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Relâmpago: Revista em casa a partir de 10,99

Cristina Rivera Garza desembarca na Flip 2025 com literatura marcada por memória e resistência

CLAUDIA entrevista a premiada escritora mexicana, autora de 'O invencível verão de Liliana' e 'Autobiografia do algodão'

Por Paola Carvalho
30 jul 2025, 17h19
Foto de Cristina Rivera Garza, autora convidada da FLIP, vista de frente
De passagem pelo Brasil, autora mexicana fala sobre as dificuldades em ser mulher na América Latina (John D. and Catherine T. e MacArthur Foundation/Divulgação)
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A escritora mexicana Cristina Rivera Garza, vencedora do Prêmio Pulitzer 2024, na categoria Memórias ou Autobiografia, é uma das convidadas internacionais confirmadas da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2025. A autora tem dois livros publicados no Brasil pela Autêntica Contemporânea, O invencível verão de Liliana e Autobiografia do algodão, ambos traduzidos por Silvia Massimini Felix. Sua escrita transita entre a fronteira linguística, geográfica e de gênero, desafiando classificações. 

É considerada uma das autoras mais premiadas e traduzidas da América Latina. Além do Pulitzer 2024, Rivera Garza é reconhecida, por prêmios como Anna Seghers, o Prêmio Bellas Artes de Novela José Rubén Romero, o Prêmio Excelencia en las Letras José Emilio Pacheco, o Prêmio Roger Caillois e o Prêmio Sor Juana Inés de la Cruz, este último conquistado duas vezes.

Com formação em Sociologia e doutorado em História, Cristina é professora na Universidade de Houston, onde fundou o doutorado em Escrita Criativa. Sua obra rompe fronteiras entre ficção, ensaio, poesia e jornalismo, resultando em textos que ampliam o conceito de literatura e desafiam categorias rígidas de gênero e forma.

Ela estreia na Flip, no sábado (01/08), às 17h, ao lado de Maria Negron, na mesa “Ser mulher na América Latina”. A mediação será do jornalista Guilherme Freitas. A CLAUDIA conversou com a escritora, veja:

Em O invencível verão de Liliana, você narra o feminicídio de sua irmã, um crime que o Estado mexicano invisibilizou por anos. O que as experiências do México e dos Estados Unidos ensinam sobre o papel do Estado na perpetuação ou no combate à violência de gênero?

Elas nos ensinam, antes de tudo, que precisamos de uma linguagem clara e compassiva para contar essas histórias de violência letal de gênero para além dos limites impostos pelo patriarcado e a partir da perspectiva das vítimas dessas agressões, bem como de suas comunidades. Isso é especialmente urgente em lugares como os Estados Unidos, onde os termos “feminicídio” e “feminicida” não fazem parte do vocabulário cotidiano, muito menos do campo legal. Os dados mostram que a impunidade gera feminicídios. Se um feminicida sabe que tem mais de 95% de chance de assediar, humilhar, manipular, estuprar e matar sem nenhuma consequência legal, é evidente que continuará cometendo feminicídios. E os potenciais feminicidas receberão essa mensagem. Mas nem tudo é responsabilidade do Estado; cabe também à sociedade civil identificar e denunciar qualquer ato de violência, independentemente de os agressores serem familiares, netos, filhos, colegas ou vizinhos. É necessária a intervenção de todos e todas para frear a onda de violência feminicida que assola o mundo inteiro.

No livro, você reivindica o direito de contar a história de sua irmã de forma íntima, mas também coletiva. Como essa escrita pessoal pode contribuir para a construção de uma memória coletiva pública contra o feminicídio?

Me interessam os livros pessoais, mas não aqueles que olham de forma autocentrada para o próprio umbigo. Acredito, como Judith Butler, que qualquer relato do “eu” envolve, desde o início, um relato do “tu” — e eu iria além: um relato do “nós”. Por isso, em O invencível verão de Liliana, recorri aos documentos deixados por minha irmã, de modo que, em vez de “dar voz” a ela, me propus a escutar a voz que ela mesma se encarregou de registrar e preservar em vários tipos de documentos. A pesquisa em jornais e arquivos contribuiu para construir outro personagem fundamental do livro: a Cidade do México, especialmente o bairro de Azcapotzalco. As entrevistas com conhecidos e amigos de Liliana me ajudaram a compreendê-la sob diferentes perspectivas — muitas delas inéditas —, pois, como seres sociais, nos formamos em relação com os outros. Trata-se aqui de uma encenação de uma escrita desapropriativa, que revela e torna palpável a participação de outros, e que transita livremente entre a ficção e a não ficção.

No Brasil, muitas mulheres negras e indígenas são vítimas de desaparecimentos forçados e de violência extrema. Como sua experiência de fronteira — literal e simbólica — pode dialogar com essas realidades brasileiras?

Vivemos em sociedades patriarcais com rígidas distinções de classe e raça. A exploração das mulheres começa com a apropriação do trabalho doméstico, como argumentava Silvia Federici, e continua com desigualdades cruéis no acesso à educação, ao trabalho, à saúde, ao espaço público. Os diferentes feminismos que me permitiram escrever O invencível verão de Liliana serão fundamentais para identificar e denunciar a exploração e o extrativismo, mas também para apontar as linhas de fuga por onde escapa outra maneira de estar no mundo — uma forma mais humana e livre, como queria a poeta mexicana Rosario Castellanos. Essas visões propõem uma espécie de método de escuta, uma forma de abordar fenômenos complexos com atenção à sua especificidade temporal e espacial. É, creio, uma maneira de perguntar, que também pode ser uma forma de subversão.

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Você fala sobre “escrita despossessiva”. Como esse conceito se aplica ao relato de histórias de violência de gênero? E como pode ser um caminho para que escritoras brasileiras enfrentem narrativas sobre a violência por aqui?

Em Los muertos indóciles, explorei a noção de desapropriação como uma saída para os argumentos identitários que dominaram a conversa sobre apropriação — de histórias, tradições, experiências alheias. Acredito que a identidade não garante, por si só, que não haja apropriação extrativista. Proponho que é a investigação, como um ato de cuidado, que pode nos dar ou não permissão para abordar histórias de outros. E atenção: sempre estamos contando histórias de outros quando escrevemos, mesmo quando a anedota é algo que vivemos. Em O invencível verão de Liliana, a protagonista é ela — seu idioma, sua forma de ver o mundo —, não a minha dor ou a minha experiência com minha irmã. Por isso, construí para mim um espaço discreto ao longo da narrativa, para que essa voz que um feminicida tentou calar possa voltar a brilhar com luz própria. Podemos criar espaços de escuta, campos magnéticos de implicação intersubjetiva, para que outros se levantem com sua própria voz e nos iluminem com seu brilho? Estamos dispostas a nos responsabilizar por todas as decisões literárias e de pesquisa de um livro e, ao mesmo tempo, sair de cena para que outros atraiam, por direito próprio, essa atenção?

Como a literatura pode resgatar histórias de trabalhadores rurais e migrantes que ficaram à margem da história oficial? Há força política nesse resgate?

Em Ninguém me verá chorar, romance que escrevi a partir dos prontuários médicos do Manicômio Geral de La Castañeda, enfrentei essa pergunta pela primeira vez: de que lugar uma estudante de doutorado de classe média poderia abordar histórias de exclusão e violência sofridas pelos mais pobres entre os pobres no México? Minha resposta, à época: investigação, no sentido mais amplo da palavra — bibliográfica, jornalística, de arquivos, de campo, etnográfica, espiritual, etc. No meu caso, interessa-me menos o resgate em si e mais a possibilidade de reativar as forças e visões que esses documentos ou registros trazem à luz. Nos chamados “arquivos mortos” condensa-se, por mais paradoxal que pareça, a vida que poderia ter sido. A escrita contemporânea sobre e com essas marcas tem a capacidade de trazer de volta essa energia, ao mesmo tempo que abre fissuras em realidades que se pretendem resolvidas. Nada precisa ser como é. Tudo pode ser diferente. Isso que a pesquisa nos ensina carrega uma carga explosiva inegável.

A fronteira entre o México e os Estados Unidos é um território de violência e resistência. No Brasil, nossas fronteiras internas — raciais, de classe, de gênero — também produzem silêncios e violências. Como sua obra ilumina o que acontece nesses “não-lugares”?

Interessa-me, sobretudo, trabalhar com os escritos de outros (que não precisam ser publicados ou publicáveis, mas registros em que a marca de outra pessoa se dirige a nossos sistemas de percepção); e, quando esses não existem ou estão incompletos (o que é a maioria dos casos), interessa-me trabalhar com uma imaginação corporificada, atenta ao trabalho da investigação. A pesquisadora afro-americana Saidiya Hartman cunhou o conceito de “fabulação crítica” para descrever o mecanismo por meio do qual pesquisadoras e escritoras de hoje podem preencher ou lidar com os buracos negros dos arquivos — ou com o esquecimento em geral. Em Autobiografia do algodão, por exemplo, fiz toda a pesquisa que pude, mas no final, como costuma acontecer, precisei recorrer à ficção para criar transições ou cenas que a história me pedia. O mesmo aconteceu com O invencível verão de Liliana — o apego ao documento foi interrompido por recriações de cenas que ninguém me descreveu, mas que, com base em mapas e leitura de outras fontes, pude imaginar de forma responsável. Para mim, o mais importante não é contar uma história, mas produzir uma experiência no corpo de outra pessoa por meio das ferramentas humildes, mas poderosas, da linguagem.

O Brasil também possui uma forte tradição oral, sobretudo nas comunidades quilombolas e indígenas. O que a oralidade nos permite acessar que os documentos oficiais ocultam?

Boa pergunta. Certa vez escrevi um ensaio tentando respondê-la — porque, de fato, essa questão me atormentava. Minha resposta provisória então: é preciso ler os documentos históricos em modo etnográfico, como se fossem respostas que vêm de longe e do passado, para as quais precisamos inventar as perguntas a partir do aqui e agora. Eu tentava demonstrar que uma espécie de dialogismo retroativo é possível. Por outro lado, grande parte dos documentos com que trabalho é composta por citações obtidas em contextos de desigualdade estrutural, como interrogatórios feitos por quem detém o poder (psiquiatras no manicômio, carcereiros na prisão, etc.). Walter Benjamin considerava que essas “citações” eram uma forma de redenção daquelas outras experiências que a história oficial apagou. Esses documentos, portanto, são feitos de — e encobrem — momentos de oralidade controlada, que a leitura desde o presente pode “descontrolar”.

Você observa alguma aproximação estética ou política entre autoras mexicanas, norte-americanas e brasileiras no enfrentamento da violência de gênero e outras formas de violência? Você acompanha o trabalho de alguma escritora brasileira que a inspire?

Li uma grande quantidade de escritoras e teóricas da América Latina e dos Estados Unidos, e as cito com generosidade em meus livros. Gloria Anzaldúa, por exemplo, aparece com destaque em Autobiografia do algodão. Não poderia pensar o que penso sem Silvia Federici, Rita Segato, Silvia Rivera Cusicanqui, Judith Butler, Saidiya Hartman, Christina Sharpe, Dionne Brand, Yasnaya Aguilar, Gladys Tzul Tzul — e a lista continua. Li há muito tempo o diário de Carolina Maria de Jesus e ele me impactou profundamente. Já o indiquei diversas vezes em aulas de história da América Latina e em seminários de estudos de gênero. Clarice Lispector e Rubem Fonseca, claro. Preciso, evidentemente, conhecer mais. Interesso-me especialmente por coletivos que realizam práticas de ativismo, escrita e experimentações interdisciplinares.

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Você já disse que “a violência é contagiosa”. Mas podemos dizer também que a resistência é contagiosa? Que movimentos, práticas ou narrativas lhe dão esperança?

Sem dúvida. Por isso são tão perigosas as narrativas verticais que reforçam o poder dos — perdoe a redundância — poderosos. Uma leitura mais ampla da história nos mostra que a resistência não é apenas uma resposta a políticas ou medidas das autoridades, mas que frequentemente ela envolve uma série de iniciativas concretas, culturais e políticas, às quais o poder instituído acaba tendo que responder. Os movimentos feministas atuais nos ensinaram a crescer no dissenso e na autocrítica e, a partir daí, promoveram um abraço amplo, polimorfo, mercurial, cujos efeitos não são pequenos em nosso cotidiano. Quando uma começa a nomear, outras seguem o passo. As insurreições têm isso: campos magnéticos que convocam e reúnem o melhor de nós. O que não conseguimos conceber sozinhas se torna possível quando alguém nos estende a mão e nos dá fôlego. Às vezes, tudo se resume a isso: tomar fôlego, respirar em uníssono, produzir ar fresco.

O invencível verão de Liliana

Capa do livro 'O invencível verão de Liliana', da autora Cristina Rivera Garza, convidada da FLIP 2025

Em O invencível verão de Liliana, Rivera Garza reconstrói o feminicídio de sua irmã, assassinada em 1990. Por meio de diários, cartas e registros pessoais, a autora devolve à vítima sua voz, sua história e sua dignidade, construindo uma narrativa comovente sobre justiça, luto e linguagem.

Autobiografia do algodão

Capa do livro 'Autobiografia do algodão', da autora Cristina Rivera Garza, convidada da FLIP 2025

Já em Autobiografia do algodão, a escritora investiga as raízes familiares ligadas às plantações de algodão na fronteira entre México e Estados Unidos. Combinando história oral, relatos íntimos e reflexão política, a obra amplia o olhar sobre desigualdade social, migração e memória.

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