Há poucas semanas, uma polêmica rondou a Internet: uma famosa reclamou que estava muito difícil viver no Brasil porque tudo era sobre ativismo, que ela não podia postar fotos dos filhos porque tinha que falar da Amazônia e citava outra famosa para dizer que essa última vivia mandando mensagens em grupos de whatsapp sobre questões ativistas. Eu queria falar sobre poesia e escrever um poema que fiz esta semana, de tanto amor que senti e vivi na minha última viagem, quando conheci o Equador e por lá me apaixonei. Eu queria falar sobre como eu me senti emocionada quando vi que em uma loja de quinta nos Estados Unidos havia mais de vinte e tantos tons de base, compreendendo toda a diversidade de peles femininas – e masculinas também, porque sei que tem as monas e manos que gostam de make. Mas não dá. A polêmica recente, que vou chamar de “polêmica do biquíni”, foi justamente sobre isso: sobre o que a gente até quer falar, mas que o mundo acaba nos puxando para outros temas.
Olha, eu queria deixar bem explícito: eu adoro praia. E eu posto sim fotos de biquíni no meu Instagram. E, ao mesmo tempo, posto fotos de minhas palestras por aí sobre feminismo. Não é que eu ache que postar foto de biquíni seja pouca coisa. Em uma sociedade que determina padrões para o nosso corpo, postar foto de biquíni pode ser uma coisa bem importante para diversas meninas que se sentem mal sobre seus corpos todos os dias. Mas acho que, no fundo, a discussão era sobre o direito ou não de ficar ignorante em relação ao mundo. Na lata! E eu acho, de verdade, que direito a ficar alheio ao mundo pode até ser um direito – no pleonasmo mesmo. Mas a questão é se a gente deve ficar alheio ao nosso entorno. E daí que pensar sobre isso me levou a uma outra reflexão: nós mulheres estamos mesmo em um nível tão perfeito de igualdade de direitos para brigar em rede social sobre ficar alheias ao mundo?
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Eu até acho que uma parte vai avaliar que a gente está sim em um nível bem considerável de igualdade de direitos. E eu não vou ser absurda e dizer que não temos direitos nenhum. Mas eu queria contar sobre um encontro que eu participei: de mulheres de toda a América Latina e Caribe que se reuniram para trocar e discutir os Sistemas de Justiça no continente e seus impactos em nossas vidas. O encontro aconteceu no Equador e reuniu centenas de mulheres de praticamente todos os países latino-americanos e caribenhos. E a gente foi conversando sobre nossas realidades em nossos países. O que mais me tocou foi o relato de uma mãe indígena boliviana. Sua filha foi espancada pelo namorado. Após voltar para casa do hospital, ela teve uma hemorragia e veio a óbito, deixando uma filha pequena. Hoje, a netinha é o que move aquela senhora. Mas ao denunciar o agressor, o mesmo não foi processado por feminicídio. Segundo o Sistema de Justiça daquele país, e os sistemas de saúde, a filha daquela senhora faleceu em decorrência da hemorragia e não dos ferimentos que provocaram a hemorragia. O agressor segue livre. E há uma voz em lágrimas e sofrimento lutando para que seja feita justiça.
Verdade, eu não posso negar que as mulheres estão no mercado de trabalho, que a gente pode ir em uma balada dançar com as amigas. Mas podemos todas? Aliás, quem teve que lutar pelo direito de acessar o mercado de trabalho, já que mulheres negras e indígenas sempre trabalharam na história do nosso país? E todas nós podemos ir em uma balada dançar com as amigas? A gente ganha o mesmo que um homem quando a gente exerce o mesmíssimo trabalho? As pesquisas mostram que não. As pesquisas mostram que mulheres recebem 30% menos do que um homem exercendo o mesmo tipo de trabalho, nas mesmas horas de trabalho. Se a gente fizer o recorte racial, a coisa piora: as mulheres negras chegam a receber 70% menos do que um homem branco exercendo a mesma função e o mesmo número de horas trabalhadas. Isto são dados oficiais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA, um dos mais reconhecidos e sérios do país.
Um dado assustador para nós: segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídio. Uma mulher é assassinada a cada duas horas no nosso país. E houve um aumento de 12% no número de registros de feminicídios. É verdade que o número pode indicar um avanço na padronização dos casos, já que o número de homicídios dolosos de mulheres diminuiu 6,7% – estes são dados do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mas não te assusta o fato de sermos uma das nações mais violentas contra as mulheres? A gente alcançou mesmo a igualdade e não tem mais pelo que lutar quando os números mostram que a gente ainda sofre violência pelo simples fato de sermos mulheres, de sermos mulheres negras, de sermos mulheres indígenas, de sermos mulheres muçulmanas, etc?
Daí eu volto para a “polêmica do biquíni”. A gente super pode e deve postar foto de filho, gato – eu apenas amo os gatos e o cachorro de casa e estamos, eu e minhas irmãs, pensando em adotar um peixe –, cachorro, pernas para o ar e afins. Mas dá para gente simplesmente só falar disso? Porque, amiga, como não falar sobre a violência contra as mulheres quando qualquer uma de nós pode passar por isso? Eu gosto muito de uma socióloga chamada Heleieth Saffioti e ela tem um estudo maravilhoso sobre violência contra as mulheres. Neste estudo, ela apresenta a violência contra nós como das violências mais democráticas: ela atinge mulheres de todas as cores, credos, idades e classes sociais. Mas ela também mostra que conforme vão se combinando as nossas diferenças, por exemplo se você é uma mulher negra ou indígena ou cigana, há gradações nesta violência e nas possibilidades que temos de sair dela, de nos livrarmos e nos protegermos dela. Certamente, uma mulher que tem seu próprio emprego e autonomia, que tem um grau de instrução maior, tem moradia digna, etc., que se compreende inteira em si mesma, terá maiores condições de romper com a violência que sofre diferente de outras mulheres em situações muito precárias de vida. E a questão é: a gente que está um pouquinho melhor, e isso é bastante volátil também, pode não ser solidária com as outras mulheres? Poder até podemos. Mas a gente deve? De novo: essa violência pode atingir qualquer uma de nós.
Então, assim, para fechar a coluna de hoje, mas não o debate: posta a foto de biquíni sim. Mas posta também que você não aceita violência contra as mulheres, que você não aceita abuso sexual e infantil, que você não quer que destruam a natureza e poluam os rios, porque tudo isso é sobre você também, é sobre estar aqui e querer dignidade para você e para todo mundo, é sobre ter empatia e ser solidária, é sobre viver em um mundo melhor. #BiquíniSim #ViolênciaNão
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