Bastidores da reportagem que investiga o homem que bate em mulher
O que pensa o autor da agressão? De que é feita a sua crença, sua ação? Qual é a gênese da violência contra a pessoa com quem divide intimidade ou afeto?
Há anos publico em CLAUDIA reportagens sobre histórias estúpidas de violência doméstica, o impacto sobre as vítimas e o descuido criminoso do Estado que, por não tomar providências, acaba deixando as mulheres morrerem. Nunca ouvi em profundidade os autores das agressões. No máximo, registrei frases deles. Desta vez o propósito era entender a alma, a cabeça do homem que esfola e quebra. Qual é, afinal, a gênese do comportamento hostil e como se dá a escalada de um mal que põe o Brasil no sétimo lugar em matança de mulheres? O resultado dessa busca está nas bancas, na edição de novembro.
Durante três semanas estive com os homens. Eles têm dificuldade de falar do que, muitas vezes, se envergonham e se arrependem. Exclui os casos de assassinato e estupro, porque alguns envolvem patologias graves, e também os episódios de frieza e premeditação em briga por patrimônio. Esses ficarão para uma próxima análise.
Queria me ater à rotina dos desentendimentos banais que vão crescendo e corroendo a convivência. O foco era o homem comum. Parecido com alguém da minha família; com o marido da amiga; o colega de trabalho; o homem de quem não se espera um ato covarde. Por que eles surtam irremediavelmente? Frequentei os raríssimos grupos que, com ajuda de psicólogos, levam os homens à reflexão sobre os seus atos brutos. Alguns juízes determinam, como parte da sentença, a presença deles nesses grupos. Outros amenizam a pena caso o réu participe. Estive no Fórum do Butantã, em São Paulo (sim, aquele que ficou famoso em abril passado, quando a juíza Tatiane Moreira Lima, imobilizada no chão, virou refém de um homem acusado de agredir a mulher e que queria explodir a magistrada e o prédio em vez de acertar as contas com a Justiça). E fui também ao Fórum Criminal da Barra Funda, onde funciona a Vara de Violência Doméstica mais movimentada da capital paulista – a primeira a funcionar no Estado. Mas não estive ali apenas pelo ineditismo. A reportagem começa com o relato do arquiteto Júlio (todos os personagens tiveram seus nomes trocados), 36 anos, réu em um processo que corria nesse fórum. Ele contou como chegou à Barra Funda:
“Queria mostrar boa aparência. Tirei a barba, cheguei com o rosto liso ao fórum. Vi um veículo grande de transporte de presos. Dele desceram homens igualmente barbeados. Um, escoltado e algemado, passou perto. Pensei: ‘A Justiça pôs a mão em nós. Estamos na mesma condição – a de réu. Tentei imaginar que barbaridade ele teria cometido. Eu bati na minha mulher. Tive uma diarreia, me recompus com dificuldade e segui para a sala indicada na intimação. O ambiente é tenso, eu repetia, mentalmente: ‘A que ponto cheguei. A que nível desci’. Chamaram o meu nome. Entrei e mirei a juíza, atentamente. Se ela pudesse ler o meu olhar… Ele estava prometendo: “Nunca mais eu volto aqui”.
O homem não desmonta a bomba
Júlio cumpria uma medida protetiva, não chegava perto da ex fazia quatro meses e estava sem ver o filho de 6 anos, que passou a rejeitá-lo. O arquiteto contou que a mulher é bonita, paparicada pelas pessoas, consegue tudo que planeja e cresce na profissão. E que os dois se deram bem até o casamento emperrar em 2014. Ele dava “ciscadas” fora de casa – “nada sério” – e a mulher resolveu se divertir também.
“Os golpes que dei, num momento de fúria, quando ela voltava tarde da noite, quebraram duas de suas costelas, deixaram o rosto roxo e o incisivo pela metade. A promessa de nunca mais voltar à condição de réu não era para a juíza, mas para mim mesmo. Não quero repetir aquilo. Eu vi a merda que fiz”.
Ouvi de Júlio o mais perfeito resumo do que ocorre quando o homem se sente por baixo, como ele na noite da surra: “O cara não sabe como evitar a violência, não aprende a desmontar a bomba prestes a explodir.” Eu acreditei em Júlio. Em geral, o homem tem pouco repertório para reagir à frustração, a algo que acaba, dá errado, significa rejeição ou afronta a sua virilidade. A resposta, não raro, é truculenta. Pode variar de insulto verbal à ataque físico à sua antagonista. Ou ele procura a rota de fuga no autoflagelo, no álcool e na exposição à riscos. O arquiteto ainda não sabe o que deveria ter feito para segurar a ira, mas suspeita que a encrenca maior seja fruto do que ele descreveu como “disputa entre a mulher e o homem pela pole position, o mais vantajoso lugar na sociedade”.
Os “injustiçados”
Quase 100% dos entrevistados culpam a mulher e juram que só agrediram de forma sangrenta uma única vez. Todos se sentem injustiçados pela Lei Maria da Penha, considerada por eles um instrumento feminista e parcial demais. “É uma lei que protege as mulheres e fode os homens” – disse João, 35 anos, programador de máquinas. A conversa com ele começou no Fórum do Butantã às 18 hs, quando apertou a minha mão olhando para baixo, meio seco, meio duro. Muito diferente do João que me abraçou duas horas e meia depois, na despedida, ao perceber que fui sincera em desejar sorte no recomeço da vida, sorte em um novo amor que, certamente, ocorrerá em outra base, mais igualitária e harmoniosa. Ele está ciente de que terá de pagar pelo que fez.
João frequentava nos últimos meses o grupo de reflexão para homens e desejava sair dali muito melhor e preparado para a relação madura com uma mulher. Admitiu estar aprendendo boas coisas. “Esperava encontrar no grupo só bêbados e brutos. Achava que homem que bate em mulher não presta. Não é verdade. Respondem a processos homens normais. Somos feitos de sentimentos, bons e ruins.” Disse estar mais tolerante e julgava menos os comportamentos dos outros homens e também das mulheres.
O cara pede socorro
Embora não tenha desmontado completamente a armadura de macho, herdada de ancestrais que cunharam o modelo patriarcal, o programador de máquinas respondeu três vezes “SIM”, quando lhe preguntei: O homem está pedindo socorro? Ele se vê mal assistido na sociedade? Sente que não há espaço para rever a cultura autoritária e não sabe como romper com ela? “A mulher de hoje é mais independente que nós e tem mais atitude desde o início da vida”, garantiu ele. A mãe não passa a mão na cabeça da menina, mas protege o menino. Se ele não tiver uma boa bagagem, vai sofrer consequências drásticas, porque não será paparicado pela esposa”.
A juíza titular da Vara de Violência Doméstica do Fórum da Barra Funda, Elaine Cristina Cavalcante, uma mulher elegante, de fala calma e pausada, acrescentou: “Quase todo nexo vem da infância. No ideário da criança, a violência entra como forma de educar. A mãe ama e bate”. A promotora Erica Canuto, do Ministério Público do Rio Grande do Norte, me contou ao telefone que várias vezes ouviu homens que ela acusa justificarem a agressão assim: “Eu não dei nela. Dei no atrevimento dela”. Ou eles afirmam: “É errado surrar uma outra mulher. Na minha, eu posso bater. Estou ensinando a ser dona de casa, a fazer uma boa comida, como minha mãe fazia”.
“Estamos todos condenados”
Às 20 horas, com o Fórum do Butantã fechando, alongamos a conversa na lanchonete ao lado. João estava acompanhado de outros dois envolvidos com a Justiça, o gerente de vendas Heitor, 43 anos, que bateu em uma mulher de 25, filha de sua namorada, e o masseiro Antônio, 36, acusado de molestar a ex-mulher, o que ele nega. “A Justiça precisa investigar o que as mulheres falam”, afirmou. Antônio contou que, separado, foi ao fórum tratar sobre a pensão dos filhos. “Minha ex imaginou que eu ia pedir a guarda das crianças e fez um boletim de ocorrência inventando uma agressão”. Para ele, “a lei bagunçou tudo, as mulheres agora estão se achando”. Heitor discordou, considera a regra boa. “O problema são os operadores da lei.” Ele se sentiu sob “300 anos de revanchismo feminino”, quando pediu para a escrivã retirar do depoimento frases atribuídas a ele e que não correspondiam à verdade. “A escrivã não atendeu o meu pedido e ainda gritou comigo”, lembrou. Heitor talvez não saiba que a ida da mulher à delegacia é sempre traumática. Os investigadores duvidam de seus relatos, julgam que a surra foi merecida por ela ter traído, usado decote ou roupa curta. Mas Heitor, João e Antônio têm certeza de que ocorre “corporativismo”, pois as mulheres manejam o universo Maria da Penha. Para eles, só existem juízas, promotoras, defensoras públicas, delegadas e escrivãs. “O cara já entra condenado”, afirmou João.
Do que eles se queixam?
Dos estereótipos. Não gostam de ver o webfeminsmo “colocando todos os homens no mesmo balaio“, explicou Heitor. Como se fossem grossos, falassem palavrões o tempo inteiro e se dirigissem à mulher com cantadas, sempre querendo comê-las. “Não é verdade que casar, ter filhos e uma casa gostosa seja um sonho exclusivamente feminino. O casamento, para mim, é um plano de vida“, contou Heitor, que foi marido duas vezes. Também não são os únicos a cometer violência: “Tem muito marmanjo que apanha e não se queixa na delegacia porque isso é um vexame, e dos piores“, comentou Antônio. Heitor lembrou que “apanhou pra caramba” no churrasco em que, bêbado, se desentendeu com a filha da namorada, com quem travou embate físico: “Ela luta tae-kwon-do“. Muitos entrevistados criticaram os comerciais de TV por colocarem o personagem masculino como um paspalhão, confuso, dependente e diminuído diante da mulher que emergiu com poder nos anos 1970. Detestam vê-las encarnando o comportamento de macho que as oprimidas contestaram no passado. “Tem umas que são mais autoritárias que vários generais juntos. Isso caiu em desuso”, disse um deles. Acham, ainda, que esposas não largam o osso, só aceitam ajuda em casa se for para desempenhar as tarefas do jeito que elas determinam. Falaram em falta de paciência e intolerância com qualquer deslize. E foram quase unânimes em afirmar que as mulheres se tornaram competitivas em excesso. Pelo exposto, nota-se um ringue armado em casa.
Choro atrás das grades
Foi João quem chamou a polícia. Na sua porta pararam quatro viaturas. Ele acabou sendo preso em flagrante depois de dar um tapa na mulher, que usava aparelho nos dentes e sangrou muito. “Entrei na viatura chorando e ouvi o PM dizer que, se eu contasse ao delegado que bati estaria assinando a minha sentença”. Seu casamento durou 8 anos; a esposa o deixou seis vezes. Saía de casa sem falar nada, quando ele estava no trabalho, e “implorava” para reatar sempre que o via em um novo relacionamento. Então, em uma manhã, João pediu: “Pegue um papel e escreva porque acha que devemos continuar casados, se vivemos em crise. Você me xingou na frente dos meus amigos e já tinha dito a eles que estava comigo só por não ter para onde ir.” Ele esperava ouvir um pedido de desculpas. “Mas ela começou a pôr as roupas na mala para me deixar pela sétima vez”, recordou. “Revivi 8 anos de humilhação, imaturidade, ciúme, raiva, e a agredi”. Na delegacia, continuou chorando. “Nunca me envolvi com nada de errado. Estar ali e por uma agressão a alguém que amei, era o fim”. João saiu de trás das grades horas depois pagando fiança.
Nem tudo é caverna
A estagiária de reportagem que me acompanhava, Letícia Paiva, 20 anos, ouvia o relato intrigada. Suponho que começava a demolir a imagem de que o agressor é sempre um monstro. Alguns são mesmo trogloditas. Irredutíveis no posto de proprietário da mulher, censuradores, opressores, vingativos, odientos e cheios de inveja porque a mulher cresce, se emancipa, é feliz bem longe da alcova deles. Mas a maioria dos homens está perdida, tentando se achar em um novo mundo que fugiu do seu alcance. Ainda não há referências de como ser o homem da mulher que foi à luta.
O psicólogo Leandro Feitosa, que atende um grupo masculino no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, no bairro paulistano de Pinheiros, reiterou que o comportamento irascível não é doença, mas uma construção social. Algo que um menino aprende observando o pai, os tios, o avô. Eles mantiveram relacionamentos longos com o controle remoto na mão, guiando a parceira. Se isso era visto até pelas mulheres como sinal de proteção, como agir diferentemente?
Sérgio Barbosa, filósofo especialista no tema e um dos orientadores do grupo de homens processados no Fórum de Taboão da Serra (SP), me corrigiu anos atrás, quando pedi a ele uma entrevista sobre homens violentos em casa. “Não há homem violento. Mas autor de violência. Não nasceu assim; aprendeu.” Essa visão muda tudo. Se ele foi adestrado para o errado, pode, se quiser, abrir-se para novas possibilidades. Tem a oportunidade de rever a cultura que o aprisiona, rasgando a velha métrica macho/fêmea, e de se permitir manifestações de sensibilidade, de empatia com o outro ser humano. O melhor dos mundos: vai colocar-se no lugar da parceira. Que mulher gosta de apanhar? Que namorada ou companheira se sente bem quando vigiada, exposta e perseguida?
O céu pode ser azul
Letícia é muito atenta e aprende rápido. Vivenciou uma reunião do grupo pioneiro, instalado há mais de 20 anos e mantido pela Prefeitura de Santo André. Voltou com um belo relato sobre os homens que não recuam um milímetro de suas convicções – como um advogado que criticou a Lei Maria da Penha dizendo que a mulher aprende com ela a tirar o marido de casa, e logo ensina a vizinha como fazer isso. Mas – leiam a íntegra da reportagem na revista – Letícia também viu esperança de transformação nos que revisam a própria vida e descobrem o verdadeiro papel masculino.
Sim, há um céu azulado bem à nossa frente. Mas ele vai custar esforços importantes e de peso. O Estado precisa prover os grupos para os homens que cometem violência: eles ainda são agulha no palheiro, com raríssimas vagas. Em São Paulo há, neste momento, míseras 55 vagas. Também as empresas, as escolas, as igrejas, os meios de comunicação, as famílias precisam agir preventivamente, ensinando o homem a chorar, ouvir, sentir e, sobretudo, falar de si. A novidade desembrutecerá todos nós.