Shoshana: o resgate do último restaurante judaico do Bom Retiro
Reaberto por três amigos e mais de 20 minissócios, o restaurante de culinária judaica retorna à ativa depois de um (quase) último respiro
Quando recebeu a notícia de que seu restaurante predileto fecharia as portas, Benjamin Seroussi não conseguiu parar de pensar em soluções para impedir o acontecimento. Com uma ideia fixa na mente e muita vontade de arregaçar as mangas, imediatamente ligou para os amigos Arthur Hirsch e Ines Mindlin. Foi assim que o trio se tornou líder do Shoshana Delishop, o último restaurante judaico do bairro Bom Retiro, em São Paulo.
Inaugurado em 1991 pelo casal Shoshana (que significa Rosa em hebraico) e Adi Baruch, o Shoshi, seu nome anterior, foi um espaço para apreciar clássicos da cozinha judaica, mas mais do que isso, era um reduto da comunidade que ali vivia. “Meu pai veio da Romênia, e aqui foi um local que frequentei desde a infância. Assim que o Benjamin me disse que iria fechar, topei participar desse resgate. O Shoshana sempre foi a representação de um lugar onde a cultura vive, e até difícil de explicar, mas quando pequeno, era aqui que encontrávamos a comunidade, tudo proporcionado pela gastronomia”, relembra Arthur.
Com o passar dos anos, as dificuldades financeiras e o falecimento do marido, dona Shoshana — que é israelense e chegou ao Brasil em 1987 — acabou perdendo o ânimo para lidar com os afazeres que o dia a dia de um negócio gastronômico exige. Assim, com o encerramento do empreendimento, ela enxergou a oportunidade de dar continuidade à história de sua família com a energia vinda dos três jovens.
“A ideia não era fazer um supernegócio, mas algo com relevância. O cenário mudou muito no bairro. Ao mesmo tempo que a cultura gastronômica cresceu, houve um descompasso em relação a como você apresenta a culinária judaica”, diz o sócio.
“É emocionante pensar que este é o último restaurante judaico da região. É um meio de preservar a história, e história é política, é falar ‘estou aqui’. Senão você é engolido pelos horrorosos”
Clarice Reichstul
Para viabilizar o negócio, Benjamin (gestor cultural da Casa do Povo), Ines (ligada a projetos comunitários) e Arthur (sócio da Carlos Pizza) recorreram à solução de um empreendimento coletivo. Além dos sócios majoritários, 22% das ações do restaurante pertencem a um grupo de 22 minoritários. “Formamos uma comunidade que agrega pessoas que se identificam com o projeto. A aceitação foi ótima, porque não se trata de uma doação e, sim, da possibilidade de fazer parte de verdade”, conta Arthur.
Inaugurado em setembro deste ano, o Shoshana Delishop foi repaginado por inteiro, do ambiente físico ao cardápio, mas com o cuidado de manter as raízes e seguir sendo ponto de encontro dos moradores do bairro. A vinda de Clarice Reichstul foi pensada justamente para conquistar esse ponto de equilíbrio entre o passado e o futuro. A chef, que também comanda o serviço de buffet Paca Polaca, foi convidada para repensar o menu.
“Sempre busquei entender minhas origens, inclusive a partir das receitas que minha avó fazia e que aprendi com ela. Então, vim pensando no que poderia desenvolver, porque a diáspora judaica é muito extensa, a graça foi trazer pratos de todo lugar: Tunísia, Índia, dos judeus chineses… É uma delícia fazer esse processo de unir pesquisa, história e geografia”, conta a cozinheira.
No dia a dia, quem toca a cozinha é a chef e consultora gastronômica Graziela Tavares. Os pratos demasiadamente fartos de antigamente dão espaço para opções mais enxutas e leves, como a borscht, uma sopa de beterraba classificada pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Ucrânia. No restaurante, a receita é uma versão da avó de Clarice e leva beterrabas caramelizadas, podendo ser apreciada quente ou fria.
“Tudo o que eu fizer será diferente da Shoshana, pois somos pessoas diferentes. Se o cliente vier aqui e gostar da comida, vai dizer ‘maravilhosa a receita da Shoshana’, mas, se não gostar, vai falar que a dela era muito melhor. Então, como o crédito vai ser sempre dela, eu me dei conta de que poderia fazer aquilo que quisesse. A Graziela e eu tínhamos a vontade de deixar essa comida, tradicionalmente pesada, mais leve. Não em relação ao sabor ou gordura, mas de você poder almoçar e trabalhar depois, sem desmaiar”, brinca Clarice.
Símbolo da culinária judaica, o arenque marinado é um peixe pequeno caracterizado pela carne gordurosa. No cardápio desenhado por Clarice, ele surge numa entradinha com salada de brotos e pão de centeio. Ainda no clima de compartilhamento, os latkes (bolinhos de batata ralada) podem ser mergulhados em diferentes molhos, como maionese vegana de cerveja e zhug (molho de coentro e pimenta típico do Iémen).
Dos clássicos de dona Shoshana, a língua de boi se manteve no cardápio e é uma das receitas campeãs da memória afetiva dos frequentadores: é servida com varenikes, massa semelhante ao ravioli, recheado com batata e coberto com cebola frita.
Já o pudim é uma receita que ela aprendeu a fazer com a avó e guarda a sete chaves. Segundo os burburinhos que rondam o local, o doce leva apenas leite, açúcar e ovos — nada de leite condensado. “Shoshana me cedeu a receita ipsis litteris, mas se ela comer, vai dizer que a dela é melhor, é claro”, diz Clarice. E quem ousa discordar?