A distância é passageira e um ato de amor
Acalme o coração, veja o sorriso dela pela tela do celular. A distância imposta pelo vírus não impede que sua mãe lhe repita as frases clássicas
Esse é o segundo Dia das Mães que passo sem minha mãe. O primeiro, foi imensamente doloroso. Esse foi atravessado pelo início difícil e um final saudoso.
Além das frases clichês de muitas mães, como “se eu for aí e achar…” ou “leva um casaco”, uma das frases que eu mais gostava de minha mãe e que me lembrei hoje – ironicamente hoje e nesses tempos – era proferida em algumas dentre as poucas discussões que tivemos em minha adolescência: “Isso não é uma democracia”. O que eu acho mais interessante nessa frase é que ela parecia absurdamente artificial quando dita por minha mãe, que era, se não o oposto – não há como dizer que mães são democráticas –, mas uma pessoa que caminhava para o sentido da compreensão das características únicas que eu e minhas irmãs temos. Um exemplo era quando as pessoas questionavam meu isolamento, meu jeito quieto e leitor de ser. “É o jeito dela”, minha mãe dizia. Ou quando uma professora da pré-escola tentou fazer com que minha irmã se tornasse destra e minha mãe foi até a escola dizer que minha irmã escreveria com a mão que quisesse. Ou como quando ela comentava comigo, geralmente rindo, acerca da impetuosidade e fortes opiniões que minha irmã mais nova tem desde pequena. E, por isso, sempre que eu teimava com alguma coisa e ela dizia que aquela nossa relação não era democrática, eu ria, na maioria das vezes. O que não significava que eu continuasse a desafiando, porque eu nunca fui uma filha que paga para ver.
Outra característica de dona Cláudia que deixava a frase mais contraditória ainda era o fato de que ela incentivava meu ímpeto pelo envolvimento político. Não que ela gostasse e participasse de modo ativo da política. Mas ouvia atentamente meus sonhos por um mundo igualitário, eu contar sobre as assembleias estudantis, jamais se contrapôs às minhas viagens pelo ativismo. Dizia ela que esse meu jeito lembrava meu bisavô, que chegou a ser preso na ditadura militar. Minha mãe era tão antidemocrática que, lá pelos meus 16 anos, quando eu queria encontrar um rapazinho, amigo dos meus primos, que minha avó era contra, era ela quem dizia que eu podia chamá-lo e nos dava cobertura. Talvez ela quisesse demarcar apenas o território quando dizia algo desse tipo. Não sei dizer. Apenas sei lembrar e sorrir com a memória.
E essa frase ainda me lembra da dificuldade dos tempos, de ofensivas retrógradas e fascistas, e também de uma doença que não permite o encontro democrático de muitos filhos e filhas com suas mães.
Se você não está com sua mãe hoje, mais do que se ressentir com a situação, compreenda que essa distância é passageira e um ato de amor. Em breve, vocês vão se ver, se abraçar, deixar que essa memória tome vida em um longo papo. A distância imposta pelo vírus não impede que sua mãe lhe repita em videochamada as frases clássicas para não deixar queimar o arroz “porque você tem cabeça de vento”, que “você não é todo mundo” para se meter a sair de casa e furar a quarentena para vê-la, que, em vez de uma discussão agora, depois da quarentena vocês conversam. Aproveite para enxergar a mulher incrível que ela é, mais do que apenas sua mãe, para vocês conversarem em um troca dinâmica sobre os medos e as novas descobertas nesse período – afinal, há os que estão, pela primeira vez, tendo que lidar com suas cozinhas. Imagina só a alegria dessa mãe de saber que você saiu do miojo e até já arrisca um risoto?
Acalme o coração, veja o sorriso dela pela tela do celular, em um ato de amor imenso para que logo, logo, vocês possam se encontrar e você escutar, como um conforto, “o almoço está pronto”.
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