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A Máfia dos Tigres: série improvável e imperdível vira fenômeno na Netflix

Poucas vezes vimos uma série documental fazer tanto sucesso. Nos EUA, "A Máfia dos Tigres" teve um público de mais de 34 milhões de pessoas em dez dias

Por Júlia Warken, Guta Nascimento, thiagoabril
Atualizado em 11 abr 2020, 19h13 - Publicado em 11 abr 2020, 12h00
 (Netflix/Divulgação)
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Quantas séries documentais você assistiu no último ano? Possivelmente poucas, pois esse não é nem de longe o gênero mais popular nas plataformas de streaming. Recentemente, a Netflix começou a apostar em documentários sobre suas séries e filmes e, no caso de “La Casa de Papel: El Fenómeno”, isso deu muito certo.

Mas esses são casos pontuais e com uma natureza muito específica. Os documentários sobre séries e filmes são descendentes espirituais dos bom e velho conteúdo extra que a gente encontrava nos DVDs. Eles são relativamente fáceis de fazer e servem para agregar ainda mais valor ao produto principal. No caso de “La Casa de Papel: El Fenómeno” há também a vantagem, uma enorme base de fãs já consolidada.

Mas a Netflix viu surgir um sucesso muito mais improvável do que esse, a série documental “A Máfia dos Tigres” – ou “Tiger King” no título original. Trata-se do grande must watch da plataforma nos Estados Unidos e aqui no Brasil a série também caiu nas graças do público.

Ao longo de sete episódios, o documentário é centrado na história do tiger king Joe Exotic, um amante de grandes felinos que mantinha um zoológico no interior de Oklahoma, nos Estados Unidos. Absurdamente excêntrico, Joe se apresenta como sendo um red neck – nomenclatura usada para se referir a caipiras brancos, de baixa renda e geralmente conservadores nos Estados Unidos – e também não esconde que é gay. Cheio de piercings e tatuagens,  ostentando um mullet loiro e um figurino que mescla bonés de caminhoneiro com camisas dignas de um show de lambada, Joe Exotic é realmente um homem exótico.

Filmado ao longo de vários anos, a série mostra que Joe conseguiu tirar proveito de sua excentricidade. Começou gravando alguns vídeos caseiros e tomou gosto pela coisa, o que fez com que chamasse um profissional da televisão para seguir seus passos no dia a dia do parque. A empreitada culminou em um reality show exibido online. Sem papas na língua, também começou a capitalizar em cima das disputas com sua maior rival: Carole Baskin, fundadora de uma ONG que resgata grandes felinos nos Estados Unidos.

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E há muitos animais a serem resgatados, para a surpresa de quem não está familiarizado com o lifestyle dos amantes de grandes felinos nos Estados Unidos. Já no primeiro episódio da série vemos uma reportagem que diz que há mais tigres em cativeiro nos Estados Unidos do que soltos na natureza ao redor do mundo. Ter um desses animais – ou vários – em casa é um símbolo de status e há muita podridão nesse meio.

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Carole Baskin: a fundadora da ONG Big Cat Rescue é a maior inimiga de Joe Exotic (Netflix/Reprodução)

Mais do que falar sobre Joe Exotic e sua conturbada prisão – fato que nos é apresentado nos primeiros dois minutos da série – “A Máfia dos Tigres” mostra que esse lifestyle é ainda mais absurdo do que aparenta. “Quem cria macacos é um pouco diferente, eles são meio estranhos. Mas os fissurados por grandes felinos são uns merdas que apunhalam os outros pelas costas”, diz um dos empresários – a.k.a. dono de um clube obscuro de strip tease – ligados ao antigo zoológico de Joe Exotic.

De maneira ágil e sem rodeios, a série vai montando um quebra-cabeças cheio de detalhes absurdos. A sensação de “caramba, não pode ser!” se dá em diversos momentos. Nesse aspecto, conhecer mais a respeito da trama pode empobrecer a experiência de assisti-la. Nos Estados Unidos, a série explodiu justamente porque Joe Exotic já era conhecido como uma criatura pitoresca, mas não saber certos detalhes sobre a história dele gera surpresas muito maiores ao espectador. É uma soma de absurdos que só poderiam ser previstos por quem já está familiarizado com a trajetória de Joe e das pessoas ligadas a ele.

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Não é difícil perceber que o material final de “A Máfia dos Tigres” se beneficiou, em grande parte, do acaso. O documentário claramente começou a ser produzido antes da prisão de Joe Exotic, que aconteceu em 2018. “Originalmente, o programa não era para ser sobre o Joe sendo preso ou algo do tipo. Era para ser sobre o submundo dos criadores de grandes felinos. Aí ele foi preso e tudo mudou”, disse o marido de Joe, Dillon Passage, à Variety. Mesmo assim, o trabalho feito pela equipe da série é notável.

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Doc Antle, o mentor de Joe: ostentação, denúncias e múltiplas esposas (Netflix/Divulgação)

É justo dizer que séries documentais que unem crimes e personagens excêntricos são o filé do gênero. Mas não basta apenas apurar bem o material, é preciso de uma edição primorosa para unir tudo de maneira coesa e, ao mesmo tempo, instigante. “A Máfia dos Tigres” consegue fazer isso melhor do que “Wild Wild Country”, “Bandidos na TV” (ambas da Netflix) e “The Jinx” (HBO), outros bons títulos recentes do gênero. Essas três séries trazem histórias muito surpreendentes e contam com riqueza de detalhes, mas pecam no ritmo da narrativa.

Ao final, “A Máfia dos Tigres” consegue ser um ótimo entretenimento, ao mesmo tempo em que faz refletir sobre uma série de temas como crueldade com animais, obviamente, mas também sobre ostentação, discurso de ódio, a busca pela fama a qualquer custo e a construção de imagem na era das redes sociais.

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Outra boa notícia é que a série está fazendo tanto sucesso que pode até mesmo alavancar outros documentários. Para se ter uma ideia de como só se fala nela nos Estados Unidos, na última quinta-feira (8), Donald Trump foi questionado a respeito da possibilidade de uma revisão na pena aplicada a Joe Exotic – que pegou 22 anos de prisão. Isso aconteceu depois que seu filho, Donald Trump Jr., declarou que a sentença lhe parecia “agressiva demais”.

A realização de um documentário exige muita dedicação e entrega. Isso também se aplica ao gênero da ficção, mas muitos documentaristas ainda têm que basicamente arriscar suas vidas na hora de colher material e de revelar ao público fatos espinhosos sobre os personagens retratados. Em contrapartida, documentaristas independentes penam para ganhar dinheiro com o que fazem, uma vez que o gênero costuma não dar audiência.

“Cowspiracy” é um bom exemplo disso. Realizado de maneira independente, o filme expõe grandes corporações e até mesmo ONGs. Além disso, fala de um assunto polêmico que desagrada a maior parte da sociedade: os malefícios da indústria da carne. O diretor Kip Andersen realizou um ótimo trabalho de apuração, mas foi Leonardo DiCaprio quem conseguiu fazer com que o filme chegasse ao grande público.

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Como produtor-executivo, o ator não apenas colocou dinheiro no projeto, mas também gerou um senso de credibilidade em relação ao que é falado no filme. Desde 2015, “Cowspiracy” integra o catálogo da Netflix e chegou a gerar um certo buzz junto ao público. Em 2017, a plataforma também comprou os direitos de exibição de “What The Health”, dirigido por Andersen, mas o filme não atingiu o mesmo hype do anterior.

E esse é justamente o x da questão: o hype. Por mais que as plataformas de streaming contem com um número decente de documentários em seus catálogos, elas obviamente estão atrás de produções que caiam no gosto do público. Felizmente, há um outro fator determinante para que a Netflix tenha um carinho especial por documentários, mas ele só se aplica a filmes: o Oscar. É muito mais barato conseguir uma estatueta com documentários do que com filmes de ficção.

Em 2014, “The Square” rendeu à Netflix sua primeira indicação ao Oscar. Em 2017 veio a primeira vitória, através do curta-metragem “Capacetes Brancos”. 2018 foi o ano em que “Ícaro” tornou-se o primeiro longa da plataforma de streaming a vencer o prêmio. Desde 2014, a Netflix emplaca documentários na lista do Oscar todos os anos, somando 15 indicações e quatro vitórias. Só que o público em geral sequer ouviu falar da maior parte deles*.

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Segundo informações da Variety, “A Máfia dos Tigres” foi assistida por mais de 34 milhões de americanos durante os dez primeiros dias de exibição. Lançada em 20 de março, a série teve uma ajudinha da quarentena para alcançar esse número, mas uma coisa é certa: depois que o play é dado, se o conteúdo não conquista o expectador, ele irá assistir outra coisa. E não foi isso que aconteceu, como sabemos.

E a história não para por aí. Nessa quinta-feira (9), a Netflix anunciou que vai lançar um episódio extra da série. Batizado de “The Tiger King and I”, ele vai funcionar no esquema de after show e mostrar entrevistas de personagens ligados a Joe Exotic contando como a vida deles mudou depois do lançamento da série. Esse episódio será lançado no próximo domingo (12).

Seria o boom de “A Máfia dos Tigres” o pontapé para que os documentários sejam mais apreciados pelo grande público? Ainda é cedo para dizer, mas pode ser esse sucesso todo inspire mais investidores e que os documentaristas sejam mais valorizados – desde os que contam histórias interessantes até os que correm risco de vida para expôr injustiças.

 

* Esses são todos os documentários da Netflix que foram indicados ao Oscar: “The Square” (2014), “Virunga” (2015), “O Que é Isso, Miss Simone” (2016), “Winter on Fire” (2016), “A 13ª Emenda” (2017), “Os Capacetes Brancos” (2017), “Extremis” (2017), “Ícaro” (2018), “Strong Island” (2018), “Heroína(s)” (2018), “Absorvendo o Tabu” (2019), “A Partida Final” (2019), “Indústria Americana” (2020), “Democracia em Vertigem (2020) e “A Vida em Mim” (2020).  

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