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Ícaro Silva: “Eu quero ver a cultura preta queer num lugar gracioso”

Com os pés no chão e a cabeça nas nuvens, um dos atores mais talentosos do país mostra como o afeto e os sonhos também fazem parte do processo criativo

Por Paula Jacob
11 nov 2022, 08h31
Ícaro Silva
Ícaro veste terno da coleção Exquisite, preço sob consulta, Gucci. Anéis B.Zero 1, preço sob consulta, Bulgari. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça.  (Thiago Santos/CLAUDIA)
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Extraordinário. Talvez essa seja a melhor palavra para descrever Ícaro Silva. Pisciano nascido no dia 19 de março, data que também celebra o aniversário de sua mãe, ele ganhou nossos corações como Rafa, em Malhação (2004-2007). Antes disso, porém, já tinha escrito livros infantis — seu contato com a literatura foi incentivado pelo pai — e atuado, aos 11 anos, na novela Meu Pé de Laranja Lima (1998), da Band. Hoje, aos 35, ele coleciona papéis emblemáticos na TV, no cinema e no streaming. Inclusive, está no ar como Leonardo, seu primeiro vilão, em Cara e Coragem, da Rede Globo.

Ícaro Silva
Ícaro veste terno da coleção Exquisite, preço sob consulta, Gucci. Anéis B.Zero 1, preço sob consulta, Bulgari. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)

Mas descobriu no teatro musical uma outra liberdade. De Elis, A Musical (2013-2016) até Romeu e Julieta – O Musical (2018 2019), ele usa os palcos para fazer o espectador acessar a sua criança interior. “Eu quero ver a cultura preta queer num lugar gracioso. E quando falo isso, é no sentido literal da palavra: do que é a graça divina, iluminado pela beleza espiritual”, conta. Depois do sucesso de Ícaro and The Black Stars, ele rascunha um novo projeto que inclui álbum e show, “mas não é só sobre música, é também performance, dança, beleza e estética negra”.

Ícaro Silva
Sobretudo, preço sob consulta, Dior Men; corset, Ateliê Artedosmons; e calça, R$ 638, João Pimenta. Bota, preço sob consulta, Gucci; e chapéu, acervo. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)

A capacidade heróica que essa vertente artística traz, segundo ele, é um sopro de vida. “Isso para um sonhador é lindo.” E para quem tem nome de mito grego e Carolina Maria de Jesus como uma de suas referências, nada poderia ser menos que extraordinário — veja só. “Quando li Quarto de Despejo, pensei: ‘que mulher mágica!’ Ela estava na favela, na década de 1950, e decidiu escrever um livro. Ela, para mim, era uma sonhadora nata.” Longe dos holofotes e das fofocas de internet, a conversa a seguir caminha entre passado, presente e futuro, resgatando memória, projetando ideias e reverenciando o poder do afeto. Prazer, Ícaro Silva:

Ícaro Silva
Sobretudo, preço sob consulta, Dior Men; corset, Ateliê Artedosmons. Chapéu, acervo. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)
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Aos 35 anos, olhando em retrospecto, o que foi importante na construção do Ícaro de hoje?

Uma coisa muito nítida e especial, e que eu consigo ver com a maturidade, é ter tido uma família estruturada. Porque a desestruturação é uma realidade brasileira: muitas com mães solo ou aquelas em que os pais têm uma relação difícil e se separam com os filhos ainda crianças… Mas a minha sempre foi afetivamente estável. É uma coisa que fez (e faz) diferença na minha vida. A minha mãe nos deu muito amor e carinho, ela também tinha conversas com a gente em relação à autoestima e ao nosso senso de beleza. E meu pai sempre quis que a gente fosse correto. Isso me endureceu em vários aspectos, mas também me preparou para o mundo, que é duro. E quando o seu corpo é dissidente, ou seja, se você é mulher, ou preto, ou LGBTQIA+, você vai passar por momentos em que é preciso ter ferramentas afetivas, e meus pais trouxeram isso com bastante dedicação.

Ícaro Silva
Camisa, preço sob consulta; sobretudo, R$ 24.170; calça, R$ 15.800, e sapatos, tudo Gucci. Ear cuff, R$ 580, Elisa Parpinelli. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)
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Um afeto transformador, imagino.

Eu cresci na periferia [em Diadema, São Paulo], sem recursos, mas nunca faltou afeto. E isso é muito legal porque, quando eu era criança, queria ter coisas materiais que não podia, mas eu acredito que o cuidado curou essas feridas. Hoje, adulto, entendo que o que eu mais precisava, e tive, era esse afeto o tempo todo.

Ícaro Silva
Body, R$ 125, João Pimenta para a Nuasis; corset, R$ 590, Nuasis; e calça, R$ 1.880, Misci. Anéis e colar B.Zero 1, preço sob consulta, Bulgari. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)

Isso te ajudou no trabalho?

Depois dos 30, entendi que a minha função nesse planeta é comunitária, e isso também tem a ver com a minha mãe, com a minha família, com o senso de comunidade que uma pessoa da periferia desenvolve. Tenho uma memória que amo da infância: morávamos em uma favela que foi se construindo, de barracos para casas de alvenaria. As pessoas estavam ganhando dinheiro e foram fazendo melhorias, mas, para isso, a ajuda uns dos outros se fazia necessária. Então, tinha o “bater a laje” em troca de um churrasco. Guardo essas cenas de areia, concreto, cimento, da comida sendo feita. Era senso de comunidade, e ficou latente em mim. Vejo o quanto quero refletir isso no meu trabalho, essa importância da gente ser coletivo.

Ícaro Silva
Body, R$ 125, João Pimenta para a Nuasis; corset, R$ 590, Nuasis; e calça, R$ 1.880, Misci. Anéis e colar B.Zero 1, preço sob consulta, Bulgari. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)
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Um resgate que você fez, inclusive, no teatro-musical The Black Stars. Pensando nessa missão, quais comunidades você gosta de construir, considerando a sua relação com o público?

Eu queria ter uma carreira mais low profile. Porém, aos 16, veio Malhação e, com ela, um contato com a fama bastante traumático. As realidades brasileiras e os arquétipos construídos estão presentes. Por muitas vezes, eu via refletido em mim, mesmo sendo uma pessoa famosa, esse subjugo que o racismo traz ou a naturalização da superexposição. São vários atravessamentos que fazem parte da experiência de uma pessoa preta queer no Brasil.

Fui ficando mais velho e com um pé atrás para falar. Queria ser reconhecido pelo meu trabalho e não por viralizar nas redes sociais; quero que as pessoas me vejam no teatro e na TV, e que aquilo encha os olhos delas. Contudo, nos últimos anos, percebi o quanto as coisas que eu falo geram identificação. E isso é poderoso, ainda: é uma chave transformadora, porque a gente entende que a nossa história [enquanto país] é conturbada. Estamos vivendo um momento de polarização extrema, e você vê que não existe espaço para escuta. Quando eu me percebo transformador nos meus discursos ou nos meus trabalhos, vejo que temos a chance de construir algo novo. Por isso, agora, o meu contato com o público vai no sentido de absorver e aprender.

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Ícaro Silva
Camisa, R$ 560; e saia, R$ 594, ambos João Pimenta. Brincos, R$ 3.600, Olsen K, e ear cuff, R$ 650, Elisa Parpinelli. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)

E, dentro de tudo isso, o que você faz para cuidar de si?

Comecei a fazer terapia esse ano. Eu sempre fui meio jovem místico, indo para caminhos mais holísticos e espirituais. Mas, em 2020, quando a gente precisou se trancar em casa e esperar sem saber o que iria acontecer, tivemos que olhar para dentro. Nesse tempo, desenvolvi o hábito — por favor, não dê risada — de tomar café da manhã. Foi isso que me fez perceber o quanto eu deixava de me cuidar, o quanto o meu cotidiano não estava voltado para mim, o quanto eu gostava (e ainda gosto) de bancar o super-herói (estou trabalhando na terapia). E isso é algo bastante característico do que a sociedade entende por ser homem. Estou desconstruindo muita coisa, e uma delas é essa falta de autocuidado como uma certificação de masculinidade.

Ícaro Silva
Camisa-capa, R$ 3.500; e calça, R$ 1.470, ambos Handred. Brincos, R$ 1.100, Elisa Parpinelli. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)
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Como tem sido essa desconstrução toda?

Tenho tido mais conversas comigo mesmo. É libertador, embora dolorido, perceber que precisamos ser honestos com nós mesmos. Tentar fugir da nobreza eterna, algo que vejo bastante ligada à masculinidade preta. Essa invulnerabilidade — e não falo nem do “não chorar”. É mais sobre uma imagem impecável, novamente, do super-herói, de ser sempre nobre nas atitudes e pensamentos. Agora, eu me permito viver os sentimentos ruins que tenho para eles não ficarem presos dentro de mim. Me permito sentir raiva e frustração; faço carinho na minha criança interior. Olho para as coisas com um pouco mais de racionalidade: é através dela que eu liberto as minhas emoções. A racionalidade é entender-se vulnerável. Eu tenho mais acolhimento comigo, com o Ícaro torto, o Ícaro raivoso, o Ícaro arrogante. Eu tento ser quem eu sou, com todas as qualidades e todos os defeitos, justamente para conseguir melhorar.

Ícaro Silva
Vestido, R$ 3.180, Misci. Brincos, R$ 1.520; ear cuff, R$ 580; e colar, R$ 990, tudo Elisa Parpinelli. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)

E o seu encontro com o feminino dentro de você, te ajudou nessa desconstrução?

Tudo está conectado, e meu abraço ao meu feminino está relacionado com a capacidade de ouvir. Tiveram coisas na minha vida que me fizeram olhar para a minha trajetória enquanto homem e ver como o meu feminino foi silenciado. Eu sempre fui uma criança sensível, o mundo me atravessava com muita força. As coisas me tocam, mas social- mente vamos perdendo isso. Só aos 21, na faculdade, entendi a minha energia feminina de cuidado, fluidez, afeto e capacidade de escuta, coisas intrínsecas ao teatro. O equilíbrio entre feminino e masculino em nós vamos buscando ao longo da vida. Me intitulo bicha preta, considerando o “bicha” aquele homem que se permite ser atravessado pelo feminino e que dialoga com ele honestamente. Eu entendo totalmente a minha masculinidade porque sei exatamente onde está o meu feminino.

Ícaro Silva
Vestido, R$ 3.180; sobre calça, R$ 1.900, ambos Misci. Brincos, R$ 1.520; ear cuff, R$ 580; e colar, R$ 990, tudo Elisa Parpinelli. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)

Você fala bastante em sonhos. Pensando no seu nome, na sua profissão, o que seria esse direito de sonhar?

Eu adoro esse arquétipo do sonhador, do Ícaro, das asas. Meu pai me deu esse nome. E eu acho isso bonito porque é uma semente de um sonhador que estava preso dentro dele. Para mim, é um presente. Não sei o quanto o arquétipo me influenciou ou o quanto eu o influenciei, mas é assertivo, porque eu vejo nessa capacidade de sonhar a possibilidade de se alinhar com a humanidade. Gosto de dizer que eu tenho o pé no chão e a cabeça nas nuvens, olhando para além da Terra, observando tudo o que é vida, lá fora e aqui dentro. E olhar para esse absurdo que é viver, me traz a capacidade de sonhar. Ou seja, a própria conexão com o que é mais simples — porque o simples já é extraordinário — me faz enxergar que tudo é possível.

Ícaro Silva
Camisa, R$ 560; e saia, R$ 594, ambos João Pimenta. Botas, R$ 7.800, Louboutin. Brincos, R$ 3.600, Olsen K, e ear cuff, R$ 650, Elisa Parpinelli. Styling Renata Brosina e Paula Jacob | Beleza Vanessa Sena | Concepção visual Eduardo Pignata | Camareira Rosely Berça. (Thiago Santos/CLAUDIA)
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