A carta de amor de Beyoncé para todas as mulheres negras
"Uma música importante em uma sociedade que define padrões do que deve ser visto como bonito ou não, a partir de uma classificação racial", diz a Ju Borges
São Paulo, 06 de agosto de 2020
Não há como falar de Black is King, de Beyoncé, sem falar de Brown skin girl. O clipe faz jus a toda a mensagem da música, que considero, antes de tudo, uma carta de amor.
“Garota da pele escura
Sua pele é como pérolas
A melhor coisa no mundo
Eu nunca trocaria você por outra pessoa”
A música de Beyoncé, que a fez pensando em suas filhas, é uma carta de amor e um encorajamento para que crianças e jovens negras amem suas cores, seus tons de pele, que são os mais variados. Uma música importante em uma sociedade que define padrões do que deve ser visto como bonito ou não, a partir de uma classificação racial.
O clipe é emocionante porque é cheio de camadas. Ao passo que Beyoncé coloca Blue Ivy no centro da narrativa, ela transforma sua menina em espelho para diversas outras meninas negras. Blue Ivy aparece como uma menina feliz, certa de suas qualidades e belezas, com todas as suas potencialidades e que tem em sua mãe e toda uma comunidade de outras mulheres negras o esteio para que experimente o mundo e se perceba sujeita e dona de si dentro dele. Além disso, tanto a música, quanto o vídeo, tratam do colorismo. Um tema importante e que, ainda, precisa ser superado entre o grupo negro e a sociedade no geral.
Em países que passaram pelo processo colonial, caso do nosso, o debate do colorismo precisa ser enfrentado. Não para reforçá-lo, mas para percebê-lo como um dos emaranhados e sutilezas do racismo para perpetuar um sistema de desigualdades e manutenção de privilégios de alguns. O colorismo é uma ferramenta no interior do racismo que complexiciza o sistema de classificação racial. Ou seja, quanto mais escura uma pessoa for, mais discriminação e marginalização essa pessoa sofrerá.
No sistema escravocrata, essa classificação era utilizada, por exemplo, para definir escravizados que executariam tarefas domésticas, em maior interação com os escravistas, e os escravizados que executariam tarefas agrícolas e mais pesadas. Quanto mais claro, mais próximo do ambiente e trabalho doméstico. Quanto mais escuro, mais direcionado às tarefas agrícolas. Isso em nada significava uma vida com menos discriminação para os mais claros. No caso das mulheres negras de pele clara, por exemplo, há o forte impacto de abusos sexuais sistemáticos, já que eram mais sexualizadas ao olhar dos senhores.
É o colorismo que normaliza, por exemplo, um ditado por muito tempo repetido no país: “branca para casar, mulata para f…. e negra para trabalhar”. Ou seja, o racismo é um sistema de teias tão complexas que estabelece internamente um processo de objetificação duplicada: a hipersexualizada e, portanto, de abusos sexuais, estupros a todo tempo; e como ferramenta de trabalho. Essa ferramenta impacta na imagem de controle sobre mulheres negras até hoje. Dois exemplos mais correntes são os de que: primeiro, a relativização e o silenciamento em casos de abusos sexuais de jovens meninas negras, já que são vistas de modo sexualizado e que, portanto, não precisariam de amparo e proteção; e, em segundo, da ideia de que mulheres negras aguentam mais dor e, portanto, não precisariam de tanta anestesia em procedimentos médicos. Há dados e pesquisas de institutos e organizações sérias que comprovam essas questões e permanência de violências até hoje. Ou até mesmo se pensarmos que a indústria de cosméticos continua lançando produtos com pouca diversidade tonal e incentivando o uso de produtos de “clareamento”, ainda associando que a pele “escura” é algo negativo e que precisa ser amenizado. Para você ter uma ideia do quão perverso isso é, a indústria de cosméticos para clareamento é a terceira maior na Nigéria.
No Brasil, a questão ainda toma outros contornos como consequência das políticas de embranquecimento, de tentativas de desconexão e apagamentos ancestrais. Assim, durante todo o século 20, movimentos negros fizeram um amplo esforço de reconexão com essa raiz ancestral, construindo coalizões e identidades políticas, a partir do diagnóstico que, por mais que o sistema dissesse que haveriam benesses com o embranquecimento, a realidade era totalmente diferente, na qual a hierarquização a partir das ferramentas racistas de classificação continuava operando. Ou seja, as realidades de negros retintos e negros de pele clara eram ainda mais próximas do que distantes, tanto na criminalização e sentidos da violência quanto na marginalização na sociedade. Assim, cabia, e ainda, cabe a tarefa histórica do movimento de construir em conjunto e coletivo, inclusive reafirmando uma multiplicidade étnica e de colorações que não invalidam a negritude como elemento histórico de encontro, identidade e luta política.
A meu ver, Brown Skin Girl dialoga com tudo isso, com todas essas camadas complexas das ferramentas da estrutura racista e de modo profundo ao trabalhar o processo de reconstrução do amor e do orgulho que mulheres negras devem sentir de si mesmas.
O que me leva às lágrimas ao escutar essa música e assistir ao vídeo dela – sim, você ainda vai me ver falar muito que choro com os imaginários que Beyoncé suscita com sua arte – é porque ela me transporta a minha infância e às minhas vivências. Como quando um menino, ainda na pré-escola, disse para mim que não gostava de pretos. E eu me senti profundamente triste e envergonhada, mesmo sem saber direito o que aquilo tudo representava. Eu não consigo mensurar o que minha mãe sentiu quando escutou de mim, a filha que ela sempre penteou com tranças e lacinhos e que sempre disse que era bonita, que eu queria trocar de cor porque não gostavam da minha. Imaginam uma criança de 6 anos falando isso para a sua mãe? Uma pena que eu não tive Beyoncé em minha época, mas apenas bonecas brancas e loiras, apenas apresentadoras infantis brancas e loiras, apenas divas pop brancas e loiras. Eu não me via em nada que era representado como bonito e belo. Logo, as palavras daquele menino em atravessavam de um modo imensurável e indizível. Se eu não estava em lugar nenhum, nem nenhuma mulher que parecia comigo, logo ele poderia estar certo. Pouco ou nada de belo deveria existir em mim.
Após um longo processo em casa para que eu percebesse que eu também era bonita, alguns meses se passaram e o mesmo menino me pediu um lápis de cor emprestado. Minha resposta foi ferina, como minha mãe me ensinou a responder a esses ataques naqueles meses que haviam passado: “Se você não gosta de preto, não deve gostar de lápis de cor de preto também”. E não emprestei meus lápis de cor de marca famosa à época e cobiçado por toda criança. Ao reclamar com a professora da minha resposta, a mesma, por alguma intervenção de orixá porque também branca e poderia não ter dimensão alguma daquela problemática, me apoiou. Mas sei que essa não é a realidade da maioria das crianças negras nas escolas.
Por isso que Brown Skin Girl é tão importante e é uma ode ao amor de nós por nós mesmas e por outras de tantas tonalidades e colorações que enriquecem a negritude. Porque ninguém enfrenta as problemáticas da vida se não estiver forte, convicto de si mesmo e de seu valor no mundo. É fundamental que encorajemos nossas crianças negras a amarem a si mesmas e que vejam em outras crianças negras o amor e o belo, o que deve ser reverenciado e reconhecido.
Ao ver Beyoncé celebrar mulheres como Naomi Campbell, Lupita Nyongo, Kelly Rowland, sua própria filha, de pele mais escura que a dela, vejo uma celebração a mim também, à minha mãe, às minhas tias, irmãs, primas e muitas amigas. Não somos objetos e artigos para a sexualização ou para a diminuição a esfera braçal. Como Brown Skin Girl – que apresenta uma brincadeira linguística de trocadilho na pronúncia pela fonética, podendo ser tanto “negro é rei” quanto “pele negra/black skin” – somos o legado de muitas lutas até aqui e ainda temos muitos desafios pela frente. Mas não custa nada repetir: só consegue ter força para lutar pelo coletivo aqueles que tem a autoestima fortalecida e se percebam fortes e parte de um processo que a cantora nos convoca como “partes de algo maior”.
Definitivamente, e não cansaremos de afirmar, Black is king e suas canções são muito mais do que oncinhas e brilhos. Mas peles que remetem às realezas africanas, demonstrando que as sociedades das quais nossos ancestrais foram arrancados foram e são tão válidas e suntuosas quanto qualquer sociedade europeia, questionando as hierarquias impostas e que insistem em não se dissipar. O brilho representa o que reluz, como ao referenciar a pele “brown”, que lembra pérolas, que conduzem uma luz de beleza, integridade e força e, portanto, alegria. Estamos falando a partir do conhecimento de questões que nos atravessam, de desigualdades colocadas e decidindo qual a narrativa que nos contempla nesse processo. Do amor por nós mesmas para a construção pela sociedade que queremos. Concordo com Beyoncé, eu não trocaria isso por nada.
Assista ao clipe da canção: