São Paulo, 24 de agosto de 2020
Nessa semana, saiu uma chamada de jornal que me deixou reflexiva ao apontar que nosso país ganhou cerca de 600 mil novos empreendedores durante a pandemia. Em um primeiro momento, poderíamos ler aquela chamada com um tom de alívio, já que isso significa dizer que pessoas estão decidindo investir durante a crise. Será isso mesmo? Somos uma nação de empreendedores ou estamos mascarando, na verdade, uma nação de desempregados que se viram para sobreviver?
Essa que vos escreve, estaria nesse mar de “empreendedores” brasileiros, se adotássemos a ótica do jornal, já que a dinâmica cotidiana me fez ser um CNPJ, mesmo que o meu maior desejo no momento fosse por estabilidade, trabalhar de segunda a sexta por 9h, plano odontológico e vale-alimentação. Me parece até sarcástico, um tanto sádico, falar em um país empreendedor quando vemos a informalidade voltar a crescer ano a ano no país. Vejam só, no trimestre de novembro a janeiro de 2020, os informais chegavam a 40,7% da população de trabalhadores. Os empregados sem carteira assinada tiveram um aumento de 3,7% e o número de trabalhadores por conta própria, que chamam de informais, teve alta de 3,1% (um contingente de 24,6 milhões de pessoas, com incremento, portanto, de 745 mil pessoas).
Um tanto cômico chamar de empreendedor quem não teve saídas para viver e precisou dar conta de um “negócio” próprio, em um cenário de crise econômica, que se agravará no próximo período. Não estou dizendo que entre esses 24, 6 milhões de pessoas não existam os que, de fato, decidiram por empreender. Mas, para mim, empreender significa outra coisa bem diferente de “estratégias de sobrevivência”.
Ano passado, foi lançada a pesquisa Trajetórias da informalidade no Brasil contemporâneo, pela Fundação Perseu Abramo. Sob a supervisão e coordenação das sociólogas Ludmila Abílio e Léa Marques, a pesquisa estudou 8 estados, das 5 regiões do país, com enfoque em trabalhadores das áreas da construção civil, confecção, manicures, ambulantes, domésticas e motoboys/mototaxistas. O que se verifica na pesquisa – e eu colocarei o link para acessá-la ao final – é que os trabalhadores informais passam por jornadas de trabalho estafantes, de no mínimo 10h diárias, sem o dia de descanso resguardado. Ou seja, uma situação de instabilidade permanente. As próprias pesquisadoras apontaram que os entrevistados até gostariam e prefeririam a formalização, garantindo os direitos e salários dignos para se sustentarem e a seus familiares. Como afirmou Ludmila Abílio, não se trata, portanto, de empreendedorismo, mas de “gestão de sobrevivência”.
Em um cenário pandêmico, como falar que há 600 mil pessoas empreendendo, quando, em verdade, há 600 mil pessoas se virando nos trinta para garantir suas vidas? Veja, uma coisa é você ter um sonho, poupar um dinheiro, estudar mercado, investir nesse sonho com alguma folga e estratégias de venda e gestão. Outra, bem diferente, é você começar a vender bolos porque perdeu seu emprego na pandemia e precisa pagar o aluguel no final do mês ou garantir a comida no fogão. A socióloga Léa Marques, da pesquisa já citada, afirmou “sob empreendedorismo individual o que se verifica é o antigo padrão de trabalho informal, com jornadas de trabalho longuíssimas, de mais de 10h por dia, péssimas condições de trabalho, especialmente quanto à saúde e riscos de vida a que esses trabalhadores se expõem, e sem nenhum direito trabalhista”. A isso, poderíamos pensar no futuro, se pensarmos em previdência… Qual a perspectiva de futuro que estamos garantindo às pessoas?
Nós falamos bastante por aqui sobre o valor à vida. Como pensar em valor à vida se o presente é instável e se o futuro sequer é vislumbrado? E estamos chamando isso de empreendedorismo? Me parece mais um verniz e romantização da precarização da vida das pessoas. Com certeza, não seria uma manchete tão promissora. Mas acho que somos grandinhos e já passou da hora de enfrentarmos nossos problemas reais, não?
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