Rogéria, a travesti da família brasileira, confessa que viveu
Ela lança um livro e diz, nesta conversa bem humorada, como era ser gay e ter carreira de transformista na ditadura. Fala de sexo, de fé, do Brasil...
Ainda bem que Rogéria existe. Instigante, 73 anos, está bagunçando a ordem neste mundo que elege Trump e não tem mais vergonha de se mostrar homofóbico, xenófobo, racista e misógino. Sim, porque Trump é o retrato do mundo todo. Salve, Rogéria, a vacina contra a caretice! A travesti da família brasileira!!! Nascida Astolfo Barroso Pinto, ganhou em 1979 o troféu Mambembe de MELHOR ATRIZ !!!!!!! E está contando sua história no livro Rogéria, Uma Mulher e Mais Um Pouco (Estação Brasil, 44,90 reais). Durante meses, relatou ao escritor Marcio Paschoal a sua infância, a ascensão de plumas e paetês no showbiz, no cinema e na TV, e também contou cenas de sexo com políticos, jogadores de futebol, empresários e até com o policial Mariel Mariscot, que tinha um tanto de charme e um tantão de sadismo e calhordagem – que o tornaram ícone do grupo de extermínio carioca, Esquadrão da Morte. A artista gaba-se de ter esnobado o ator americano Marlon Brando, mas, fina, não revela o nome dos amantes que estão vivos e casados.
A mim encanta, especialmente, o alto-astral de Rogéria, a coragem e o jeito de encarar a vida. Não deve ter sido mole assumir-se gay nos anos de chumbo. Ela estreou no palco em 1964, no regime golpista-militar, e sob as barbas dos generais que monitoravam até os pensamentos de gente livre como ela. Não se envolveu com a política, mas à sua maneira, desafiou o establishment: no show Alta Rotatividade, em Brasília, reconheceu na plateia o temido general Golbery do Couto e Silva, então chefe da Casa Civil. Não deu outra, sentou-se no colo dele, com estardalhaço. Alguns entenderam como tentativa de desmoralizar o homem forte do governo de Geisel e, depois, o de João Figueiredo “Disseram que eu pagaria caro pela insolência”, comentou. “Mas o general até gostou, e eu não precisei ser exilada.”
Foi inúmeras vezes censurada. A última, em 2007, na Câmara dos Deputados. A exposição Heróis, do fotógrafo Luiz Garrido, mostrava homens como Tom Jobim, Lula, Fernando Collor, Dráuzio Varella, Oscar Nimeyer… e Rogéria. Ela em nu frontal. De camisa social, gravata e tênis, tinha o pênis apertado entre as pernas. Não durou 24 horas. Os 24 retratos foram retirados do Salão Negro: a foto de Rogéria “chocaria” o público, as crianças. Mas como? O nu de Rogéria é pinto perto dos urubus obscenos que ocupam o plenário e fazem as leis que a gente cumpre.
Em uma manhã de outubro, visitei Rogéria no apartamento de um amigo dela no bairro paulistano do Itaim Bibi. Cheirosíssima, cabelos loiros, presos em um coque farto, unhas rígidas e bem pintadas, ela me abraçou. Que prazer ouvir dessa virginiana elétrica, coisas assim: “Quando comecei o livro com o Marcio, deixei bem claro que não tive uma vida de bicha infeliz”. Um pouco da nossa conversa:
Sobre dona Eloah, sua mãe
“Ela tinha uma intuição aguda, pressentia que eu estava sofrendo e vinha em meu socorro. Na infância, fui uma estranha no ninho, daquelas perigosas. Veadíssima, a Malévola. Era boa de briga, líder; os meninos temiam, obedeciam – e também me adoravam. Não sabia jogar futebol, mas ia ao jogo só para estar com eles. Um dia perguntei à minha mãe: ‘Você me leva para o seu trabalho, apresenta pra todo mundo…não tem vergonha de mim? Do meu jeito?’ Que nada, ela me tranquilizou, tinha orgulho, entendia. Eu contava todos os segredos para ela, que me chamava de Astolfinho. Foi uma meninice saudável, pegando rã, nadando como Esther Williams e dançava mambo. Minha mãe começou a se referir a mim com um ‘minha filha’ quando eu tinha 30 anos. Estávamos no táxi, e o motorista perguntou intrigado: ‘Por que a senhora usa ELE para falar da sua filha?’. Dona Eloah desceu e disse: ‘Nunca mais vou passar esse vexame. Você está muito feminina e linda. Desculpe’.
Eu tinha 68 anos quando ela se foi com mais de 90. Fazíamos massagem um no outro. Mas ela, embora lúcida, estava fraquinha, tinha fumado desde criança. Meu irmão ligou avisando que ela partira. Senti um alívio. Não sofrera doença grave, e eu sabia que ficaria bem, precisava descansar. Se tivesse ido quando eu era jovem, acho que morreria em seguida. A mãe de um menino gay faz toda a diferença. É ela quem passa autoconfiança, aceitação. Sou decidida, resolvida… isso devo à minha mãe.”
O Brasil obtuso
“Amo meu país, ele não tem Estado Islâmico, mas está cheio de intolerantes brutos. O Brasil não é perverso só com os homossexuais. Mata gays, mulheres e crianças. Há muitos estupros e violência doméstica. Pioramos, estamos andando para trás: nos anos 1960, ninguém agredia uma moça de minissaia na rua. Hoje, a patrulha é terrível. Eu não tinha uma sigla política. Agora tenho LGBT. Os meninos me chamam: ‘Vamos nos juntar? Você abriu a bandeira, deixe a gente se enfiar nela’. Eu estou aqui para dar um alento, dizer que sigo com eles e com toda essa diversidade. ‘É para aparecer aqui e dar o recado? Vou! É para aparecer ali? Vou!’ Sou a favor das lutas deles. Me preocupo com os travestis se prostituindo. Isso começou nas esquinas de São Paulo em 1969, e só tem aumentado. Acontece porque eles estão sem apoio da família, sem estudar, sem aceitação no trabalho. Um horror.”
Cirurgia pra quê?
“Quem quiser operar, que se opere! Não me meto na vida de ninguém. Conheço transexuais que trocaram de sexo e são felicíssimas. Apoio. Mas é preciso ficar atenta: a travesti que faz cirurgia para construir uma vagina jamais será mulher. Eu quero paz e o direito de ser Astolfo Barroso Pinto Rogéria. Decidi cedo que não me mutilaria de jeito nenhum. Quiseram me operar, uma vez. No palco podia ficar melhor, não precisava amarrar para trás. Eu logo gritei: “Não, meu filho, deixa o meu peru em paz, por favor.’ Sou muito feliz em olhar meu pipi e ver que ele não ficou amarelo. Sou uma mulher diferente, atriz 24 horas por dia, me visto assim, gosto de pérolas, perfumes, faço o tipo lady… No fundo, nunca quis ser mulher. Tenho uma vantagem: no sexo, faço todas as coisas, principalmente o que as mulheres não podem. E na rua, se vejo um fraco apanhando, posso entrar para dar umas porradas no agressor.”
Bunda linda, peitos firmes
“Nunca pus silicone e fiz eletrólise para acabar com a barba. Tomei três injeções de hormônio, que eu mesma me aplicava, porque tinha medo de alguém pegar um nervo e me deixar torta. A primeira foi em Biarritz, nos anos 1970, quando trabalhava na Europa. Fiquei um ano sem olhar para homem. Libido lá embaixo. O médico me explicou que a primeira vez que você toma uma dose maciça de hormônio, isso inibe a testosterona. Jurei que não tomaria mais. Mas em Genebra, uma amiga me convenceu: eu tinha errado a dose. Aí me apliquei outro hormônio. Andava na rua, meu peito despontava, estava crescendo. Ainda hoje são bonitos. E naturais (ela levanta a blusa de seda e mostra suas mamas – jovens para seus 73 anos –, que nem precisam de sutiã para contê-las.) Não queria grandes, nem bumbunzão. Se eu tivesse bundão e peitão, como entraria em um vestido do Yves Saint Laurent? Eu sou mulher, meu bem. Minha cabeça é totalmente feminina. Sobre os cabelos: no Brasil, no começo de carreira, eu os mantinha curtos – porque não podíamos sair de mulher na rua. Nos espetáculos, punha a peruca. Só descobri que eram fortes e fartos, vivendo em Paris. Tinha uns 29 anos e deixei crescer pela primeira vez. Até eu me assustei com o cabelão.”
Arriba, estrela, arriba
“Não estudei na Actors Studios. Tive algo melhor: como maquiador da TV Rio, convivi com Marlene, Emilinha Borba Ângela Maria; com Sergio Britto e Fernanda Montenegro – ela disse que eu devia tentar a carreira de atriz. Quando vi no camarim a cantora Elizeth Cardoso, a divina, simulei um desmaio. Eu era seu fã; Elizeth morreu de rir, achou que eu tinha talento dramático. E Bibi Ferreira me colocou para cantar no palco pela primeira vez. Estreei como vedete em 1964 com Carlos Machado, nos palcos do Night and Day, no Rio. Fiquei três anos, entre fama e sucesso. Cheguei para trabalhar na Espanha aos 27 anos e tive que iniciar do zero, porque ainda estava vestida de homem. No bolso não havia um tostão, um amigo pagou o táxi. Foi uma grande decepção quando me viram de roupa masculina. Acharam que no palco eu não funcionaria. Durante 10 dias banquei a empregada de luxo, lavando privada, passando enceradeira, porque estava morando e comendo na casa da pessoa que me apresentaria aos contratantes e donos das casas de show. Minha amiga Brigite de Búzios, uma artista maravilhosa, desembarcou de Nova York e perguntou: ‘Porque ela não está trabalhando? É estupenda para cantar!’ Me perguntaram: ‘Verdade, você canta?’ No teste, pedi ao maestro para interpretar a capela. Recebi Marilyn Monroe, Judy Garland, Bette Davis. Baixaram todas ali, foi um escândalo. Virei a grande estrela do espetáculo. Casa cheia, uma loucura até o sétimo mês, quando bateu na porta a polícia truculenta de Franco: ‘Você não pode trabalhar assim, tem que estar vestida de homem, com a cara pintada’. Fui viajar, morei em Paris, me apresentei no Egito, em outros países da África, rodei.”
A hilária saída do Cairo
“Eu era a cantora e apresentadora do espetáculo. Tinha um contrato. Falei para o patrão que queria voltar para o Brasil – um convite profissional me esperava. Ele disse que eu não podia abandonar o espetáculo, mostrou-se irredutível. Juntei cuspe na boca, muita saliva, joguei para um canto da boca para fingir um ataque epilético. Comecei a tremer e me joguei no chão. O homem ficou desesperado. ‘Ai, esse veado vai morrer aqui. Pelo amor de Deus, manda vir outro pro lugar dele’. Eu ainda precisava pegar meu passaporte na polícia, porque os nossos passaportes ficavam retidos. Estava demorando muito, eu dei bola para todos os policiais, deixei tocarem no meu peitinho, aqui e ali. Consegui sair. Entrei num avião russo para ir para a França, e, de lá para o Brasil. Carregava muitos dólares, isso não podia. E disse: ‘James Bond, e se me descobrem com esse dinheiro aqui?’ Eu contava com a ajuda de um cônsul, do Cairo, que me garantiu: “Eu te ponho do lado de lá’. Mas, tinha dúvidas; podia dar errado. Quando, finalmente, peguei o voo de Paris para o Rio, exausta, tomei dois remédios para dormir. O negócio reverteu; eu fiquei bem louca. Passei 11 horas desfilando com plumas no avião da Air France. Peguei o microfone: ‘Senhores passageiros, Rogéria no aparelho. Estamos fazendo um voo ma-ra-vi-lho-so, porque sou geminiana, sou do ar’. Todo mundo riu, assobiou”
Conseguiu ficar rica?
“Não. Nunca roubei. É impossível ficar rica sem roubar alguém. Tenho prestígio como artista. Isso é riqueza. Ontem, por exemplo, fui assistir ao musical Cartola e voei para o banheiro feminino duas vezes, para ser a primeira. Começou a formar fila, eu disse: ‘Nessa hora, ser mulher é um terror!’ Elas aplaudiram, com o celular na mão. Sinto que sou amada por onde ando. E nunca tive problema em usar o banheiro delas. Um dia, a fila estava enorme e uma senhora me viu, perguntou se eu estava apertada. Eu disse que sim, e ela: ‘Então entra no meu lugar’. As outras concordaram. Eu expliquei: ‘Tenho que ir rápido, porque até desembrulhar tudo isso aqui, fazer pipi, me secar, como é que vai ser, né?’ Contei pra elas que, se está limpinho, eu sento. Do contrário, faço xixi em pé, mesmo. Elas se divertiram. Minha vida material: vai bem. Moro num apartamento pequeno, alugo o maior por temporada. Não sou uma dona de casa, não lavo louça, não sei ferver água – tenho medo de ferver. O que sei é degustar coisas boas, gostosas, de qualidade e, às vezes, caras.”
A travesti lá de casa
“Nunca sofri rejeição do povo, das pessoas comuns. Há muitos e muitos anos me sinto a travesti da família brasileira. Senhoras mais velhas me beijam, às vezes se abrem, confiam. Mães me param na rua para agradecer: ‘Graças a você, eu tenho um filho maravilhoso e ele se veste de mulher também’. Os gays dizem: ‘Na minha casa, as portas se abriram, os armários se escancararam e eu pude sair. Já sacaram que não é falta de caráter’.”
Como os homens reagem
“Toda vez que me deparo com um homofóbico, logo percebo que dentro dele tem um veado enrustido. Mas um veado bem mau. Tenho boas relações com os homens em geral. Muitos dos amores que tive são ainda famosos, influentes ou ricos. Sou discreta. Nunca revelei o nome de um deles. Para que faria isso? Seria uma vaidade boba.”
Altar e terço
“Rezo de 45 minutos a uma hora. Quando rezo. Foi minha mãe, espírita-católica, que ensinou. Tenho um altarzinho, alguns santos. Às vezes estou atacada, dou uns berros, me atiro num chilique e a mulher que trabalha em casa, uma evangélica, pergunta: ‘O que é isso, dona Rogéria?’ Eu respondo: ‘Tô expulsando os demônios. Pensa que isso é franquia da sua igreja?’ Não sou carola, mas tenho fé. Sofri um acidente pesado, de carro. Só não fiquei cega porque me grudei em Santa Luzia.”
Sexo, casamento, amantes…
“Eu me casei uma vez. Tive uma grande paixão aos 19 – ele tinha 17, morou em casa da minha mãe, comigo. Mas me fez escolher: ‘O showbiz ou eu.’ Fiquei com o palco e sofri muito. Pela vida afora, fiz sexo gostoso, sexo ruim, sem graça, sexo louco, inesquecível. Vivi intensos romances; ao fim de alguns até me deprimi. Mas sempre avisei (e aviso!) os meus amores: ‘Cuidado com as minhas viagens. Entre um voo e outro eu esqueço você.’ Claro, eu tenho um amante. Há 16 anos. Mas esse não mexe com o meu coração. É sexo, entende?”
Velha, eu?
“Outro dia eu estava no sofá e interroguei a mim mesma: ‘Você sabe que está com 73 anos?’. Gêmeos conversa muito com ela mesma. Respondi: ‘Engraçado, eu só sinto que estou com idade quando fico doente, com alguma dor na coluna, aí vou para 120 mil anos’. Mas deixa tocar um playback, a voz sai que nem um touro.”
Frases do livro:
“Homens são sacanas for ever”
“Quem não tem Xuxa sai com Roxéria”
“Gosto de homens difíceis, daqueles que falam que detestam bicha e que na hora se derretem me chamando de loura gostosa”
“Quem tem bagagem cultural nunca vai pagar por excesso de peso”
“De vez em quando eu adoro o homem que eu sou”
“Eu já sonhei em ganhar cinco Oscars, mas nunca sonhei em ficar grávida”
“Só tenho duas preocupações com o visual: não parecer prostituta nem homem vestido de mulher”