O que Gilberto Braga me ensinou
A colunista Kika Gama Lobo revisita a história da sua família e faz um paralelo com as personagens mais icônicas do dramaturgo Gilberto Braga
Passou um filme na minha cabeça. Na de todos nós, né. Revisitar a obra do dramaturgo Gilberto Braga, assim que soubemos de sua morte, foi um novelão. Misturo todos os personagens que mais amei, numa liquificador doido lisérgico.
Como não lembrar desse homem que soube espelhar o melhor e o pior da alma humana? E eu como carioca, nascida no Leme, mas com família materna vinda do subúrbio, sempre me identifiquei com a necessidade dos menos favorecidos em ascender socialmente. Minha bisavó era lavadeira. Quarava roupa de um paulistão ricaço, lutador de boxe e dono de centro espírita e por ele nutria uma paixão proibida.
Não podendo acasalar com o Tyson da terra da garoa, empurrou a filha ainda adolescente para ele, e assim minha avó se casa, aos 16 anos – contra a sua vontade – com esse Uber empresário e dessa união desastrada nasce minha mãe e minhas duas tias. O que se segue é surreal. O casamento dá ruim, ela foge com um salva-vidas para Nova Orleans e, em sua breve passagem pelos States, decide voltar ao Brasil e mudar de vida.
Seu melhor amigo gay, já em terras brasileiras, dá um banho de loja na minha avó, ensina boas maneiras e a transforma no pitéu do pedaço. Assim ela retorna em grande estilo para a sociedade carioca, educada, sofisticada, elegante mas causa – com sua liberdade para existir – um desastre mental na minha mãe e em suas irmãs. E euzinha nasci nesse mundo Nelson Rodrigueano com pitadas de Gilberto Braga.
E nessa de misturar folhetim e vida real, me vejo na pele de Maria de Fatima, Odete Roitman, Stella Simpson, Laura, Maria Clara, Bebel, Escava Isaura, Julia Mattos…. Todas tão fortes. Todas tão eu. Todas tão todas nós mulheres. E esse blend de cenários incríveis, trilhas sonoras maravilhosas, figurinos impecáveis, gestos e atitudes que viraram bordões e memes, não há como não se despedir com muito carinho daquele que eu mal conheci pessoalmente mas sentava no sofá da minha sala sem pedir licença.
Ele me ensinou o melhor e o pior dos seres humanos. Não havia fronteira para dizer que aquele personagem era ok ou um vilão. E não é assim na vida? Temos dias sim, outros não. Somos beatos e pecadores. Somos vis e perfeitos. Somos doidas e santas. Discorda? E com aquela gargalhada nervosa de Heleninha Roitman, gritando com ar de louca etílica, grudando feito chiclete na minha cabeça, escorre uma lágrima. Adeus mestre mas espero que, como seus personagens possuídos e atordoados pelo cotidiano ambíguo da vida, você reapareça feito fantasma para me inspirar em meus textos ainda débeis sobre a vida real.