Mana Bernardes: uma imersão na esfera do desejo
Na casa-ateliê-corpo da artista transdisciplinar Mana Bernardes, a criatividade dá forma a palavras e vontades que reconectam mulheres às suas histórias
Desrelógio. Amor. Abundância. Livre. Tesão. Palavras poderosas como essas ganham vida na caligrafia inconfundível de Mana Bernardes, que abre o ano de 2024 imersa na preparação de sua obra Na Esfera do Desejo.
“A poesia desfaz quinas pesadas, pontiagudas, apertadas, limitadas. A vontade de fazer uma esfera nasceu daí”, conta Mana. Cada uma das bolas ocas brancas, com palavras grafadas em vermelho, foi inicialmente pensada como uma obra individual. Ao vê-las prontas, todas as 300, porém, sua intuição criativa apontou para uma nova direção. “Não quis separá-las, as esferas do desejo. Elas formam um grande mural.”
A magnitude da produção dessa artista transdisciplinar — e a entrega de corpo e alma que acompanha cada fase do processo — talvez sejam melhor compreendidas com a descrição da cena que precedeu as encantadoras imagens de abertura desta reportagem, na página anterior. Completamente nua, sob os cuidados da equipe feminina de CLAUDIA que chegara logo pela manhã na sua casa-ateliê, em São Paulo, Mana deitou-se por cima do lençol branco de sua cama. Pacientemente, acolheu em sua pele cada uma das centenas de peças de porcelana. Mas bastava o ar entrar preenchendo seus pulmões para a composição passar por um rearranjo.
Recomeço. Ao pisar nas bordas do colchão para posicionar um globo fujão, qualquer uma de nós encontrava nos olhos de Mana, essas duas esferas claras e cheias de brilho, o antídoto para o medo e a confiança de que chegaríamos lá. O corpo sabe como fazer arte e nenhuma valiosa esfera se rompeu. Alívio.
A confiança da artista no fluxo da vida não veio sem apuros. “Essa casa-corpo ganhou um corte. Todo trajeto que é interrompido é uma tragédia. Eu vivi uma tragédia, pois tive um trajeto interrompido no momento da passagem da infância para a adolescência.” Ela faz referência a uma grande cirurgia que retirou parte do seu intestino, em função da Doença de Crohn.
“Este ano está fazendo 30 anos da cicatriz. Operei com 12 e tenho 42.” Apontar a importância do marco está longe de limitar sua trajetória a essa passagem. “
Não me interessa me conectar através da doença, mas através da saúde. Eu escolhi a saúde. Durante muito tempo, quis separar minha obra da minha história de vida, pois acho que não sou só isso, mas agora estou aberta, e plena, para contar.”
Seu olhar é generoso sobre sua própria história: “Essa doença me faz, no presente, me investigar. A artista que eu sou hoje, devo ao fato de ter sido diagnosticada com uma doença”.
Até chegar aqui, porém, Mana enfrentou a vergonha absoluta da sua barriga — “Usei biquíni a primeira vez quando tinha 17 anos e foi um verdadeiro ritual” — e também a preocupação durante a gestação de sua filha, Rara, hoje com 3 anos. Como seria a adaptação do ventre para receber um novo ser? A sabedoria da natureza mais uma vez se fez presente. Deu tudo certo. “Agora penso em como vai ser cuidar das mudanças do tecido ao envelhecer.”
O olhar para o futuro vem de quem aprende todos os dias novas maneiras de viver neste mundo e realizar grandes sonhos. “2023 foi o ano de botar a minha voz”, lembra.
Entre as realizações do ano passado, estiveram o projeto Tantas Mulheres e a apresentação no TEDx São Paulo, ao lado da executiva Andrea Alvares. “2024 é o ano de redes e tramas, vou fazer grupos, atender pessoas, construir oficinas e realizar obras de outras dimensões.”
Além de fazer murais poéticos nas casas das pessoas — o entregue recentemente para a atriz Mariana Ximenes ocupa toda a porta, transpassando o batente —, Mana está desenhando uma nova coleção de móveis para a Tok&Stok, onde suas coleções são best sellers.
Sempre permeada pela poética, suas manifestações incluem a criação de joias a partir de materiais reciclados, além da performance. “Eu escolhi realizar performances porque acredito no estado de estar presente em cena. Ritualizar é achar uma brecha na presença e sublinhar. Olhar um passarinho por dois minutos pode ser um ritual. Reconhecer o passarinho que vive perto da sua casa, se ele está fazendo ninho ou não… Rituais não precisam ser repetivivos, mas são um portal.”
Com a filha Rara, a ritualização acontece no cotidiano, em situações corriqueiras, como a primeira ida ao dentista, por exemplo. Comigo, começou com uma toalha estendida no jardim de sua casa, para abrir espaço para uma conversa íntima sobre o que é se reconhecer mulher criativa e criadora hoje.
Com você, querida leitora de CLAUDIA, o ritual chega em forma de versos que permeiam as margens das páginas e surgem por inteiro aqui:
A vida está começando hoje/ Eu tenho todo direito de viver e isto é imenso./ Como um mar que se abre e que sou eu mulher em interlocução com o mundo./ Tesudas ou exaustas/ Somos nós mesmas que dançamos com o nosso sangue./ Um dia deslocaram minhas tripas e costuraram minha barriga/ Depois não morri nunca mais/ Só que todo dia preciso aprender como se vive nesse mundo
“Foi a minha mãe que falou: ‘Você não é designer de objetos, mas designer de relações’”, diz Mana. Diante de tanta beleza e prazer, quem resistiria à vontade de aprofundar essa relação? Bem-vinda à dança das palavras e dos desejos.