Era 2006 e o Museu de Arte de São Paulo (Masp), instituição com um dos mais importantes acervos de arte moderna da América Latina, iniciava uma quarta-feira sem energia elétrica. A empresa fornecedora havia cortado a transmissão por causa de uma dívida acumulada de quase 4 milhões de reais que o museu não conseguia pagar com a renda da venda de ingressos. É verdade que as visitas não eram tão numerosas, pois boa parte do público achava que a entidade carregava um ar arrogante, como se estivesse afastada da realidade do entorno.
Esse passado nem tão distante destoa das filas quilométricas para as exposições de 2019. A mostra Tarsila Popular bateu o recorde histórico, com 403 mil visitantes. Hoje o museu, que ocupa um prédio projetado por Lina Bo Bardi na década de 1960, está na dianteira da discussão de temas urgentes. Desde 2017, abrigou exposições que tratavam
de sexualidade, histórias afro-atlânticas e de mulheres artistas e, por último, de feministas. Em todos os temas, o fluxo de visitantes foi expressivo.
A curadora Isabella Rjeille faz parte dessa movimentação recente. Ela é uma das responsáveis pela série Histórias Feministas e tem contribuído para transformar as exposições do museu, destacando artistas pouco lembradas. “Ter ‘feministas’ no título deixa clara a proposta de debater o tema, além de ser uma posição interessante e radical da instituição”, diz Isabella, que está na equipe desde 2016. Nas redes sociais do Masp, as críticas são frequentes – na opinião de alguns, o museu deveria se abster de debates. “Sempre pensamos em como o Masp, que trabalha com algo simbólico, que é a arte, pode responder às demandas que surgem nas ruas, além de ser inclusivo e plural”, afirma.
Pensamos em como o Masp pode responder às demandas que surgem nas ruas, ser inclusivo e plural
Isabella Rjeille
Com um acervo tão rico, sobretudo de tesouros da arte europeia, é fácil deduzir que há uma predominância de artistas homens. Portanto, tocar em temas como gênero, sexualidade e raça, mesmo internamente, se tornou preocupação constante. “Buscamos propor outros olhares, e não cair nas narrativas de sempre sobre os mesmos artistas”, explica ela. Ao apresentar o pós-impressionista Toulouse-Lautrec em 2017, por exemplo, em vez de focar em sua técnica, a mostra abordou o contexto da prostituição no período, que foi retratado em seu trabalho.
Esse esforço inclui ser transparente também com os próprios tetos de vidro. Na mostra Guerrilla Girls: Gráfica, 1985-2017, uma das obras denunciava a desigualdade de gênero no Masp: apenas 6% delas eram de artistas mulheres e 60% dos nus eram femininos no acervo em transformação. Atualmente, 26% são de autoria delas, e as 296 aquisições de 2019 tiveram o intuito de ampliar a paridade de gênero.
Com a representatividade ainda em foco, em 2021 o novo eixo de exposições será de histórias indígenas. Por isso, em dezembro passado, Sandra Benites, que é Guarani Nhandewa e mestre em antropologia social pelo Museu Nacional, foi anunciada como curadora adjunta do Masp. “Como a maior parte dos visitantes será de não indígenas, minha intenção é abrir o diálogo para mostrar as preocupações indígenas e nossa forma de ver o mundo, de lidar com a terra”, explica Sandra, que era educadora indígena na aldeia Transpalmeira, no Espírito Santo, e fez parte da equipe de curadores de uma exposição no Museu de Arte do Rio (MAR). “Para manter essa conversa, espero unir pontos em comum entre os diferentes povos indígenas, sem deixar de lado as especificidades de cada etnia”, afirma. Assim, o Masp se renova como referência da arte brasileira.