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Diário De Uma Quarentener

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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.
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E quem aqui é louco?

Na Grécia Antiga, loucos eram percebidos mitologicamente, como manifestantes de forças divinas e inseridos na dinâmica cotidiana

Por Juliana Borges
Atualizado em 18 Maio 2020, 21h38 - Publicado em 18 Maio 2020, 21h34
 (Klaus Vedfelt/Getty Images)
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São Paulo, 18 de maio de 2020

Em Holocausto brasileiro, de Daniela Arbex (editora Geração, 2013), o prefácio de Eliane Brum faz uma afirmação instigante “os loucos somos nós”. Para muitos, pode soar absurdo uma afirmação nesse sentido, quando estamos diante de um livro que retrata a situação de um hospital psiquiátrico brasileiro. No senso comum, loucos são pessoas difíceis de serem lidas, acompanhadas e de se conviver.

Então, por que questionar hospitais psiquiátricos? O livro de Daniela Arbex vai nos apresentando uma realidade indigesta e que deveria indignar, no mínimo, todos nós. A ideia que alude ao holocausto também expressa a afirmativa indignada do médico psiquiatra Franco Basaglia, dos principais nomes na luta antimanicomial, quando veio ao Brasil, em 1979, e conheceu as instalações de vários hospitais psiquiátricos, mas especificamente a do Hospital Colônia, de Barbacena/MG, ao dizer “estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta.” Segundo esse belo estudo de Arbex, cerca de 60.000 pessoas morreram no Colônia, sendo que 70% não apresentavam diagnóstico de doença mental e a maioria foi internada à força. É um livro difícil, mas importantíssimo de se ler para compreendermos as veias complexas da loucura humana, não dos que são considerados loucos. Mas do quanto a ação e tratamento em relação àqueles são, na verdade, reflexo do que somos como sociedade.

A concepção sobre a loucura, ou sobre quem consideramos louco, mudou muitas vezes pela história. Na Grécia Antiga, por exemplo, loucos eram percebidos mitologicamente, como manifestantes de forças divinas e inseridos na dinâmica cotidiana. Já no período medieval, há uma inversão nessa percepção, e os loucos passam a ser vistos como relacionados às forças malignas, submetidos à ordem religiosa e aos exorcismos e uma série de outras penitências, porque vistos como hereges. No renascimento, a loucura ganha outros formatos, como algo que precisa ser limpo e posto longe. No século XVIII, no ocidente, a loucura passa a ser vista como transtorno, como um atentado à razão e, portanto, ao caminho da verdade. Loucos são vistos como pessoas alteradas e desarrazoadas e altamente periculosas. Na era industrial, inicia-se um processo que o filósofo Michel Foucault chamou de “grande internação”, com a loucura sendo objeto de punição pela ociosidade, já que loucos rompiam a ideia de funcionalidade do corpo ao trabalho, como quem abandona a razão e o bem e as doenças mentais como degradações morais. Neste sentido, as internações visavam uma suposta cura. Nascia, então, o manicômio. E, no século XX, essas instituições ganham contornos de um isolamento abandonado, submetido a maus tratos. Até que se passa a questionar esse tipo de tratamento nos anos 1970, com mais força, em nosso país.

Nos anos 1960, o psiquatra Franco Basaglia, já citado aqui, apresenta a ideia de “Psiquiatria democrática”, argumento que o isolamento poderia ter efeito contrário e agravar a condição dos pacientes. A proposta envolve, então, atendimentos terapêuticos em centros comunitários, tratamento ambulatorial, centros de convivência e nega a prática da cultura médica, que tem no paciente apenas um objeto de observação. E, em 1978, na Itália, é aprovada a Lei 180, de reforma psiquiátrica, que exerceu uma influência importante nas lutas aqui realizadas no Brasil e na proposta de reformulação do nosso sistema psiquiátrico.

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O movimento de luta antimanicomial surge no Brasil junto às lutas por redemocratização, buscando diálogo e conscientização da sociedade no entendimento de que pessoas que desenvolvem algum transtorno mental, ou estão em sofrimento mental, são sujeitas de direitos e não devem ser consideradas menos cidadãs. Também não representam perigo à sociedade. A proposta é de que precisamos construir outra compreensão da sociedade, na qual não vamos o diferente como desigual ou como ameaça, mas apenas pessoas que tem outros modos de ver, sentir e se presentificar no mundo.

Em 1987, aconteceu no Brasil a 1a Conferência de Saúde Mental, em Brasília, sob o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. A reunião de diversas organizações e pessoas comprometidas com mudanças profundas em como lidamos com problemas de saúde mental aconteceu no dia 18 de maio, centrando a crítica às internações e denunciando as graves violações de direitos em hospitais psiquiátricos brasileiros. Por isso que, desde então, essa é a data da luta antimanicomial.

As premissas são básicas, mas fundamentais de serem repetidas e reivindicadas: direitos às pessoas que passam por algum transtorno ou sofrimento mental; o combate ao isolamento e a tratamentos duvidosos de cura; de que todos tem direito à liberdade, de receber cuidados devido, quando necessário, sem jamais serem considerados menos cidadãos por isso. Em 1990, duas leis federais são aprovadas (Leis 8.080/90 e 8.142/90), que instituem uma rede de atenção à saúde mental. A principal demanda é de que o Estado brasileiro não possa mais construir nem contratar serviços de hospitais psiquiátricos e substituir atendimento por serviços psicológicos e com atividade de lazer e convivência. Em 1992, criou-se o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), uma estrutura pública, que prevê tratamentos não-intensivos, semi-intensivos e intensivos e que avaliam a necessidade ou não de internação, com prazos curtos. Os CAPS devem garantir atendimento individual, terapias envolvendo rodas de conversa, oficinas artísticas e tratamentos terapêuticos individuais e em grupos.

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Duas questões importantes da luta antimanicomial são sobre combater a medicalização da loucura e de transtornos mentais e, principalmente, sobre dar voz às pessoas.

Em recente estudo da empresa Funcional Health Tech, apresentou-se que o consumo de medicamentos para controle de depressão e ansiedade teve um aumento bem impressionante entre jovens sendo, em geral, 7, 32% e, entre jovens de 15 a 17 anos, um aumento de 21, 31%. Se saímos dos manicômios, entramos no controle por uma sociedade cada vez mais medicalizada, o que impacta na nossa capacidade de suportar desafios e dificuldades. Veja, não estou aqui advogando contra medicamentos. Acredito que há situações em que eles são realmente necessários. Mas estou questionando um aumento exponencial em seus usos, quando deslocamos como “o louco” deve ser tratado sob um suposto discurso de cuidado. Aliás, estou o tempo todo aqui questionando a nossa ideia sobre loucura.

O Brasil é o país mais ansioso e estressado da América Latina, segundo a Organização Mundial da Saúde, com cerca de 5,8% de sua população sofrendo depressão, ansiedade ou algum transtorno mental. Muito disso se baseia na ideia equivocada de que todos temos que ser felizes o tempo todo e que todos deveríamos perceber e viver o mundo sob os mesmos códigos. Mas somos intensamente diversos como seres humanos. Mas ao pensarmos loucos ou pessoas que não se encaixam como pessoas que devem sofrer todo tipo de intervenção, seja física com a internação, seja psíquica com a medicalização, estamos apenas deslocando a ação sobre a loucura e não, exatamente, compreendendo nossa diversidade e garantindo que as pessoas, nessa imensidão, sentirão o mundo de outras formas e que merecem seu reconhecimento e interação em dinâmicas cotidianas e em sua integralidade.

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Para além de hoje ser o dia da luta antimanicomial, esse tema me chama a atenção, seja porque eu convivo com a ansiedade, mas principalmente porque recebi a notícia de que ontem, em plena data tão importante quanto – o dia internacional de luta contra a homofobia, instituído pela Organização Mundial da Saúde pela retirada da homossexualidade da CID – um jovem negro e transexual resolveu por nos deixar, diante de imenso sofrimento e pressão psíquica por conta de sua orientação sexual. Eu não conhecia, apesar de descobrir depois que ele me acompanhava nas redes. Mas não importa se eu o conhecia ou não. O impacto da notícia, enquanto eu refletia sobre as duas datas, me pegou.

Das duas uma, ou medicalizamos ou não damos ouvidos às pessoas que vivem diferente de nós e não respondem ao convívio social como “o esperado”. E essa é uma questão que precisamos discutir cada vez mais, que devemos nos apropriar porque diz respeito a uma série de pessoas que conhecemos. Vamos ignorar isso tudo até quando? Vamos aprender a integrar sem padronizar quando? Essa série de padrões, de uma ideia fantasiosa de “normalidade” tem impingido imenso sofrimento em várias pessoas. Esse nosso descaso à vida do outro têm impactado em desumanizações, como eu já disse aqui no diário, não só em relação a quem é vitimado por isso, mas também a quem desumaniza. Já que você não é mais humano do que aquele que você violenta. Pelo contrário.

Nesses tempos, já podemos perceber um aumento em pessoas ansiosas, deprimidas, em muitas que serão consideradas loucas. E o que é essa loucura? Te tirar da sua zona de conforto? Acho que temos de compreender que se todos passamos pelo difícil, muitas serão as possíveis reações a esses tempos e que precisamos, de novo, encontrar respostas de modo coletivo a isso. Por que negarmos o diferente e o hierarquizarmos? Isso faz bem a quem? Talvez, à indústria farmacêutica. A gente bem que deveria desconstruir essa necessidade de sempre termos que ganhar com alguma coisa e aceitar simplesmente sentir e viver os dias sem essa cobrança do “positivo”. Porque nem sempre é assim. E tá até difícil de ser.

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Pense sobre isso. E, se você estiver se sentindo só, melancólico, com picos de euforia seguidos de imensa tristeza ou vazio, procure ajuda. Você merece apoio.

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