São Paulo, 21 de abril de 2020.
“As notícias do mundo inteiro, e no país também, são tão ameaçadoras, tão à beira de alguma coisa alarmante (bolsas despencando, bancos falindo, políticos metidos em assustadoras falcatruas, crimes medonhos, esquadrões da morte a cada dia mais organizados, execuções sumárias, terrorismo, sequestros, estupros, mulheres – uma a cada minuto – entre quinze e vinte e quatro anos contaminadas pela Aids, doenças horrorosas e novíssimas, lepras fulminantes, etc. etc. etc.), que acho mais adequado e sábio dar seguimento à estória de Zefona.”
Hilda Hilst. Domingo, 12 de março de 1995
A epígrafe de Hilda Hilst poderia bem ser o início de uma crônica sobre os tempos atuais, incluindo-se a pandemia. E início com ela para dar conta de que, como fez a escritora em 1995, poderia falar sobre todas as assustadoras notícias dos tempos atuais, mas que prefiro falar de Hilda Hilst. Já aviso: não coloque tanta expectativa no texto que segue, porque nada mais é do que minha declaração de amor à escritora que deu banana aos editores em “um ato de agressão” ao lançar o O caderno rosa de Lori Lamby, em 1990.
Desde 2005, o dia 21 de abril ganhou outros significados para mim. Era uma estudante de Letras, imersa na literatura e língua greco-latina e com vontade gigante de ampliar meu horizonte literário. E lá pelo saudoso “precipício” – lugarzinho em um canto do gramadão da faculdade, no topo de uma escada que levava a outro gramadão meio várzea, esse último carinhosamente apelidado pelos alunos de “florestan”, homenagem ao sociólogo Florestan Fernandes e com a piada embutida no truquezinho da palavra, tão típica de estudantes de Letras –, que reunia uma turma alternativa, um amigo me apresentou Hilda Hilst. Um caminho sem volta.
Ao mergulhar no denso A obscena senhora D, com a perfeita coincidência de ter sido lançado no ano de meu nascimento, não tive mais forças, nem vontade, de sair do mar hilstiano. Da reflexão filosófica de Hillé, passei para a poesia de Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), suas discussões sobre esquecimento e memória. E daí, não parei mais. Sempre me encantou a escrita de Hilda Hilst, pelo seu profundo conhecimento lírico e literário. Agora, estou envolta na revisita às suas crônicas.
Em uma entrevista de 1990, uma peça interessante na compreensão das dimensões da escritora, Hilda Hilst se posiciona de forma ácida e, a meu ver, é imensamente atual. Não vejo desinteresse ou indiferença da poeta, quando apresenta sua agressão como uma “ação vigorosa” para que as pessoas acordem, quando questiona um país que olha para fora, que admira quem pensa em alemão e inglês, mas marginaliza quem pensa a partir de onde mora a cabeça e os pés pisam. Hilda Hilst, como toda escritora e escritor, queria ser lida por todos e em todos os lugares, do avião ao banheiro, e não apenas bem criticada em círculos especializados. E como a própria dizia, seus textos pornográficos, obscenos, também são perpassados pelo tema que atravessa toda a sua obra, o sagrado.
Esse foi um dos motivos maiores do meu amor por Hilda Hilst, ao tratar a palavra como sagrada. E, portanto, sua relação com ela transcendia e se praticava com liberdade. Hilda Hilst não negava certo efeito repugnante em sua escrita erótica e afirmava, creio que com uma dose de ironia, esse apreço que editores e o grande público tinham diante do “lixo” e do “repugnante”. Um ponto importante para a memória é que sua estreia na escrita pornográfica, em que ela se apresentava no desejo de se transformar em uma “grande pornógrafa”, é de um período de febre dos romances eróticos com títulos em nome próprio que fizeram imenso sucesso nos anos 1980 e 1990, que eram vendidos em bancas. Sem contar a rebeldia de se lançar em um universo da escrita dominado por homens. Em Contos de Escárnio: textos grotescos, Hilda Hilst escreve como flechada: “Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. Sempre sonhei ser escritor. Mas tinha tal respeito pela literatura que jamais ousei. Hoje, no entanto, todo mundo se diz escritor. E os outros, os que leem, também acham que os idiotas o são. É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha? A verdade é que não gosto de colocar fatos numa sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim. ”
A identificação com a escritora foi certa e rápida. Seja pela densidade de seus escritos, seja pela sua liberdade interpretada por muitos como devassidão. Esse exercício de viver com a letra como divino, da escrita como fluxo e com a vida como expressão são inevitavelmente apaixonantes em Hilda Hilst, que completaria 90 anos hoje.
Há quinze anos que os dias 21 de abril mudaram totalmente para mim. E acho egoísta de minha parte se não dividir isso com você. Aproveite essa quarentena e aceite esse convite: leia Hilda Hilst!
Acompanhe o “Diário De Uma Quarentener”:
01/04 – A rotina do isolamento de Juliana Borges no “Diário De Uma Quarentener”
02/04 – O manual de sobrevivência de uma quarentener
03/04 – Permita-se viver “o nada” na quarentena sem culpa
06/04 – O que a gente come tem algo a ver com as pandemias?
07/04 – As periferias e as mobilizações na pandemia
08/04 – Um exemplo de despreparo em uma pandemia
09/04 – Como perder a noção do tempo sem esquecer a gravidade dos tempos
10/04 – Não é hora de afrouxarmos o distanciamento. Se você pode, fique em casa!
11/04 – 3 filmes para refletir sobre a pandemia da Covid-19
12/04 – Nesta Páscoa, carrego muitas saudades. Hoje, minha mãe completaria 54 anos
13/04 – Obrigada, Moraes Moreira!
14/04- E aí, quais são as lives da semana?
15/04 – Como praticar autocuidado radical?
16/04 – #TBT da saudade do mar
17/04 – Precisamos falar sobre a pandemia e violência contra as mulheres
18/04 – Mulheres na política fazem a diferença também no combate à pandemia
19/04 – Quem cuida de quem cuida?