Em Black Mirror, quem seria diferente de ‘Joan é Péssima’?
Episódio da série da Netflix brinca com narrativa da vida sendo determinada por algoritmos e documentos não lidos com atenção
Na Bíblia dizem que Jesus Cristo impediu um apedrejamento com uma única frase: “atire a primeira pedra quem nunca tiver pecado”. Sempre me impressionou que tenham vestido a carapuça imediatamente e parado, porque todas as histórias que conheço de multidões é que, quando se trata de massa, todos viram monstros incontroláveis.
Seja como for, o escutaram e não jogaram nem uma pedrinha. Quando a mulher assustada se viu sozinha sem seus algozes, Jesus a teria recomendado a seguir em frente e “não pecar mais”.
Ela conseguiu reescrever a narrativa de sua vida: era ninguém menos do que Maria Madalena, que passou ser a fiel seguidora de Jesus. Não a condeno, mas se Maria estivesse sendo acusada de alguma coisa hoje nas redes sociais, os algoritmos provavelmente teriam atrapalhado e até impedido a intervenção de Jesus.
O episódio Joan é Péssima, um dos novos da temporada da série distópica da Netflix, Black Mirror, sugere essa conclusão. E é apavorante, afinal, quem nunca?
Estou partindo para os spoilers porque a essa altura o papo já está quase velho. Uma executiva entediada com a carreira e a vida pessoal (Annie Murphy) descobre um dia que sua vida é vista por todos ao seu redor como um terror e que ela é a vilã. Isso porque um serviço de streaming transformou sua vida e segredos em um drama estrelado pela atriz Salma Hayek.
Brincar com nossos medos de tecnologia, de falta de controle e de ‘pecados’ é a fonte inesgotável de conteúdo dessa franquia, que é justificadamente citada com frequência como brilhante, mesmo que a questão não seja nova. Desde que cinema é cinema e TV é TV, contamos histórias alertando os perigos de um futuro determinado por máquinas como os clássicos Metrópolis, Matrix, 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Exterminador do Futuro ou Tron.
A pior realidade dessa conta simplista é que o algoritmo é alimentado por nós portanto seria um reflexo matemático preciso. Na ousada, divertida e precisa história de Joan é Péssima ela adiciona outro elemento que gera pânico: nós mesmos autorizamos tudo que acontece com a gente quando não lemos os documentos que alertam sobre o que podem fazer com o nosso nome, nosso rosto, nossas vozes e até almas.
Não precisei ir longe para imaginar quanta gente compra a narrativa de “Ana é Péssima”. Okay, tenho uma lista de muita gente péssima também. Será que estou vendo errado?
Na série, o uso preciso da meta linguagem, com a participação de artistas famosos, nos faz rir, ficar tensas, torcer e ainda ficarmos chocadas com as alternativas que Joan encontra para tentar retomar o controle de sua vida em impiedosa realidade binária. No mundo em que vivemos, não há espaço para entrelinhas e nem Jesus teria força matemática reverter o quadro. (No meio disso tudo, como uma piada de mal gosto, recebi dois e-mails de Apps alertando a mudança de política e me ‘pedindo autorização’, obviamente concedida sem ter lido tudo. Seja o que o algoritmo quiser!)
Parte do problema que Joan enfrenta, além de ter dado autorização para tudo, está também no hábito de assistir reality shows. Adoro a letra de Billie Eilish que canta “I put on Survivor just to watch somebody suffer” (Vejo No Limite apenas para ver alguém sofrer) que traduz muito como estamos todos viciados em masoquismo. O distanciamento físico também acelera julgamentos. Se alguém age de forma que não apreciamos, não damos tempo para contextualizar, para tentar ajudar e partimos para jogar pedras.
A falta de empatia com a vida alheia transforma todos em “péssimos” e como o algoritmo é alimentado de conflitos, reescrever é matematicamente impossível. Isso sim, é péssimo. E não é novo. Tendo trabalhado com TV e mídia digital por tantos anos, sei que o engajamento pode ser alcançado com palavras chaves e estratégias de horários, exatamente como o episódio de Black Mirror explica: ninguém queria ver uma história de alguém “boazinha”, mas ninguém quer se ver como péssimo tampouco. Por isso Joan fica tão desesperada.
Se minha vida virasse reality (o estômago revira só de pensar), também iria querer ser representada por Cate Blanchett, mesmo que tenha sido o humor de Salma Hayek que tenha me conquistado. A atriz se expôs ainda mais do que Annie Murphy e isso demanda muita coragem. Mas, se é que possa ainda interferir nesse roteiro, deixo o registro público de pedido de desculpas (antecipado e de coração) pra quem me veria em “Ana é Péssima”. E a lembrança: dê o primeiro click quem estiver livre de erros!