Na pandemia, empresas oferecem atendimentos de saúde mental a funcionários
As healthtechs foram essenciais nessa jornada ao fornecerem profissionais especializados em luto, ansiedade e outros transtornos mentais
Assim como um copo de água prestes a transbordar, o limite para saber até quando será possível tolerar uma rotina desgastante é previsível. Porém, transformar essa percepção em atitude nem sempre é viável. A analista de relacionamentos Alexia Ribeiro, 22 anos, de Curitiba, por exemplo, não conseguia buscar ajuda na terapia por causa de outras prioridades em seu orçamento.
Exposta à cobrança de clientes e sem conseguir se adaptar ao home office, prática adotada desde o início da pandemia do novo coronavírus, ela foi tomada pela incerteza. “Saía do computador apenas para usar o banheiro e almoçar. Ficar no mesmo lugar, fazendo as mesmas coisas e sem ver gente se tornou um peso”, revela a administradora, que se preocupava em não descontar o desequilíbrio nos familiares e na relação amorosa.
O impacto emocional da pandemia vivenciado por Alexia se reflete no dia a dia de muitos profissionais brasileiros, escancarando portas de entrada para transtornos mentais, como ansiedade, depressão e burnout, o esgotamento físico e mental que ocorre no ambiente de trabalho.
As condições que favoreciam a incidência desses tipos de doenças já eram alarmantes antes da Covid-19, porém, a implementação do trabalho remoto, tornou a situação ainda mais crítica. Prova disso, é que, segundo uma pesquisa do Instituto Workforce, do Ultimate Kronos Group, e do Workplace Intelligence, burnout e fadiga são igualmente preocupantes (43%) para funcionários em trabalhos físicos e em home office.
Para a psicóloga e escritora Mariana Luz, independentemente do meio em que o serviço é realizado, a pandemia gerou um descompasso ainda maior entre a demanda de atividades e a produtividade dos colabora- dores. “As empresas perderam a mão no último ano e os danos são severos, como alteração no sono, na concentração, nas relações interpessoais e na alimentação, além da ansiedade e depressão”, diz a especialista.
Ao terem noção do cenário, algumas companhias passaram a incluir o tema de segurança psicológica não só de forma pontual, como em campanhas de Setembro Amarelo, mas também dentro do pacote de benefícios oferecidos aos funcionários.
Com a terapia, consigo me colocar como prioridade e sentir menos culpa”
Alexia Ribeirto, analista
A pesquisa do Workforce confirmou esse movimento no ambiente corporativo, uma vez que 59% dos 3,9 mil funcionários e líderes entrevistados afirmaram que as organizações implementaram ao menos uma medida voltada para a saúde mental dos colaboradores. Quando a Olist, startup onde a Alexia trabalha, colocou como prioridade para os funcionários a educação emocional e a segurança psicológica, a analista pôde começar a tão sonhada terapia.
Por meio da plataforma Vittude, ela tem 60% do valor do atendimento subsidiado pela sua empresa. “Eu gastaria 400 reais, com o desconto fica 260 reais. A motivação maior era o trabalho, mas o atendimento também refletiu em outros aspectos da minha vida. Hoje consigo verbalizar, até para o meu gestor, quando não estou em um dia legal”, conta.
Além do atendimento online, oferecido aos funcionários a partir do terceiro mês de pandemia, a startup informou que não demitiria ninguém para conter gastos no cenário pandêmico e criou uma pausa diária de uma hora para os colaboradores com filhos. A ideia surgiu em uma ação promovida pela área de recursos humanos com uma psicóloga especialista em comportamento infantil.
“Percebemos como as pessoas estavam sofrendo caladas. É impossível ficar 100% focado nessa condição, ainda mais com as demandas das crianças. Com isso, a ansiedade e a sensação de culpa deram lugar para o acolhimento e a segurança”, aponta Melissa Guimarães, diretora de recursos humanos da Olist, sobre o retorno que recebeu dos funcionários.
A eficácia de um programa de saúde mental no espaço corporativo está atrelada não só à gestão da corporação como à postura de cada liderança da empresa. “Tirar a capa de super-herói” foi uma das orientações que os líderes da Olist receberam. “Se a pessoa entende que o gestor dela não é minimamente impactado por esse contexto, ela pode achar que não tem o direito de se sentir mal. O colaborador é colocado para baixo em vez de ser puxado”, afirma Melissa.
Ainda nesse fluxo de humanizar as trocas interpessoais, ações como a happy hour virtual deixaram de ser priorizadas para garantir o simples. “Aconselhamos a não estender o período de uma reunião para deixar um tempo livre de descanso ou conversa de assuntos que não são sobre trabalho”, comenta a diretora.
Tecnologia e saúde de mãos dadas
O adoecimento coletivo tende a gerar queda de produtividade, aumento de atestados e de pedidos de demissão. Tatiana Pimenta, fundadora da Vittude, identifica que isso fez com que as empresas acendessem um sinal de alerta. “A saúde mental se tornou algo urgente para eles”, considera a empresária, que decidiu criar o negócio em 2016, após um quadro de depressão.
“Minha maior dificuldade, mesmo com plano de saúde, era es- colher o profissional certo, já que não tinha referência. Quando você tem qualquer doença mental, essa demora pode agravar o caso e desestimular a busca por ajuda. ” Pensando nisso, a plataforma usa soluções tecnológicas para unir o perfil do paciente com o profissional adequado e acompanhar o nível de adoecimento ou de saúde dos colaboradores das organizações.
Em um ano de pandemia, os 20 clientes da empresa saltaram para quase 90 e a receita cresceu cinco vezes. “Os clientes antigos aumentaram o engajamento do serviço de 10% para 25%. Já os novos passaram por um cenário de descoberta, em que os funcionários foram introduzidos ao tema de saúde mental primeiro com aulas de identificação de emoção e de possibilidade de crescimento profissional por meio da psicologia. Em muitos casos, os próprios colaboradores pediram terapia online”, aponta Tatiana.
Outra empresa do segmento das healthtechs em ascensão é a BeeTouch, criada pelas psicólogas e pesquisadoras Ana Carolina Peuker e Sibele Faller e pelo cientista da computação Felipe Scuciatto Beltrano. Segundo Ana Carolina, em 2020, a Bee Touch expandiu 75% e a estimativa é que, este ano, o faturamento aumente três vezes.
Com um direcionamento acadêmico, a startup usa a tecnologia para monitorar digitalmente possíveis riscos de forma preventiva. “Criamos a primeira plataforma digital de avaliação psicológica do Brasil, a AVAX Psi, para os gestores tomarem decisões mais assertivas por meio dos dados e indicadores apresentados no sistema”, explica Ana, que também é professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Soluções viáveis e mudanças necessárias
A pesquisadora ainda alerta para o estereótipo fadado aos pacientes diagnosticados com doenças mentais. “Há um problema social com a saúde mental, que já foi atrelada com a loucura. Ninguém fala de práticas voltadas para a prevenção, como higiene mental, que ajuda a diminuir os impactos de condições do universo corporativo, como o trabalho remoto”, pontua Ana.
Para Tatiana, é necessário lembrar que a psicologia não se restringe a um serviço oferecido pela área de benefícios, mas que também deve ser aplicado como ferramenta de desenvolvimento humano organizacional. “Há um trabalho de competência, empatia, inteligência emocional, comunicação não violenta. É um caminho sem volta entender que isso não é um custo, mas um investimento”, conclui.
Se a cultura do bem-estar mental ainda não foi inserida na sua empresa e há um interesse da sua parte ou de colegas, procure um profissional da área de recursos humanos para manifestar essa necessidade. Em relação ao contexto da pandemia, a psicóloga Mariana Luz aconselha que episódios de luto ou de stress sejam compartilhados, se possível, com um gestor ou pessoas de confiança.
“Vivemos um processo de perda coletiva, que nos afeta direta ou indiretamente. A tristeza faz parte do momento e vai impactar no trabalho. Por isso, além de sugerir e buscar um atendimento quando viável, procure se colocar no lugar de ouvinte e perguntar ao colega que não está bem de que forma você pode ajudá-lo”, aconselha a profissional.
Em tempos de isolamento, não se cobre tanto a ser produtiva