Entenda por que ninguém deveria se “fantasiar” de negro ou de índio
Não é homenagem ou uma simples fantasia. Existem questões sociais e políticas por trás dessa atitude.
“Mulher não é fantasia de carnaval, muito menos a mulher negra e indígena”, afirma a antropóloga Elisa Hipólito do Espírito Santo, quando questionada sobre o ato de se fantasiar de grupos étnicos em épocas festivas.
E é especificamente no carnaval que as ditas “fantasias” de negros e indígenas mais começam a aparecer. Muito se fala sobre o assunto, mas poucos (bem poucos) entendem a real problemática desse tipo de ato. O que parece uma forma de homenagear a história desses grupos, é na verdade, uma atitude impensada que reforça uma série de agressões que a comunidade negra e indígena sofre e tenta combater.
“A personagem da Índia Potira é um dos exemplos. Ela tem um estereótipo de que a mulher indígena é sensual e burra, e precisa negociar o corpo para conseguir o que quer”, explica Jé Hãmãgay, indígena Tikmu’un, museóloga e integrante do CMACI (Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas). A jovem é conhecida nas redes sociais por publicar conteúdo sobre a cultura indígena, e usa o nome Jé Hãmãgãy, apelido que significa onça.
“Esse estereótipo ultrapassa gerações e está no imaginário dos brasileiros. Não conheço uma mulher indígena que não tenha sido chamada de Potira”, completa ela.
No caso das fantasias de índio, o termo é conhecido como Red Face ou Indian Face, que é o ato de pintar-se literalmente de vermelho ou de escurecer a pele, além do uso de penas, cocar, maquiagem e roupas que supostamente remetem a essa cultura.“A fantasia traz essa conotação de figura extinta, folclórica, mitológica. Ainda nos tratam como se não existíssemos mais”, diz Jéssica.
Já a origem do Black Face é um pouco mais antiga. Não se sabe onde surgiu, mas foi por volta de 1830, quando atores brancos se pintavam de preto para representar personagens caricatos em espetáculos humorísticos, utilizando comportamentos exagerados.
Elisa explica como chegou em terras brasileiras. “O Black Face chegou no Brasil em um período de pós-escravização em que principalmente as mulheres negras eram representadas nos jornais como caricaturas escravizadas, usando roupas de serviçais. Essas imagens eram usadas em alguns anúncios de produtos, vendas de utensílios domésticos”.
Pra quem não sabe: tem violência
“índios e negros são grupos políticos com históricos socioculturais, demandas e reivindicações diferentes, mas essas fantasias chegam no mesmo ponto, que é a violência”, esclarece Elisa.
“As pessoas que realizam o Black Face e o Red Face, reforçam estereótipos de minorias políticas que sofrem diretamente com todo sistema elaborado, que é racista e genocida”, aponta Elisa. Para ela, quem comete esse ato precisa se responsabilizado por suas escolhas. “Ainda mais atos com pesos históricos e violentos com uma parcela da população”, completa.
“A fantasia de índia é sempre hipersexualizada. Em sua maioria evoca o sensual, mostra uma nudez totalmente diferente da nossa, que é natural”, explica Jéssica – e ainda fala sobre a falsa representação da mulher indígena. “Ela reforça o estereótipo de que a mulher indígena é fácil, ou de que ela é selvagem, ou de que ela está nua e pode ser tocada”.
Com o homem, não é muito diferente. Além da sexualização do índio há também a animalização. “Mostra o homem indígena como burro, selvagem, ignorante e que não sabe falar direito. Quanto mais brutamonte ele estiver fantasiando, mais ‘parecido’ com um homem indígena é”, aponta Jéssica.
Nos casos envolvendo o Black Face, os estereótipos são muito parecidos. “O homem negro que é visto como preguiçoso, que não gosta de trabalhar, bêbado, sai desse extremo e vai para outro, do homem negro perigoso, animalesco, que precisa ser contido”, diz Elisa.
Com as mulheres negras, chega a ser ainda mais agressivo, por conta da figura caricata da “Nega Maluca”. “Ela é a caracterização racista e machista da mulher negra, e posso dizer que é desumanizante. Ela é a apresentada como uma mulher que não tem domínio da forma culta do português, uma mulher que grita, que é raivosa uma mulher sem racionalidade e animalesca”.
Há também outras representações que envolvem a mulher negra, tendo como principal aspecto a hipersexualização, assim como no caso das indígenas. “Os quadris largos, seios fartos, essa imagem ataca justamente imagens e trejeitos que o feminismo negro há décadas luta contra”, explica Elisa.
Além disso, as fantasias mostram uma falsa realidade, que não representa de fato a cultura. “Existe a homogeneização das culturas, misturam elementos daqui com grupos indígenas dos Estados Unidos, por exemplo. As mulheres usam cocar que só homem usa, maquiagens genéricas que não tem nada a ver com a nossas pinturas. É um apagamento real da nossa cultura e costumes”, diz Jéssica.
“Todo ano falamos exaustivamente sobre todas as camadas desse problema, e ainda que não seja algo diretamente violento como os conflitos por terra, contribuem para situações violentas, como o abuso de mulheres indígenas e suicídio de jovens por causa do racismo”, explica ela.
“Enquanto um não indígena pode se fantasiar, nós somos ridicularizados, sexualizados e animalizados. Até somos impedidos de frequentar espaços públicos quando estamos trajados”, Completa Jéssica.
Não é homenagem!
“Não é porque não dialoga com a comunidade. Que tipo de homenagem é essa que reforça estereótipo e violência contra a mulher e ofende com brincadeiras? Existem outras formas de nos homenagear”, aponta Jéssica, e explica que a principal intenção ao se fantasiar de índio é justamente o divertimento através da chacota. “Existem muitas formas de se homenagear de fato, sem precisar de fantasia”.
Elisa concorda com a fala de Jéssica, e diz o porquê desse comportamento ainda acontecer. “Há pessoas brancas que ainda se justificam, dizendo que é apenas uma fantasia. Isso acontece porque ignoram as violências e a negação de direitos que pessoas negras e indígenas viveram no sistema escravagista no país”.
“Se realmente querem fazer uma honraria, que chamem indígenas para ocupar espaços que são negados, como convites para atuar, uma oportunidade honesta de exposição de seus trabalhos. Frequentem eventos indígenas, divulguem as pautas da luta, comprem arte indígena. São infinitas as possibilidades sem sequer se pensar em fantasia”, especifica Jéssica.
Elisa reforça que, além de racistas, as fantasias são machistas. “Estamos falando de Black e Red Face, mas há outros aspectos, como homens se vestindo de mulher e ciganas por exemplo, que auxiliam nessas violências que essa parcela da população sofre. Mulher não é fantasia de Carnaval, muito menos a mulher negra”.
Como conscientizar
Segundo Jéssica, a principal arma de combate é através do diálogo e conhecimento. “O não indígena precisa se abrir a ouvir o que falamos, entender nosso lado. É um caminho muito longo pelo racismo ser estrutural, mas não é tarde para que entendam isso”.
“As pessoas precisam entrar nesse assunto ao invés de afirmarem que é só ‘mimimi’. É preciso ter a noção dos seus privilégios provenientes da masculinidade e da branquitude”, frisa Elisa.
A antropóloga ainda menciona que a educação formal é um dos meios de combater esse tipo de atitude. “A conscientização vem através da educação, do conhecimento e do acesso a informação. Acho fundamental ler escritores e escritoras negras, é um importante passo para quem está em busca de um conhecimento crítico e descolonizador”.
Mas esse é apenas o primeiro passo para de fato mudar alguns problemas estruturantes da sociedade, mas especificamente, a conduta de marginalizar e fazer grupos étnicos de chacota através de fantasias. “Não basta não ser racista, precisa ser antirracista. Eu convidaria que as pessoas não negras e não indígenas, ao verem um amigo praticando o Black e Red Face, conversem com essa pessoa e exponham que o que ela está fazendo é racista”, sugere Elisa.
“Através do diálogo podemos entender vários pontos sobre nossos direitos. O direito à diversidade, sobre a violência direcionada a mulheres e meninas indígenas, o racismo que envolve o silenciamento desses povos em narrativas no cinema, TV e mídias no geral”, pontua Jéssica.