Cristina Rivera Garza desembarca na Flip 2025 com literatura marcada por memória e resistência
CLAUDIA entrevista a premiada escritora mexicana, autora de 'O invencível verão de Liliana' e 'Autobiografia do algodão'

A escritora mexicana Cristina Rivera Garza, vencedora do Prêmio Pulitzer 2024, na categoria Memórias ou Autobiografia, é uma das convidadas internacionais confirmadas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2025. A autora tem dois livros publicados no Brasil pela Autêntica Contemporânea, O invencível verão de Liliana e Autobiografia do algodão, ambos traduzidos por Silvia Massimini Felix. Sua escrita transita entre a fronteira linguística, geográfica e de gênero, desafiando classificações.
É considerada uma das autoras mais premiadas e traduzidas da América Latina. Além do Pulitzer 2024, Rivera Garza é reconhecida, por prêmios como Anna Seghers, o Prêmio Bellas Artes de Novela José Rubén Romero, o Prêmio Excelencia en las Letras José Emilio Pacheco, o Prêmio Roger Caillois e o Prêmio Sor Juana Inés de la Cruz, este último conquistado duas vezes.
Com formação em Sociologia e doutorado em História, Cristina é professora na Universidade de Houston, onde fundou o doutorado em Escrita Criativa. Sua obra rompe fronteiras entre ficção, ensaio, poesia e jornalismo, resultando em textos que ampliam o conceito de literatura e desafiam categorias rígidas de gênero e forma.
Ela estreia na Flip, no sábado (01/08), às 17h, ao lado de Maria Negron, na mesa “Ser mulher na América Latina”. A mediação será do jornalista Guilherme Freitas. A CLAUDIA conversou com a escritora, veja:
Em O invencível verão de Liliana, você narra o feminicídio de sua irmã, um crime que o Estado mexicano invisibilizou por anos. O que as experiências do México e dos Estados Unidos ensinam sobre o papel do Estado na perpetuação ou no combate à violência de gênero?
Elas nos ensinam, antes de tudo, que precisamos de uma linguagem clara e compassiva para contar essas histórias de violência letal de gênero para além dos limites impostos pelo patriarcado e a partir da perspectiva das vítimas dessas agressões, bem como de suas comunidades. Isso é especialmente urgente em lugares como os Estados Unidos, onde os termos “feminicídio” e “feminicida” não fazem parte do vocabulário cotidiano, muito menos do campo legal. Os dados mostram que a impunidade gera feminicídios. Se um feminicida sabe que tem mais de 95% de chance de assediar, humilhar, manipular, estuprar e matar sem nenhuma consequência legal, é evidente que continuará cometendo feminicídios. E os potenciais feminicidas receberão essa mensagem. Mas nem tudo é responsabilidade do Estado; cabe também à sociedade civil identificar e denunciar qualquer ato de violência, independentemente de os agressores serem familiares, netos, filhos, colegas ou vizinhos. É necessária a intervenção de todos e todas para frear a onda de violência feminicida que assola o mundo inteiro.
No livro, você reivindica o direito de contar a história de sua irmã de forma íntima, mas também coletiva. Como essa escrita pessoal pode contribuir para a construção de uma memória coletiva pública contra o feminicídio?
Me interessam os livros pessoais, mas não aqueles que olham de forma autocentrada para o próprio umbigo. Acredito, como Judith Butler, que qualquer relato do “eu” envolve, desde o início, um relato do “tu” — e eu iria além: um relato do “nós”. Por isso, em O invencível verão de Liliana, recorri aos documentos deixados por minha irmã, de modo que, em vez de “dar voz” a ela, me propus a escutar a voz que ela mesma se encarregou de registrar e preservar em vários tipos de documentos. A pesquisa em jornais e arquivos contribuiu para construir outro personagem fundamental do livro: a Cidade do México, especialmente o bairro de Azcapotzalco. As entrevistas com conhecidos e amigos de Liliana me ajudaram a compreendê-la sob diferentes perspectivas — muitas delas inéditas —, pois, como seres sociais, nos formamos em relação com os outros. Trata-se aqui de uma encenação de uma escrita desapropriativa, que revela e torna palpável a participação de outros, e que transita livremente entre a ficção e a não ficção.
No Brasil, muitas mulheres negras e indígenas são vítimas de desaparecimentos forçados e de violência extrema. Como sua experiência de fronteira — literal e simbólica — pode dialogar com essas realidades brasileiras?
Vivemos em sociedades patriarcais com rígidas distinções de classe e raça. A exploração das mulheres começa com a apropriação do trabalho doméstico, como argumentava Silvia Federici, e continua com desigualdades cruéis no acesso à educação, ao trabalho, à saúde, ao espaço público. Os diferentes feminismos que me permitiram escrever O invencível verão de Liliana serão fundamentais para identificar e denunciar a exploração e o extrativismo, mas também para apontar as linhas de fuga por onde escapa outra maneira de estar no mundo — uma forma mais humana e livre, como queria a poeta mexicana Rosario Castellanos. Essas visões propõem uma espécie de método de escuta, uma forma de abordar fenômenos complexos com atenção à sua especificidade temporal e espacial. É, creio, uma maneira de perguntar, que também pode ser uma forma de subversão.
Você fala sobre “escrita despossessiva”. Como esse conceito se aplica ao relato de histórias de violência de gênero? E como pode ser um caminho para que escritoras brasileiras enfrentem narrativas sobre a violência por aqui?
Em Los muertos indóciles, explorei a noção de desapropriação como uma saída para os argumentos identitários que dominaram a conversa sobre apropriação — de histórias, tradições, experiências alheias. Acredito que a identidade não garante, por si só, que não haja apropriação extrativista. Proponho que é a investigação, como um ato de cuidado, que pode nos dar ou não permissão para abordar histórias de outros. E atenção: sempre estamos contando histórias de outros quando escrevemos, mesmo quando a anedota é algo que vivemos. Em O invencível verão de Liliana, a protagonista é ela — seu idioma, sua forma de ver o mundo —, não a minha dor ou a minha experiência com minha irmã. Por isso, construí para mim um espaço discreto ao longo da narrativa, para que essa voz que um feminicida tentou calar possa voltar a brilhar com luz própria. Podemos criar espaços de escuta, campos magnéticos de implicação intersubjetiva, para que outros se levantem com sua própria voz e nos iluminem com seu brilho? Estamos dispostas a nos responsabilizar por todas as decisões literárias e de pesquisa de um livro e, ao mesmo tempo, sair de cena para que outros atraiam, por direito próprio, essa atenção?
Como a literatura pode resgatar histórias de trabalhadores rurais e migrantes que ficaram à margem da história oficial? Há força política nesse resgate?
Em Ninguém me verá chorar, romance que escrevi a partir dos prontuários médicos do Manicômio Geral de La Castañeda, enfrentei essa pergunta pela primeira vez: de que lugar uma estudante de doutorado de classe média poderia abordar histórias de exclusão e violência sofridas pelos mais pobres entre os pobres no México? Minha resposta, à época: investigação, no sentido mais amplo da palavra — bibliográfica, jornalística, de arquivos, de campo, etnográfica, espiritual, etc. No meu caso, interessa-me menos o resgate em si e mais a possibilidade de reativar as forças e visões que esses documentos ou registros trazem à luz. Nos chamados “arquivos mortos” condensa-se, por mais paradoxal que pareça, a vida que poderia ter sido. A escrita contemporânea sobre e com essas marcas tem a capacidade de trazer de volta essa energia, ao mesmo tempo que abre fissuras em realidades que se pretendem resolvidas. Nada precisa ser como é. Tudo pode ser diferente. Isso que a pesquisa nos ensina carrega uma carga explosiva inegável.
A fronteira entre o México e os Estados Unidos é um território de violência e resistência. No Brasil, nossas fronteiras internas — raciais, de classe, de gênero — também produzem silêncios e violências. Como sua obra ilumina o que acontece nesses “não-lugares”?
Interessa-me, sobretudo, trabalhar com os escritos de outros (que não precisam ser publicados ou publicáveis, mas registros em que a marca de outra pessoa se dirige a nossos sistemas de percepção); e, quando esses não existem ou estão incompletos (o que é a maioria dos casos), interessa-me trabalhar com uma imaginação corporificada, atenta ao trabalho da investigação. A pesquisadora afro-americana Saidiya Hartman cunhou o conceito de “fabulação crítica” para descrever o mecanismo por meio do qual pesquisadoras e escritoras de hoje podem preencher ou lidar com os buracos negros dos arquivos — ou com o esquecimento em geral. Em Autobiografia do algodão, por exemplo, fiz toda a pesquisa que pude, mas no final, como costuma acontecer, precisei recorrer à ficção para criar transições ou cenas que a história me pedia. O mesmo aconteceu com O invencível verão de Liliana — o apego ao documento foi interrompido por recriações de cenas que ninguém me descreveu, mas que, com base em mapas e leitura de outras fontes, pude imaginar de forma responsável. Para mim, o mais importante não é contar uma história, mas produzir uma experiência no corpo de outra pessoa por meio das ferramentas humildes, mas poderosas, da linguagem.
O Brasil também possui uma forte tradição oral, sobretudo nas comunidades quilombolas e indígenas. O que a oralidade nos permite acessar que os documentos oficiais ocultam?
Boa pergunta. Certa vez escrevi um ensaio tentando respondê-la — porque, de fato, essa questão me atormentava. Minha resposta provisória então: é preciso ler os documentos históricos em modo etnográfico, como se fossem respostas que vêm de longe e do passado, para as quais precisamos inventar as perguntas a partir do aqui e agora. Eu tentava demonstrar que uma espécie de dialogismo retroativo é possível. Por outro lado, grande parte dos documentos com que trabalho é composta por citações obtidas em contextos de desigualdade estrutural, como interrogatórios feitos por quem detém o poder (psiquiatras no manicômio, carcereiros na prisão, etc.). Walter Benjamin considerava que essas “citações” eram uma forma de redenção daquelas outras experiências que a história oficial apagou. Esses documentos, portanto, são feitos de — e encobrem — momentos de oralidade controlada, que a leitura desde o presente pode “descontrolar”.
Você observa alguma aproximação estética ou política entre autoras mexicanas, norte-americanas e brasileiras no enfrentamento da violência de gênero e outras formas de violência? Você acompanha o trabalho de alguma escritora brasileira que a inspire?
Li uma grande quantidade de escritoras e teóricas da América Latina e dos Estados Unidos, e as cito com generosidade em meus livros. Gloria Anzaldúa, por exemplo, aparece com destaque em Autobiografia do algodão. Não poderia pensar o que penso sem Silvia Federici, Rita Segato, Silvia Rivera Cusicanqui, Judith Butler, Saidiya Hartman, Christina Sharpe, Dionne Brand, Yasnaya Aguilar, Gladys Tzul Tzul — e a lista continua. Li há muito tempo o diário de Carolina Maria de Jesus e ele me impactou profundamente. Já o indiquei diversas vezes em aulas de história da América Latina e em seminários de estudos de gênero. Clarice Lispector e Rubem Fonseca, claro. Preciso, evidentemente, conhecer mais. Interesso-me especialmente por coletivos que realizam práticas de ativismo, escrita e experimentações interdisciplinares.
Você já disse que “a violência é contagiosa”. Mas podemos dizer também que a resistência é contagiosa? Que movimentos, práticas ou narrativas lhe dão esperança?
Sem dúvida. Por isso são tão perigosas as narrativas verticais que reforçam o poder dos — perdoe a redundância — poderosos. Uma leitura mais ampla da história nos mostra que a resistência não é apenas uma resposta a políticas ou medidas das autoridades, mas que frequentemente ela envolve uma série de iniciativas concretas, culturais e políticas, às quais o poder instituído acaba tendo que responder. Os movimentos feministas atuais nos ensinaram a crescer no dissenso e na autocrítica e, a partir daí, promoveram um abraço amplo, polimorfo, mercurial, cujos efeitos não são pequenos em nosso cotidiano. Quando uma começa a nomear, outras seguem o passo. As insurreições têm isso: campos magnéticos que convocam e reúnem o melhor de nós. O que não conseguimos conceber sozinhas se torna possível quando alguém nos estende a mão e nos dá fôlego. Às vezes, tudo se resume a isso: tomar fôlego, respirar em uníssono, produzir ar fresco.
Em O invencível verão de Liliana, Rivera Garza reconstrói o feminicídio de sua irmã, assassinada em 1990. Por meio de diários, cartas e registros pessoais, a autora devolve à vítima sua voz, sua história e sua dignidade, construindo uma narrativa comovente sobre justiça, luto e linguagem.
Já em Autobiografia do algodão, a escritora investiga as raízes familiares ligadas às plantações de algodão na fronteira entre México e Estados Unidos. Combinando história oral, relatos íntimos e reflexão política, a obra amplia o olhar sobre desigualdade social, migração e memória.
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