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Conceição Evaristo é capa da edição de novembro de Claudia

Uma das vozes mais importantes da literatura brasileira, a escritora abre sua casa para uma conversa sobre sua escrevivência de afeto ao lado da filha, Ainá

Por Joana Oliveira
11 nov 2022, 08h09
A escritora Conceição Evaristo.
A escritora Conceição Evaristo.  (Juh Almeida/CLAUDIA)
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Quando Joana Josefina Evaristo leu Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, na década de 1960, passou a registrar num diário desde seus pensamentos até as menores ocorrências familiares e tarefas domésticas. Tomou gosto pela escrita sem imaginar que uma de suas filhas, a segunda mais velha de nove irmãos, viria a ser uma das vozes mais marcantes da literatura brasileira. Conceição Evaristo, mineira de 75 anos, não tem o hábito de escrever diariamente, mas se senta à mesa, todas as noites, com a filha Ainá, que, com lápis de cor e caligrafia caprichada, põe sobre papel palavras e desenhos que brotam em sua imaginação. Pela linha ancestral da memória que atravessa o tempo, avó, mãe e filha costuram uma vida-poema arrematada em afeto. “É impossível pensar em mim, escrever sobre mim, sem conceber Ainá”, diz a escritora laureada com o Prêmio Jabuti, em 2015, pela obra-prima Olhos D’Água (Pallas). “Ela é meu poema mais bonito”, acrescenta, sorridente, sobre sua menina de 41 anos.

Conceição usa vestido Neriage; e Ainá, Angela Brito.
Conceição usa vestido Neriage; e Ainá, Angela Brito. (Juh Almeida/CLAUDIA)

É olhando para Ainá que Conceição melhor conjuga sua escrevivência, termo que ela cunhou há quase 30 anos para dar conta da própria literatura, “dessa vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo em que vive”. A permanência de Ainá, nascida com uma condição genética que, segundo a medicina, limitaria sua existência a três meses, vibra em cada palavra da autora de Ponciá Vicêncio, Becos da Memória (ambos da editora Pallas), Insubmissas Lágrimas de Mulheres (Malê) e tantas outras obras. “Ter tido uma mãe amorosa, que comeu o pão que o Diabo amassou e deu conta de criar os nove filhos, sem nunca abandoná-los, me preparou para viver esse afeto com minha própria filha”, diz ela, com um lenço escondendo os cabelos crespos e grisalhos, recostada numa cadeira, com as pernas estiradas e os pés apoiados num banquinho. Conceição tem certeza que sua luta, ao lado da força do marido, Oswaldo Santos de Brito, falecido precocemente aos 54 anos, fizeram com que Ainá vingasse.

Conceição Evaristo trança os cabelos de sua filha, Ainá. Conceição usa vestido Neriage; e Ainá, Angela Brito.
Conceição Evaristo trança os cabelos de sua filha, Ainá. Conceição usa vestido Neriage; e Ainá, Angela Brito. (Juh Almeida/CLAUDIA)

Há pouco mais de dois anos, mãe e filha se instalaram numa casa azul e branca, com janelas de ambos os lados, enfeitadas por pequenas flores amarelas, no Morro da Conceição — e a escritora brinca que é dona do lugar —, no centro do Rio de Janeiro. Apinhada de livros, cadernos, quadros e prêmios, a sala cheira ao café adocicado pelo qual dona Conceição é famosa. Da varanda, uma pequena faixa de mar ocupa o horizonte, porque a escritora precisa morar num lugar onde se veja água. Em Maricá, no interior do Rio, onde também tem residência, é um lago próximo  que desanuvia sua vista. Se pudesse, Conceição escreveria dentro de rio. Ou numa mesa de bar. “Sem ninguém além da pessoa para me trazer cerveja. Escreveria assim noite e dia”, ri. E mesmo seu riso tem a cadência suave e pausada de sua voz. Especialmente nos finais de semana, é comum vê-la subir e descer as ladeiras do bairro da Saúde, no Rio de Janeiro, até se sentar num boteco da região conhecida como Pequena África. Se estiver tocando um samba, de mãos dadas com Ainá, ela arrisca alguns passos.

Detalhe de Conceição Evaristo na porta de sua casa, no Rio de Janeiro. O vestido é Vestido, Mônica Anjos, e o anel, acervo pessoal.
Detalhe de Conceição Evaristo na porta de sua casa, no Rio de Janeiro. O vestido é Vestido, Mônica Anjos, e o anel, acervo pessoal. (Juh Almeida/CLAUDIA)
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Conceição Evaristo é festeira. Sua assessora e amiga, Ludmilla Lis, já perdeu as contas das vezes em que teve que retirá-la, a contragosto, de confraternizações em feiras e outros eventos literários para os compromissos de trabalho. Para a escritora, festa é também resistência. Ela, que tem “fama de assassina” por matar muitas de suas personagens, foi provocada certa vez a pensar narrativas alegres para sujeitos negros. E aceitou o desafio, apesar de reconhecer que, mesmo quando concede finais felizes aos seus protagonistas, eles passam por uma saga de sofrimento anterior. “A felicidade como reivindicação política é algo mais presente na concepção de escritoras jovens. Na minha geração, ainda era muito necessária a reivindicação de direitos e a afirmação da nossa negritude”, reflete.

Não que essa necessidade tenha cessado. A autora lamenta que ainda se celebre mais a autoria branca sobre a negritude do que a escrita de negros e negras sobre sua própria vivência.

“Não à toa, Maria Firmina dos Reis escreveu o primeiro romance abolicionista do Brasil, mas Castro Alves é quem é conhecido como o ‘poeta dos escravos’”, diz, referindo-se à autora negra que será homenageada este ano na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Para ela, esse é apenas um exemplo de um tempo que não se fechou. “Essa afirmação da negritude na sociedade brasileira não está completa. O tempo todo precisamos repetir black is beautiful.”

Doces vinganças

Pode-se dizer que Conceição é uma escritora indisciplinada. Confia à própria memória as ideias que lhe vêm à mente. “Uma salva de palmas para quem anda com um caderninho na mão e anota tudo. Eu não faço isso, tenho preguiça. Acho que vou lembrar depois.”

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Uma única vez, sonhou com um poema inteiro, pronto. Acordou no meio da noite e decidiu colocá-lo no papel só na manhã seguinte. Quando abriu os olhos de vez, as palavras tinham se esvanecido. Tampouco tem muita noção de tempo. É capaz de considerar seis meses uma eternidade e escrever uma obra inteira em três ou quatro dias. “Uma coisa que ajuda meu processo criativo é que fico muito tempo matutando uma ideia. Escrevo mentalmente antes de levar para o papel. Aí, quando finalmente vou concretizar, é meio compulsivo. Fico com raiva se tenho uma interrupção corriqueira que
me faça parar”, conta. E, entre os vizinhos que batem à porta, os carros que passam pela sua rua estreita e até o vendedor que grita “Olha a vassoura, aê!”, as interrupções são muitas. “Eu teria que morar numa ilha”, sentencia.

Nada em sua obra e em sua vida, no entanto, é ilhéu. A começar por seu devotamento à educação. Ela sempre trabalhou em escolas periféricas e, hoje, é catedrática da Universidade de São Paulo (USP), além de realizar diversas palestras em outras instituições. “É uma missão política e intelectual, mas, antes de tudo, é algo que eu gosto. Tenho essa veia de professora.” Se a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie alerta sobre o “perigo de uma história única”, Conceição batalha contra um único viés de produção de conhecimento, principalmente no espaço acadêmico. Ela sabe que não está em disputa apenas o direito da fala, mas também o espaço de escuta.

“Há uma diferença muito grande entre a minha voz, enquanto mulher negra, ser escutada, assumida e pensada como verdade e de uma mulher branca que diz o mesmo que eu.” Isso ficou evidente quando, durante o processo de escrita de sua tese de doutorado, sentiu-se sufocada. Queria escrever de outra forma, mas foi subjugada pela linguagem academicista. “Fiquei revoltada.” E se refugiou, então, na ficção. “Foi quando escrevi Insubmissas Lágrimas de Mulheres, um verdadeiro ato de insubmissão. Foi um livro muito pensado e organizado, escrevi com maldade, desafiando minha própria estética e narrativa.” Uma resposta altiva de uma escritora que, como ela mesma ressalta, não nasceu do dia para a noite, apesar de só ter alcançado reconhecimento da crítica e do mercado a partir dos 71 anos.

Ao contrapor a suposta fragilidade da lágrima à força da insubordinação, Conceição construiu um retrato da solidariedade e afeição entre mulheres, principalmente mulheres negras. É essa força de união que inspira seu trabalho. E é também por isso que ela não larga a cátedra para dedicar-se apenas à escrita. Sabe que seu nome e sua presença continuam abrindo portas para outras como ela. “Meus amigos até me chamam de mentirosa, porque a cada final de ano digo que vou parar de dar aula e me dedicar só à literatura no ano seguinte”, sorri. Mas ainda pesa também o fator financeiro. “Queria poder parar só para escrever, mas não posso ainda me dar ao luxo de recusar um trabalho prazeroso que é remunerado. Tenho que pensar na minha sobrevivência, pois ainda estou construindo a possibilidade de ter algum conforto”, admite.

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Se pudesse, ocuparia um grande espaço com seu acervo de livros, pôsteres, CDs e pinturas e o transformaria num refúgio de pesquisadoras e escritoras, que contariam com sua orientação atenta e rigorosa, sempre permeada de afeto. “Gostaria de acompanhar mais de perto essa literatura contemporânea, fazer crítica literária principalmente de quem inscreve uma autoria negra na literatura brasileira. Uma autoria que alguns críticos e professores não entendem ou da qual não querem nem saber. É triste que esses jovens ainda tenham que reivindicar o mesmo que nós reivindicávamos nos anos 1980.”

Chemise e gola,ambos, Casa deAntônia porTata Melgaço,vestido e sapatos,acervo pessoal.
Conceição veste chemise e gola, ambos, Casa de Antônia por Tata Melgaço, vestido e sapatos, acervo pessoal. (Juh Almeida/CLAUDIA)

Conceição lamenta, mas persiste. Não à toa, paciência e esperança são suas palavras favoritas no léxico do português. Assim como a vingança do verbo “vingar” que, na oralidade prezada por ela, significa “crescer”, “ter êxito”, “florescer”. A literatura é sua doce vingança na vida. Enquanto morava numa favela de Belo Horizonte e estudava para ser professora, as mulheres de sua família trabalhavam nas casas de escritores e intelectuais brancos que haviam reservado para ela esse mesmo lugar. “Vez ou outra, também realizava serviços nessas casas de madames, mas meu destino na literatura foi traçado no útero materno, um destino de reviravolta que contrariou a sina predestinada desse lugar de subalternidade. Minha vida vinga de outra forma”, celebra.

É com essa postura firme e sem falsa modéstia que a escritora se considera vitoriosa também no seu pleito por uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). Em 2018, com um clamor popular sem precedentes, que causou alvoroço nas redes sociais e teve repercussão internacional, ela poderia ter sido a primeira mulher negra na instituição, mas recebeu apenas um voto dos imortais. A Cadeira 7 foi concedida ao cineasta Cacá Diegues. “Quem perdeu foi a ABL, porque era o grande momento dela provar ser um espaço democrático. Não importa se não fui a primeira negra a sentar lá, o que importa é que abri perspectivas. Porque doravante candidaturas negras e indígenas surgirão
para dar trabalho a esses intelectuais e fazer eles pensarem”, diz, celebrando na sequência conquistas como a da filósofa Djamila Ribeiro, que acaba de ingressar na Academia Paulista de Letras. “Minha geração semeou o caminho, mas é a geração dela, de Carla Akotirene [pesquisadora do feminismo negro] e tantas outras que concretizarão essa mudança”, profetiza. Enquanto isso, ela continua a escrever e se imortaliza na palavra, sua maior ambição. “Peço a Oxum, minha mãe, que fertilize minha criatividade, que ela proteja meu vento criador.” E que todas as suas palavras e a vida-poema de Conceição Evaristo nunca deixem de vingar.

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Conceição Evaristo posa em frente a uma bandeira de fotos do livro 'Becos da Memória' e outras de autoria de Juh Almeida.
Conceição Evaristo posa em frente a uma bandeira de fotos do livro ‘Becos da Memória’ e outras de autoria de Juh Almeida. (Juh Almeida/CLAUDIA)

TEXTO Joana Oliveira FOTOS Juh Almeida STYLING Faby Pernambuco BELEZA Silvia Medeiros CABELO Iris de Almeida Lyra DIREÇÃO DE ARTE Kareen Sayuri.

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