais ampla.